Foi uma das primeiras mulheres suíças a ser médica; nasceu protestante mas aos 38 anos tornou-se católica; pensou duas vezes no suicídio e acabou a ser considerada mística; escolheu como director espiritual o teólogo Hans Urs von Balthasar, considerado um dos maiores teólogos do século XX, mas este escreveu que a obra dela era “bastante mais importante do que” a sua própria

António Marujo | 8 Set 21
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Foi uma das primeiras mulheres suíças a ser médica; nasceu protestante mas aos 38 anos tornou-se católica; pensou duas vezes no suicídio e acabou a ser considerada mística; escolheu como director espiritual o teólogo Hans Urs von Balthasar, considerado um dos maiores teólogos do século XX, mas este escreveu que a obra dela era “bastante mais importante do que” a sua própria. O livro Um Primeiro Olhar sobre Adrienne von Speyr (ed. Principia), publicado por von Balthasar em 1968, será apresentado nesta quinta-feira na Feira do Livro de Lisboa (auditório Nascente, 19h).

Nascida em 20 de Setembro de 1902, próximo de Neuchâtel (Suíça), Adrienne era a segunda de quatro irmãos numa família de classe média alta: pai oftalmologista, mãe descendente de joalheiros e relojoeiros. Em 1940, na sequência de um ataque cardíaco que sofrera, uma amiga apresentou-a a von Balthasar, então padre jesuíta, em Basileia, a quem ela pediu que a instruísse sobre o catolicismo. Depois da sua conversão, a médica contou a Balthasar várias experiências místicas, escrevendo ou ditando ao teólogo (a cegueira progressiva que viria a atingi-la impediu-a de escrever) cerca de 60 livros com comentários aos textos bíblicos ou sobre espiritualidade.

“Este livro é o testemunho de uma vida em relação com Deus”, diz ao 7MARGENS a médica Sofia Reimão, que apresentará a obra na Feira. “Os escritos de Adrienne resultam de uma oração profunda e permanentemente contemplativa, não sendo uma tentativa de explicar conceitos e doutrinas de forma abrangente, mas um convite à contemplação do leitor e à sua aplicação prática.”

Urs von Balthasar escreve que Adrienne tem uma missão actual: “Em situações confusas e ambíguas, ela apresenta indicações e soluções de uma clareza penetrante, muitas vezes contundente.” Ou como neste outro parágrafo, citado por Sofia Reimão: “Deus é a verdade e oferece a sua verdade ao Homem, que só está na verdade se viver na verdade de Deus. Para os tempos que correm, o mesmo é dizer que o Homem não entra na verdade pela introspecção, nem pela psicologia individual e social (sociológica).”

O jesuíta belga Jacques Servais, presidente da Associação Lubac-Balthasar-Speyr (que reúne discípulos dos teólogos Henri de Lubac e Balthasar, e de Speyr) considera que Adrienne “desempenhou um papel central na vida e na missão de Balthasar”. Numa entrevista publicada há dois anos na revista jesuíta America e traduzida pelo portal da Unisinos-Brasil, Servais acrescentava que “Balthasar usou livremente as ideias de von Speyr” e dizia: “Eu hesitaria em falar simplesmente de ‘mística’ cristã. Não podemos negar que Adrienne, assim como Teresa d’Ávila, teve experiências extraordinárias exactamente na presença de Balthasar – experiências que realmente merecem o adjetivo ‘místico’. Mas ele considerava-as como uma graça concedida por meio dela ao povo de Deus, a fim de que ele pudesse viver melhor uma fé vital e cheia de esperança”.

60 a 80 doentes por dia, todos satisfeitos

Balthasar conta que Adrienne começou a dar consultas em 1931, e que estas ficaram rapidamente sobrelotadas. “Ela atendia entre 60 a 80 doentes por dia e todos saíam satisfeitos.” O consultório acaberia mesmo por se tornar “a grande área da sua acção externa, tanto médica como espiritual”, acrescenta o teólogo, que esteve para ser noemado cardeal pelo Papa João Paulo II em 28 de Junho de 1988, mas morreria dois dias antes. Nas consultas, Adrienne tinha em conta todo o quadro humano e familiar da pessoa, ajudou a pacificar casamentos e a evitar pelo menos cerca de mil abortos. “Cuidou de mães solteiras e dos seus filhos; os pobres, que constituíam a maioria dos seus doentes, foram tratados gratuitamente”, descreve Balthasar.

Sobre uma das questões que Adrienne transportava consigo e que a impedia de rezar a frase do Pai Nosso “seja feita a vossa vontade”; o teólogo conta: “Quando lhe mostrei que, ao dizermos ‘seja feita a vossa vontade’, não estamos a oferecer a Deus aquilo que nós próprios fazemos, mas sim a nossa disponibilidade para nos deixarmos tomar e levar para onde quer que seja pela sua acção, foi como se eu tivesse inadvertidamente tocado num interruptor que de uma só vez acendesse todas as luzes da sala.”

Sofia Reimão comenta que este episódio e esta reflexão mostram que, para Adrienne, “o verdadeiro sentido da vida, da fantástica aventura da existência, encontra-se na total disponibilidade da entrega a Deus de tudo o que somos e temos”. Para Adrienne, aliás, a atitude fundamental de um cristão traduz-se no “sim” de Maria de Nazaré, na resposta a Deus para ser mãe: “O sim de Maria é o arquétipo da fecundidade cristã. Só com o sim do Homem pode Deus cristãmente, sobrenaturalmente, iniciar algo significativo.”

A colaboração entre Balthasar e Speyr iria concretizar-se também na fundação, em 1945, da Comunidade de São João, um instituto de leigos católicos consagrados. Este facto, aliás, levaria Balthasar a deixar os jesuítas. Adrienne deixou de dar consultas na década de 1950 e morreu em 17 de Setembro de 1967, a três dias de completar 65 anos.

O livro que nesta quinta-feira será apresentado divide-se em três partes, descritas pelo próprio Balthasar: na primeira, inclui-se um breve resumo da vida de Adrienne; “uma descrição do seu carisma e dos seus principais temas teológicos; uma panorâmica do conjunto das suas obras publicadas e inéditas existentes”. A segunda parte reúne escritos e declarações de Adrienne sobre si própria e a sua vida e o modo como “desejava ser compreendida”. A terceira parte reúne “as orações por ela anotadas ou ditadas que melhor revelam o seu espírito”.