Depois de João ter sido preso, Jesus partiu para a Galileia e começou a proclamar o Evangelho de Deus, dizendo: «Cumpriu-se o tempo e está próximo o reino de Deus. Arrependei-vos e acreditai no Evangelho». Caminhando junto ao mar da Galileia, viu Simão e seu irmão André, que lançavam as redes ao mar, porque eram pescadores. Disse-lhes Jesus: «Vinde comigo e farei de vós pescadores de homens». Eles deixaram logo as redes e seguiram Jesus. Um pouco mais adiante, viu Tiago, filho de Zebedeu, e seu irmão João, que estavam no barco a consertar as redes; e chamou-os. Eles deixaram logo seu pai Zebedeu no barco com os assalariados e seguiram Jesus.

Venite dietro a me, vi farò diventare pescatori di uomini4

O que diz. Jesus começa a pregar assim: «Completou-se o tempo e o Reino de Deus está próximo» (Mc 1, 15). Deus está perto: é a primeira mensagem. O seu Reino desceu à terra. Deus não está – como frequentemente nos sentimos tentados a pensar – lá em cima nos céus, distante, separado da condição humana, mas está connosco. O tempo da distância acabou, quando Se fez homem em Jesus. Desde então, Deus está muito perto; nunca Se separará nem Se cansará da nossa humanidade. Esta proximidade é o início do Evangelho, é o que Jesus – sublinha o texto – «dizia» (1, 15): não disse uma vez, e acabou; mas dizia, isto é, repetia-o continuamente. «Deus está próximo»: era o leitmotiv do seu anúncio, o coração da sua mensagem. E se este é o início e o refrão da pregação de Jesus, de igual modo deve constituir a constante da vida e do anúncio cristão. Antes de mais nada, há que acreditar e anunciar que Deus Se aproximou de nós, que fomos perdoados, «misericordiados». Antes de qualquer palavra nossa sobre Deus, está a sua Palavra para nós, que continua a dizer-nos: «Não tenhas medo, estou contigo. Estou perto de ti e continuarei a estar».

A Palavra de Deus permite-nos tocar com a mão esta proximidade, já que ela – como diz o Deuteronómio – não está longe de nós, antes está muito perto do nosso coração (cf. 30, 14). É o antídoto contra o medo de enfrentar a vida sozinho. Com efeito o Senhor, através da sua Palavra, con-sola, isto é, permanece com quem está . Falando connosco, lembra-nos que estamos no seu coração, somos preciosos a seus olhos, estamos guardados na palma das suas mãos. A Palavra de Deus infunde esta paz, mas não deixa em paz. É Palavra de consolação, mas também de conversão. «Convertei-vos»: acrescenta Jesus imediatamente depois de ter proclamado a proximidade de Deus, porque com a sua proximidade acabou o tempo de deixarmos à distância Deus e os outros, acabou o tempo em que cada um só pensa em si e avança por conta própria. Isto não é cristão, porque a pessoa que experimenta a proximidade de Deus não pode colocar à distância o próximo, não pode deixá-lo distante na indiferença. Neste sentido, quem frequenta a Palavra de Deus, obtém viragens salutares na sua existência: descobre que a vida não é tempo para se guardar dos outros e proteger a si mesmo, mas ocasião para ir ao encontro dos outros em nome deste Deus próximo. Assim a Palavra, semeada no terreno do nosso coração, leva-nos a semear esperança através da proximidade. Precisamente como Deus faz connosco.

