P. Manuel João, comboniano
Reflexão do Domingo
da boca da mia baleia, a ELA
A nossa cruz é o pulpito da Palavra

Que lei governa a nossa vida? 

Ano A – Tempo Comum – 7° Domingo:
Mateus 5,38-48

Ascensão ao cume da montanha

No domingo passado Jesus tinha-nos revelado o objectivo da sua missão: dar pleno cumprimento à Lei e aos Profetas! E tinha-nos apresentado quatro exemplos, sob a forma de antíteses, para explicar o significado e o espírito da nova Lei. Hoje apresenta-nos mais dois exemplos. Este é o cume desta caminhada, que nos oferece horizontes extraordinários, mas que também pode causar uma sensação de vertigem: Amai os vossos inimigos! Se conseguirmos, contudo, acostumar o nosso olhar a este horizonte, então a viagem para os altos cumes do Evangelho far-nos-á respirar ar novo e oferecer-nos-á uma sensação de leveza e liberdade que nunca experimentámos antes!

Quinta antítese: “Ouvistes dizer: ‘Olho por olho e dente por dente’. Mas eu digo-vos, não vos oponhais ao malvado”.

Esta quinta antítese parte da chamada lei do Talião (da retaliação – Levítico 24:19-20). O seu objectivo era evitar a desproporção entre crime e castigo, um caso que vemos bem exemplificado em Lamech, descendente de Caim: “Matei um homem por um arranhão meu e um rapaz por um hematoma meu”. Sete vezes Caim será vingado, mas Lamech setenta e sete” (Génesis 4:23-24). 

A este ‘progresso’ Jesus acrescenta outro que, contudo, é desproporcionadamente benevolente para com o culpado: “Mas eu vos digo: não vos oponhais ao homem mau; antes, se alguém vos bater na face direita, voltai-lhe também a outra…”. 

Sexta antítese: “Ouvistes que foi dito: “Amarás o teu próximo e odiarás o teu inimigo”. Mas eu digo-vos: “Amai os vossos inimigos e rezai por aqueles que vos perseguem”.

Esta sexta antítese é sem dúvida a mais chocante. É também o auge da mensagem de Jesus e do seu evangelho. Tornar-se-á o distintivo do cristão. Não encontramos esta citação, odiar o inimigo, no Primeiro (ou Antigo) Testamento. Jesus refere-se talvez a um ditado ou comportamento comum. Encontramos no A.T. alguns belos exemplos em sentido oposto (cf. Provérbios 25,21; Êxodo 23,4). No entanto, o amor ao próximo era interpretado num sentido muito restritivo. Por vezes, o ódio pelo inimigo até encontrou uma suposta cobertura religiosa: “Como eu odeio aqueles que te odeiam”. Eu odeio-os com ódio implacável, considero-os meus inimigos” (Salmo 139.21-22). 

O cristão é… un cretino?!

Alguns poderiam pensar que estas afirmações de Jesus são um convite à passividade e submissão, uma atitude de fraqueza, uma rendição perante o mal. Não é assim, mas é uma forma de reacção sem precedentes, a não-violência, que quer quebrar a cadeia do ódio e se recusa a submeter-se à lógica da violência. O cristão quer ser o fim do mal! 

O cristão não é um … cretino! A origem desta palavra é ‘crétin‘, cristão (do franco-provençal, inicialmente usado com um sentimento de piedade: pobre cristo!). Jesus pede-nos para desactivar a violência do outro com um amor maior do que a sua violência. Esta não é, portanto, uma atitude de fraqueza, mas de uma posição de força, decorrente da profunda convicção de que o amor prevalecerá sobre o ódio.

O cristão não será o óleo que lubrifica o mecanismo do sistema que está na raiz da injustiça, mas o grão de areia que o faz encravar. É por isso que o destino do verdadeiro cristão será a perseguição, uma vez que a sua simples presença é uma constante denúncia do mal e da injustiça.

Que lei rege as nossas vidas?

Olho por olho, dente por dente?
Esta máxima parece-nos bárbara e cruel e hoje ninguém sonharia em aplicá-la, diríamos nós. Mas será realmente assim?! Sem duvida que não estrangularemos o outro com as nossas mãos, mas… com as palavras poderemos enlamear e denigrar o seu nome! ou em pensamento cultivar o desejo de o fazer pagar! ou torná-lo desprezível com a nossa indiferença! ou abrigar o ódio nos nossos corações e apagar essa pessoa das nossas vidas! 

Na realidade, o coração humano não mudou, apenas se tornou mais refinado! Não vale a pena negá-lo: a lei da retaliação é ainda a que muitas vezes rege as nossas relações. E não nos iludamos, pensando que isto talvez diga respeito a não crentes ou fundamentalistas islâmicos, ou aos políticos…. Não, não, diz respeito a todos nós: leigos, padres, bispos, cardeais… E, infelizmente, quanto mais ‘religiosos’ (não confundir a religião com a fé!) mais nos arriscamos a cair na tentação de instrumentalizar Deus para justificar a nossa violência (nas suas várias formas), o ódio e a guerra. Um exemplo gritante disto é o que está a acontecer ao perto de nós, na guerra Rússia-Ucrânia. É bem verdade o que disse o filósofo e crente judeu Martin Buber: o nome de Deus é o nome mais ensanguentado do mundo!

Amar o inimigo?
Bem, eu não tenho inimigos! ouve-se muitas vezes as pessoas dizerem. Eu também, quando era jovem, costumava dizê-lo, com sinceridade. Hoje já não o digo. De inimigos, fabrico-os todos os dias. Uma verdadeira linha de montagem. Os ouvidos ouvem uma (má) notícia ou os olhos vêem uma imagem (desagradável), o pensamento processa-a, a imaginação fantasia sobre ela, o julgamento dita a sua sentença e o coração reage em consonância… descobri-me um juiz impiedoso. E como é difícil desmantelar este mecanismo! É necessária uma vigilância constante. Santo Agostinho diz: “A raiva é uma palha, o ódio é uma trave. Mas alimenta a palha e ela tornar-se-á uma trave”. 

Libertar os prisioneiros

No seu discurso inaugural, de acordo com o evangelho de Lucas, Jesus diz que foi enviado para proclamar a libertação aos cativos, para libertar os oprimidos, para proclamar o ano do favor do Senhor (Lucas 4,18-19). As prisões que mantêm grande parte da humanidade em cativeiro são muitas, mas não se tornará o meu coração também uma prisão? Demasiadas vezes, nos recessos escuros dos nossos corações, prendemos muitas pessoas, condenadas pela lei do “olho por olho, dente por dente”. Por vezes até encontramos ali as sepulturas de pessoas que condenámos à pena capital! De facto, às vezes ouve-se: essa pessoa para mim é como se fosse morta, já não existe! Conheci pessoas que se recusaram a aceitar a mão estendida por outra que queria morrer reconciliada, porque essa pessoa, para elas, já estava morta há anos! Inacreditável!

Eis um bom programa para a Quaresma que estamos prestes a começar: abrir as portas da prisão do coração e libertar os nossos prisioneiros. E, se ali for encontrado algum esqueleto, que a luz da Páscoa o reconduza à vida!

P. Manuel João Pereira Correia mccj
Castel d’Azzano (Verona), 16 de Fevereiro de 2023
p.mjoao@gmail.com 

Tradução do P. Manuel Augusto Lopes Ferreira mccj