Vejamos agora a quem fala Jesus. Dirige-Se, em primeiro lugar, a pescadores da Galileia. Eram pessoas simples, que viviam do trabalho das suas mãos labutando duramente noite e dia. Não eram especialistas na Sagrada Escritura, nem se salientavam certamente por ciência e cultura. Moravam numa região heterogénea, com vários povos, etnias e cultos: era o lugar mais afastado da pureza religiosa de Jerusalém, o mais distante do coração do país. Mas Jesus começa de lá: não do centro, mas da periferia. E fá-lo também para nos dizer que ninguém fica marginalizado no coração de Deus. Todos podem receber a sua Palavra e encontrá-Lo pessoalmente. A propósito, há um significativo detalhe no Evangelho, quando se observa que a pregação de Jesus chega «depois» da de João (Mc 1, 14). Trata-se de um depois decisivo, que marca a diferença: João acolhia as pessoas no deserto, aonde iam só aqueles que podiam deixar os lugares da sua vida. Diversamente, Jesus fala de Deus no coração da sociedade humana, a todos, onde quer que estejam. E não fala em horários e tempos pré-estabelecidos: «passando ao longo do mar», fala a pescadores enquanto «lançavam as redes» (1, 16). Dirige-se às pessoas nos lugares e momentos mais comuns. Tal é a força universal da Palavra de Deus, que alcança a todos em cada uma das áreas da sua vida.

Mas a Palavra também tem uma força individual, isto é, incide sobre cada um de maneira direta, pessoal. Os discípulos nunca mais esquecerão as palavras ouvidas naquele dia nas margens do lago, perto do barco, dos familiares e colegas; palavras que marcarão para sempre a sua vida. Jesus diz-lhes: «Vinde comigo e farei de vós pescadores de homens» (1, 17). Não os atrai com discursos elevados e inacessíveis, mas fala às suas vidas: a pescadores de peixes diz que serão pescadores de homens. Se lhes tivesse dito «vinde comigo, farei de vós Apóstolos; sereis enviados ao mundo e anunciareis o Evangelho com a força do Espírito; sereis mortos, mas tornar-vos-eis santos», podemos imaginar que Pedro e André Lhe teriam respondido: «Obrigado, mas preferimos as nossas redes e os nossos barcos». Mas Jesus chama-os partindo da sua vida: «Sois pescadores, tornar-vos-eis pescadores de homens». Conquistados por esta frase, irão descobrindo passo a passo que viver a pescar peixes era pouco; o segredo da alegria está em fazer-se ao largo obedecendo à Palavra de Jesus. É assim que o Senhor procede connosco: procura-nos onde estamos, ama-nos como somos e, pacientemente, acompanha os nossos passos. Como àqueles pescadores, vai esperar-nos também aos locais da nossa vida. Com a sua Palavra, quer fazer-nos mudar de rumo, deixando de nos limitarmos a matar o tempo para nos fazermos ao largo com Ele.

Por isso, queridos irmãos e irmãs, não renunciamos à Palavra de Deus. É a carta de amor escrita para nós por Aquele que nos conhece como ninguém: lendo-a, voltamos a ouvir a sua voz, vislumbramos o seu rosto, recebemos o seu Espírito. A Palavra aproxima-nos de Deus: não a deixemos longe. Levemo-la sempre connosco, no bolso, no telemóvel; reservemos-lhe um lugar digno nas nossas casas. Coloquemos o Evangelho num lugar onde nos lembremos de o abrir diariamente, talvez no começo e no fim do dia, de tal modo que, no meio de tantas palavras que chegam aos nossos ouvidos, qualquer versículo da Palavra de Deus chegue ao coração. Para o conseguir, peçamos ao Senhor a força de desligar a televisão e abrir a Bíblia, de apagar o telemóvel e abrir o Evangelho. Neste Ano Litúrgico, estamos a ler o Evangelho de Marcos, o mais simples e curto. Por que não fazê-lo também em privado, meditando uma pequena passagem cada dia? Far-nos-á sentir próximo o Senhor e infundirá coragem no caminho da vida.

Domingo da Palavra 2021

Nós estamos a começar o Tempo Comum, hoje estamos no terceiro domingo. O Tempo Comum é aquele eixo fundamental que atravessa o nosso ano litúrgico. Temos o Advento e o Natal que celebram o mistério da encarnação de Jesus, temos a Quaresma e a Páscoa que nos centram no mistério da nossa Salvação. Mas, o Tempo Comum acaba por ser o grande leito por onde a nossa vida flui, onde as águas do nosso coração correm.

A começar, com o sabor de começo, há esta reflexão que a Palavra de Deus nos propõe sobre como é que havemos de viver, como é que há de ser o tempo da nossa vida e que coisa é o tempo do ponto de vista cristão. Porque, o Cristianismo não é apenas uma proposta para ser vivida no espaço individual das nossas vidas, tem também uma visão global da própria história. Não serve apenas para pessoas, tomadas singularmente, mas é uma visão do destino humano, uma visão da própria criação, da própria realidade que o Cristianismo apresenta. Nesse sentido, é muito importante este passo da Primeira Carta aos Coríntios que hoje nós lemos e que pode soar até um pouco estranho aquilo que Paulo diz. Iremos a isso e faremos desse texto a base da nossa meditação.

Mas ainda queria, em jeito de introdução, dizer que no século XIX, no século XX revisitou-se muito a origem do Cristianismo e leu-se muito o Cristianismo na chave apocalíptica. Olhava-se para os primeiros cristãos, para Pedro, João, Paulo, para os seus escritos e aquilo que se entendia era isto: os primeiros cristãos viviam numa expectativa do regresso de Jesus, mas um regresso iminente. Paulo estaria convencido que ele próprio ainda assistiria à última manifestação de Jesus. E depois, como Jesus se foi demorando, como a escatologia não se realizava, os cristãos e o Cristianismo adotaram uma espécie de real politique, uma espécie de pragmatismo histórico a dizer assim: nós não podemos ser apocalípticos toda a vida porque já vimos que isto vai demorar um bocado, não sabemos nem o tempo nem a hora, então, vamo-nos adaptar pelo menos neste mundo vivendo na lembrança e na expectativa sempre do que virá, do que será, do que se revelará.

Hoje nós percebemos os limites desta interpretação do Cristianismo, considerando-o como uma forma apocalíptica de religião. Porque, de facto, o Cristianismo não é apocalíptico, o Cristianismo é messiânico, e nós somos um Povo messiânico. E o messianismo olha para o tempo de uma outra forma, de uma outra maneira. S. Paulo ajuda-nos muito a perceber qual é a essência do tempo cristão. Ele começa, nesta leitura que nós lemos do capítulo VII da Primeira Carta aos Coríntios, com uma imagem muito forte, ele diz: “Irmãos, o tempo foi abreviado.”

O que é que ele quer dizer com isso? A palavra em grego é usada para duas coisas. É usada, por exemplo, quando um animal está para dar um salto e encolhe-se todo para depois se esticar no ar. Isso é o verbo que Paulo usa para dizer que o tempo foi abreviado. Ou então, quando nós baixamos uma vela para depois a voltar a erguer. Então, o tempo é breve não quer dizer que temos um tempo breve, o tempo é o que é. Mas o tempo foi abreviado no sentido em que o tempo foi transformado. A experiência que nós agora fazemos do tempo não é a mesma. Do tempo cronológico, hoje ser domingo, amanhã ser segunda, hoje ser quase meio-dia, depois haver a tarde e a noite. A maneira de vivermos o tempo é transformada, é outra. E é transformada como? Como é que nós vemos isso? É transformada porque agora o tempo é messiânico, porque agora nós contamos com a experiência de Jesus. Jesus já veio, Jesus já Se revelou como o Messias, o Messias de Israel e o Messias universal. E isso dá-nos um entendimento outro da vida. Jesus não está atrasado. Na visão apocalíptica podemos dizer: os cristãos tinham expectativas que não se cumpriam e depois adaptaram-se pragmaticamente à realidade. Não, Jesus não está atrasado, no sentido em que nós podemos dizer que um comboio está atrasado. Não, Ele vem a cada instante, Ele vem a cada minuto.

O filosofo Walter Benjamin dizia: “Cada instante é a pequena porta por onde entra o Messias.“ Então, cada segundo da nossa vida, cada momento é o lugar onde Ele vem, onde Ele Se manifesta, onde Ele chega. É interessante que Paulo, e encontramos isso também nos Evangelhos sinópticos, fala de Jesus como oerkomenos, que é um particípio presente em grego do verbo vir, que quer dizer vir. Jesus é aquele que vem, é aquele que chega, não é aquele que chegou é aquele que está a chegar, que está chegando a cada instante da nossa vida. E isso, claro, tem consequências, tem de ter consequências na maneira como nós entendemos e vivemos a vida. E a consequência é uma espécie de revogação do modo habitual de viver. A forma da nossa existência que foi revogada. Por isso é que Paulo diz:” Os que têm esposas procedam como se não as tivessem, os que choram como se não chorassem, os que andam alegres como se não andassem, os que compram como se não possuíssem.” É uma revogação que acontece, mas uma revogação que diz: encontra na tua existência uma nova compreensão do teu lugar, encontra um novo uso para aquilo que és e vive a tua vida, vive o modo da tua existência oferecendo-lhe um outro significado.

É interessante que mesmo antes deste parágrafo que nós lemos do capítulo sétimo da primeira a Coríntios, S. Paulo está a dizer: “Se és escravo não desesperes com a tua situação mas percebe que como escravo também serás salvo, não desesperes porque também assim serás salvo.” Trata-se de percebermos que tudo aquilo que somos está como que marcado, assinalado por um significado outro. Se eu sou casado eu vivo o casamento com um significado outro, se sou celibatário vivo a minha condição com um significado outro, se as coisas me correm bem vivo o meu sucesso com um significado outro, se estou na tristeza, em momentos crucificantes vivo esses momentos de uma outra maneira dando um outro uso à minha vida. Quer dizer, não absolutizo as formas mas percebo que elas são apenas formas e que nelas eu tenho de encontrar as mediações de um uso novo. O Cristianismo não é o outro tempo, não é para nos preparar para o mundo que há de vir, mas é ajudar-nos a ver que Jesus é aquele que vem em cada instante, em cada momento. Por isso, nós não estamos à espera do fim dos tempos. Nós, no nosso presente histórico, já estamos a viver o tempo do fim.

Isto é, já ligamos cada instante, cada manifestação da nossa existência atual àquilo que é em plenitude o próprio Messias. Por isso, não estamos à espera daquele momento em que tudo vai acabar. Não, nós já vivemos o tempo do fim, já relacionamos cada parte da nossa existência a essa manifestação do próprio Senhor. Encontramos assim uma nova qualidade para o tempo da nossa vida e percebemos que não somos um povo desmobilizado. Pelo contrário, um povo messiânico é um povo mobilizado. Por isso, Jesus começa o seu anúncio, a sua vida pública também com uma palavra sobre o tempo. Jesus diz: “Cumpriu-se o tempo, o tempo encontrou a sua plenitude.” O tempo é o kairós, chronos é o kairós, o tempo é kairológico, o tempo é um momento oportuno. O tempo não é só tempo, não é este instante cego atrás de outro instante cego, este Chronos que devora os próprios filhos como é a experiência psicológica que tantas vezes nós fazemos do tempo, que não temos tempo e sentimo-nos devorados pela própria ideia de tempo. Não é isso, o tempo é um tempo kairológico, no sentido de que nos faz ver que este instante da nossa vida é o momento oportuno, é a oportunidade. Os cristãos olham para o tempo como uma oportunidade. Este momento das nossas vidas que estamos a viver é a oportunidade que Deus nos está a dar para vivermos plenamente o seu mistério, a sua relação com Ele, para acolhermos em plenitude, para o nosso coração ser a tal pequena porta por onde Ele entra.Faz-nos olhar para o tempo como um lugar onde o chamamento acontece. Por isso, queridos irmãs e irmãos, a nossa existência é vocacional. Nós somos mulheres e homens chamados, como Jesus passou à beira do lago e disse a Simão e André: “Vem comigo.” E disse a Tiago e a João: “Vem comigo.” Ele passa hoje na nossa vida e diz: “Vem comigo, vem comigo.” E é esse estar com Ele, esse fazer coincidir o nosso coração com o coração Dele que dá um outro sentido ao tempo da nossa vida.

Por isso, queridos irmãos, o Cristianismo não nos atira para lá da história. Não está interessado apenas nas razões últimas. O Cristianismo é muito interessado nas razões penúltimas, está muito interessado no aqui e no agora da nossa vida. Porque o tempo é um templo. O presente é já o futuro de Deus, é já o lugar teofânico, é já o lugar da irrupção desse grande encontro com o Senhor. Que esta compreensão do tempo nos mobilize, que este tempo comum não seja o anticlímax da nossa vida, dizendo: o tempo comum não é um tempo forte, é o mês de janeiro, é aquele mês para tentar recuperar forças e cabeças depois das loucuras todas de dezembro, depois fevereiro é para entrar um bocado na linha depois do Carnaval. Vivemos a vida um bocadinho como um anticlímax à espera dos momentos extraordinários. Não, a visão cristã do tempo não é essa. Cada momento do nosso presente é já a plenitude de Deus. Por isso, confiança, confiança, confiança. Por isso, vigilância naquilo que vivemos, por isso, compromisso com o Senhor que passa no aqui e no agora trémulo, inacabado, imperfeito, mas no agora Ele passa e dá um significado àquilo que vamos vivendo.

“O que tenho a dizer-vos, irmãos, é que o tempo abreviou-se.” O tempo abreviou-se, o tempo concentrou-se para poder dar o salto. Sintamos esta concentração, concentração do nosso coração, da nossa carne, dos nossos projetos, sintamos isso como desafio àquilo que somos, aos cristãos que somos. Porque Cristianismo vive no mundo com uma certa pretensão. Há coisas que nos fazem um bocadinho rir, não sabemos a origem das coisas. Por exemplo, a palavra “paróquia”. Nós dizemos: isso é paroquial. Olhamos para a paróquia como um velho uso que veio de séculos passados, que a gente não sabe o que é. Há dois verbos em grego para dizer os habitantes. Como hoje, há os cidadãos de pleno direito, que pagam os seus impostos ou nasceram aqui, ou de cidadania e, pronto, estão aqui, estáveis na cidade. E há aqueles que estão de passagem. Ou porque são turistas, têm um visto que vai expirar na data certa, ou porque são clandestinos. Esses são os de passagem e há os estáveis. A palavra “paróquia”, paroikos, quer dizer: “os de passagem”. Então, uma paróquia quer dizer a circunscrição daqueles que estão de passagem, daqueles que não são daqui, não estão aqui estavelmente. E de facto, nós somos esse povo. Esta pequena comunidade são pessoas que assumem a compreensão que estão de passagem, que não pertencemos aqui. Temos de viver qualificando o tempo de outra forma, à maneira de Jesus, seguindo-o à maneira destes que deixaram tudo e foram viver com Ele.

Sigamos Jesus. Ouçamos a Sua Palavra e façamos da Sua vida a oportunidade para a nossa própria vida.

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Cada um de nós, sobretudo se é idoso, vive muitas vezes com as suas lembranças do passado, em particular aquelas que remetem para um início, o começo de uma sequência de acontecimentos importantes, um amor que marca para toda a vida.

Também o cristão realiza esta operação de procurar no passado, como que para o reviver, a hora da conversão; ou melhor, a hora da vocação, quando ele se tornou consciente, no seu coração, de que talvez Jesus desejasse um maior envolvimento na sua vida do que até então.

A página do Evangelho deste domingo quer ser precisamente uma narração da vocação, em que pode espelhar-se quem se predispõe a tudo para escutar o chamamento de Jesus, ou constituir a oportunidade para a recordar como um acontecimento do passado, que pode continuar ou não a ter força ou significado.

Jesus regressa à Galileia, a terra da sua infância, para iniciar a proclamação de uma mensagem que sentia dentro de si como uma missão da parte de Deus Pai.

Começa esta vida de pregação e de itinerância depois que João, o seu rabino, aquele que o educou na vida conforme à aliança com Deus, e que também o imergiu nas águas do rio Jordão (cf. Marcos 1, 9), foi metido na prisão com Herodes. É o fim de quem é profeta, e Jesus desde logo se apercebe de que se quer continuar o caminho do seu mestre, mais cedo ou mais tarde conhecerá a perseguição e a morte violenta.

Jesus começa a proclamar a boa notícia, o Evangelho de Deus, consciente de que o tempo da preparação, para Israel o tempo da expetativa dos profetas, que o tempo da paciência de Deus chegou ao seu cumprimento, como o tempo de uma mulher grávida.

No fim da gestação acontece o parto, e assim Jesus anuncia: «Cumpriu-se o tempo e o Reino de Deus está próximo; convertei-vos e acreditai no Evangelho». Eis a síntese da sua pregação: é o início de um tempo novo em que é possível fazer reinar Deus na vida dos homens.

Para que isto suceda, é preciso converter-se, voltar a Deus, e depois acreditar na boa notícia que é a presença e a palavra do próprio Jesus. Sim, é apenas um versículo que diz esta novidade, e todavia é o início de um tempo que chega até hoje e aqui: é possível que Deus reine em mim, em ti, em nós, e assim acontece a vinda do Reino de Deus.

Perante esta jubilosa notícia, mas também perante esta nova possibilidade oferecida pela presença de Jesus, estamos nós, homens e mulheres, que continuamos hoje a escutar o Evangelho. O que fazemos? Como reagimos?

Estamos talvez a viver o nosso dia a dia dedicados ao nosso trabalho, às nossas ocupações quotidianas, quaisquer que sejam, para ganhar o nosso sustento; ou estamos num momento de pausa; ou estamos a falar com outros… Não há uma hora pré-estabelecida. De repente, no nosso coração, sem que os outros se apercebam, acende-se uma chama.

«Será? Será que escuto uma voz? Conseguirei responder “sim”? Será uma voz que me chama a partir? Para onde? A seguir quem? Jesus? E como faço? Será possível?»

Muitas perguntas que se intersetam, desaparecem e regressam; mas se são escutadas com atenção, pode acontecer que nelas se ouça uma voz mais profunda em nós mesmos, uma voz que vem de fora de nós mesmos e, todavia, através de nós mesmos: a voz de Jesus. É assim que se inicia uma relação entre cada um de nós e Ele, sim, Ele, o Senhor, presença invisível mas viva, presença que não fala de maneira sonora, mas atrai…

Aqui, no Evangelho de domingo, este processo de vocação é sintetizado e, por assim dizer, estilizado pelo autor, que narra só o essencial: Jesus passa, vê e chama; alguém escuta e leva a sério a sua palavra «segue-me», e envolve-se na sua vida.

É isto que é verdadeiro para todos, e é inútil dizer mais: seria apenas ir atrás de processos psicológicos… Mas o essencial está dito, de uma vez por todas: escuta-se a vocação, abandona-se as redes, isto é, a profissão, deixa-se o pai e a barca, ou seja, a família, e assim, no despojamento, segue-se Jesus.

Atenção, porém: a vocação é uma aventura repleta de grandeza, mas também de miséria. Para compreendê-lo, é suficiente seguir nos Evangelhos a vida dos primeiros quatro chamados.

O primeiro, Pedro, em quem Jesus muito confiou, vivendo próximo dele muitas vezes nada entende dele (cf. Marcos 8, 32; Mateus 16, 22), ao ponto de Jesus o ter chamado de “Satanás” (Marcos 8, 33; Mateus 16, 23); chega a estar tão distante de Jesus que o contradiz (cf. João 13, 8); abandona-o para ir dormir (cf. Marcos 14,37-41 e paralelos); e, por fim, renega-o, diz que nunca o conheceu (cf. Marcos 14, 66-72 e par.; João 18, 17.25-27).

André, Tiago e João não compreendem Jesus em muitas situações, interpretam mal as suas palavras e desconhecem o seu coração; os dois filhos de Zebedeu, em particular, são asperamente criticados por Jesus quando invocam um fogo do céu para punir quem não os ouviu (cf. Lucas 9, 54-55); e também eles, no Getsémani, adormecem juntamente com Pedro.

Mas há mais, e Marcos sublinha-o implacavelmente: aqueles que «abandonando tudo seguiram Jesus», na hora da paixão, «abandonando Jesus, fugiram todos» (14, 50)…

Pobre seguimento! Sim, o meu seguimento, o teu seguimento, caro leitor. Não teremos muito de que nos vangloriar. Devemos apenas invocar da parte de Deus muita misericórdia e agradecer-lhe, porque, não obstante tudo, continuamos ainda atrás de Jesus, e tentamos ainda, dia após dia, viver com Ele.

Enzo Bianchi
Trad. / edição: Rui Jorge Martins
http://www.snpcultura.org


Marcos conduz-nos ao momento primordial em que uma notícia extraordinária começa a correr pela Galileia, anunciando com a primeira palavra: o tempo cumpriu-se, o Reino de Deus está aqui.

Jesus não demonstra o Reino, mostra-o e fá-lo florir das suas mãos: liberta, cura, perdoa, derruba barreiras, volta a dar a plenitude a todos, a começar pelos últimos. O Reino é Deus que vem para curar do mal de viver, como a vida que desponta em todas as suas formas.

A segunda palavra de Jesus pede para tomar posição: convertei-vos, voltai-vos para o Reino. Há uma ideia de movimento na conversão, como no girassol que a cada manhã volta a erguer a sua corola e a orienta na direção do sol. Convertei-vos: isto é, voltai-vos para a luz porque a luz já está aqui.

A cada manhã, a cada despertar, também eu posso converter-me, dirigir pensamentos, sentimentos e escolhas para uma estrela polar do viver, para a boa notícia de que Deus está hoje mais próximo, penetrou mais profundamente no coração do mundo e no meu, com mansidão e poderosa energia para o amanhecer de novos céus e nova terra.

Também eu posso construir o meu dia sobre esta feliz certeza; deixar de ter os olhos baixos sobre os meus mil problemas, mas levantar a cabeça para a luz, para o Senhor que me assegura: Eu estou contigo, nunca te deixo, nunca serás abandonado.

Crer no Evangelho. Não basta aderir a uma doutrina; é preciso atirar-se para dentro dele, para que a nossa vida seja submersa nele e dele derivem as nossas escolhas.

Caminhando ao longo do lago, Jesus vê… Vê Simão e nele intui Pedro, a Rocha. Vê João e nele perscruta o discípulo das mais belas palavras de amor. Um dia olhará a adúltera trazida à força para diante dele e nela verá a mulher capaz de amar de novo.

O Mestre olha também para mim; nos meus invernos vê sementes que germinam, generosidade que desconhecia ter, capacidades de que não suspeitava. O olhar de Jesus alarga o coração, torna-o mais amplo. Deus tem para mim a confiança de quem contempla as estrelas ainda antes que se iluminem.

Segue-me, vem após mim. Jesus não se alonga em motivações, porque o motivo é Ele, que te coloca o Reino recém-nascido entre as mãos. E di-lo com uma palavra inédita: farei de vós pescadores de homens. Como se dissesse: farei de vós buscadores de tesouros.

Como se dissesse: o meu e o vosso tesouro são os homens. Havereis de os tirar para fora da escuridão, como peixes sob a superfície das águas, como recém-nascidos das águas maternas, como tesouro desenterrado do campo. Passá-los-eis da vida submersa à vida ao sol. Mostrareis que o Evangelho é a chave para viver melhor.

Ermes Ronchi In “Avvenire”
Trad. / edição: Rui Jorge Martins
http://www.snpcultura.org

Depois do Baptismo no Jordão e da experiência no deserto, Jesus inicia a sua vida pública com um anúncio essencial, que Marcos – o evangelista que se lê neste ano litúrgico – apresenta em quatro pontos (v. 15): cumpriu-se o tempo e está próximo o reino de Deus; é preciso converter-se e acreditar nesta boa-nova.

O Evangelho de Marcos, embora na sua brevidade e concisão, tem uma mensagem global e completa. «O catecúmeno no Evangelho de Marcos – os cristãos de hoje, cada um de nós – é convidado a compreender que Deus está a tomar posse da sua vida e vai ao seu encontro com uma misteriosa iniciativa, que ele é chamado a aceitar» (Carlos Maria Martini). Do início ao fim, uma pergunta insistente percorre os 16 capítulos de Marcos: «Quem é Jesus?» Os numerosos milagres de curas e uma doutrina nova ensinada com autoridade por um Mestre surpreendente (1,27), culminam na profissão de fé de duas testemunhas oculares coincidentes: o discípulo Pedro, que afirma: «Tu é o Cristo» (8,29) e o centurião pagão, que aos pés da cruz declara: «Verdadeiramente este homem era Filho de Deus» (15,39). Tais afirmações – colocadas no meio e no fim do Evangelho de Marcos – recebem confirmação imediata no acontecimento da ressurreição (16,6).

O núcleo da mensagem de Jesus é que a iniciativa de Deus para salvar o mundo já está em acto: com a encarnação do Filho, Deus pôs a sua tenda definitiva no meio dos homens; em Jesus Cristo o Reino atingiu a plenitude; a salvação de todos passa necessariamente através da Pessoa do Deus que assumiu carne humana. O acontecimento é de tal ordem que justifica plenamente quer os pedidos de Jesus: «Convertei-vos e acreditai no Evangelho» (v. 15), quer a decisão radical em segui-lo «de imediato» deixando de lado afectos e interesses pessoais (v. 18.20) A conversão comporta uma mudança radical de mentalidade relativamente ao modo de se relacionar com Deus, com o semelhante e com o mundo criado. Da parte de Deus não haverá outras propostas: o Evangelho já está todo presente em Jesus, não haverá outro. O Evangelho/Boa-Nova não é um livro de doutrina ou de teorias espirituais: é uma Pessoa, é o próprio Jesus. Os primeiros quatro discípulos (v. 16-20), e depois os outros, não seguem uma doutrina ainda que admirável, mas uma Pessoa. Sentem que podem confiar nele, abrem-lhe o fundo do coração, confiam-lhe o seu destino. Embora com alguma fragilidade, seguem-no a ponto de dar a vida por Ele!

O Mestre chama os discípulos, forma-os, transforma-os, envia-os. O seguimento conduz sempre à missão: Jesus faz deles pescadores de homens (v. 17), portadores de um novo projecto de vida, a Boa-nova por excelência. (*) A família humana tem extrema necessidade do Evangelho, para poder viver em plenitude, como explica São Paulo (II leitura), mesmo no meio de situações de precariedade, sem sucumbir às seduções dos ídolos do momento, uma vez que «o cenário deste mundo é passageiro!» (v. 31).

Deus ama todas as pessoas e quer-nos todos felizes: prova disso é o acontecimento que se chama Cristo! Levar esta mensagem até aos confins do mundo é tarefa de todos os seus seguidores, chamados a ser discípulos e missionários de coração grande, a exemplo do coração de Deus. Não pessoas mesquinhas, teimosas e ciumentas como Jonas (I leitura), profeta que, num primeiro momento, foge (Jn 1) para não realizar o mandato missionário de Deus que o envia aos povos pagãos de Nínive. Em seguida, Jonas efectua o anúncio só parcialmente, «durante um dia de caminho» (v. 3,4), sentando-se depois a protestar contra Deus, porque «é bom e misericordioso» para com os habitantes de Nínive, sempre pronto ao perdão, sobretudo para com os que estão longe (Jn 4). Esta universalidade é um valor fundamental a todos os níveis: pelo conteúdo da mensagem (o Evangelho), pelos destinatários do anúncio (todos os povos, todos os crentes em Cristo), pelos missionários e as missionárias, que o Senhor chama, também hoje, a ser portadores da Sua mensagem de salvação.

A festa da Conversão de São Paulo (25/1) e a Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos (18-25/1) oferecem pontos fecundos de reflexão missionária sobre a Palavra de Deus, a qual pede a cada pessoa uma mudança de mentalidade (conversão), abertura ao Evangelho de Jesus, disponibilidade a lançar sempre e a todos esta massagem de vida.