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Décima Terceira Meditação
JESUS DIANTE DE PILATOS E A MORTE DO CRUCIFICADO
Para ajudar a nossa meditação sobre a paixão de Jesus, gostaria que examinássemos juntos agora o episódio central da paixão (18,28 — 19,16): é a passagem de Jesus diante de Pilatos; depois vamos lançar um olhar para o episódio que segue a morte de Jesus. São dois momentos característicos do relato segundo João.
O trecho de Jesus diante de Pilatos é muito complexo e longo, como já indiquei; mais ainda, quem lê não pode subtrair-se à idéia de que João — que escreve em estilo hierático — diz aqui coisas até demais. Tem-se até uma certa impressão de prolixidade: são quase 30 versículos para narrar alguns fatos certamente fundamentais (a condenação à morte de Jesus), mas que Marcos nos relata em quase metade do espaço. Os judeus vão ter com Pilatos para fazer condenar Jesus; Pilatos interroga Jesus e não consegue convencer-se de que ele seja culpado; procura fazê-lo libertar por meio de aclamação, mas o povo prefere Barrabás; Pilatos faz flagelar Jesus; os soldados zombam dele como de um rei de comédia; por fim, Jesus deixa o pretório e vai para o Calvário. Eis os fatos narrados. Que quer dizer João ao narrá-los de maneira tão ampla e difusa?
Os exegetas, como acontece com freqüência, não estão de acordo. Alguns quiseram ver nesta cena a intenção de João de descrever o drama psicológico da indecisão humana: Pilatos diante da verdade não escuta, não se convence e, por fim, é arrastado pelos acontecimentos. Portanto, no centro do drama estaria Pilatos, isto é, o homem: as trevas diante da luz. Outros preferem ver naquele tipo de descrição a insistência de João num drama de tipo teológico-político, que teria o seu centro em 19,11: “Nenhum poder terias sobre mim, se não te fosse dado do alto”. A expressão “do alto” é interpretada como se aludisse à autoridade romana. Neste caso o tema coincidiria com aquele que será desenvolvido pelo Apocalipse: a oposição entre império e Igreja. Na realidade, todas estas interpretações parecem sobrepor ao texto alguns interesses posteriores.
Em vez disso, é preciso que partamos de uma leitura objetiva do texto, para ver quais são verdadeiramente as insistências de João, no descrever este momento tão dramático da vida de Jesus. Dissemos que João, ao relatar estes fatos, dá a impressão de uma certa prolixidade. Já alguns exegetas do século passado, que ainda não haviam analisado a fundo a passagem, notavam uma freqüente e quase ociosa menção de Pilatos, que entra e sai varias vezes do pretório: este ir e vir de Pilatos dá quase o ritmo da narração. E aqui indico os vv. 29.33.38 do cap. 18; depois (19,1 entra implicitamente no elenco) do cap. 19 os vv. 4.9.13; em todos se fala destes movimentos de Pilatos:
18,19: Pilatos sai do Pretório e vai ao encontro dos judeus; v. 38: sai de novo para parlamentar com os judeus a respeito de Barrabás; 19,1: Pilatos faz flagelar Jesus (supõe-se a volta: é o único ponto em que não se menciona explicitamente); v. 4: sai e apresenta Jesus dizendo: “Eis o homem”; v. 9: volta para interrogar mais Jesus; por fim, v. 13: sai e pronuncia a condenação de Jesus.
Naturalmente, há uma razão histórica que explica estes movimentos de Pilatos: os judeus não podiam entrar na casa de um pagão sem contrair a impureza legal, que haveria impedido, naquela tarde, a participação nos ritos sagrados que estavam para ser iniciados; por isso, querendo evitar toda contaminação, eles permanecem fora do palácio. Jesus, ao contrário, como acusado, não está sujeito a estes escrúpulos e por isso é levado para dentro, na sala das audiências; a audiência realiza-se em parte dentro e em parte fora. Pilatos entra e sai por respeito aos judeus que lhe trouxeram Jesus.
A partir desta constatação de ordem histórica, porém, parece-nos poder notar uma elaboração estilístico-teológica, que deriva da intenção específica do evangelista de distinguir uma da outra diversas cenas. Existem ao menos duas razões que parecem indicar isso.
A primeira emerge da observação pela qual, dado este modo de narrar “em blocos”, alguns eventos da paixão, inclusive gravíssimos como a flagelação, são colocados na sombra ou são mencionados só de passagem, e não entram senão rapidamente no quadro das várias cenas. O que domina é, de um lado, a figura de Jesus, sozinho e quase silencioso na sala das audiências, de outro, o povo que grita, e no meio Pilatos.
A segunda razão para entender desta maneira as coisas poderia ser deduzida do fato que as menções do entrar e sair de Pilatos se sucedem em intervalos regulares, como que escandindo um ritmo (e já notamos isso).
Agora, se seguirmos até o fundo o proceder das ações, segundo o ritmo sugerido, encontraremos sete cenas distintas; de modo que todo o episódio apresenta um desenvolvimento sucessivo, ascendente, que culmina na sétima cena, quando Pilatos diz: “Eis o vosso rei” (19,14). Por isso, deixando de lado temas graves — como a flagelação que apenas é mencionada — ‘ todo o episódio tende a ilustrar e celebrar a realeza de Jesus.
Além disso, dispondo as sete cenas segundo a ordem indicada no quadro, pode-se facilmente constatar que há uma correspondência de tipo quiástico, quanto ao conteúdo, entre a primeira (1) e a sétima (7) , entre a segunda (2) e a sexta (6), entre a terceira (3) e a quinta (5), ao passo que a quarta permanece no centro (4). Quero dizer que não é sublinhada somente a cena final (Jesus é rei), mas também a cena quarta (a coroação de espinhos) tem um valor particular: o da farsa de uma coroação régia. Portanto, o nosso texto tem uma estrutura em parte ascendente e em parte concêntrica, que para o nosso gosto poderá parecer excessivamente barroca; o fato é que encontramos aqui o resultado de uma meditação que faz próprios os eventos e os põe em confronto, até chegar a uma expressão verbal que, no mesmo ritmo das palavras, os une entre si, com a finalidade de ajudar o repensamento e a contemplação.
Dissemos que as cenas se correspondem nas palavras introdutórias, que são as mesmas para todos os pares de cenas (isto é, a primeira e a sétima, a segunda e a sexta etc.). Elas se correspondem também no lugar: a primeira e a sétima se desenvolvem fora, diante do povo; a segunda e a sexta no palácio; e a terceira e a quinta de novo diante do povo.
Além disso, elas se correspondem no conteúdo: a primeira e a sétima são cenas de negação de Jesus, nas quais se exige a sua morte; a segunda e a sexta são cenas em que Jesus fala e cujo tema é o do Reino e do poder real, de modo que aflora sempre mais a pergunta central, que é a seguinte: como Jesus é rei? Qual é a verdadeira realeza de Jesus? A terceira e a quinta cena contêm duas declarações de Pilatos sobre a inocência de Jesus.
Todo o processo, em resumo, está centrado em Jesus. A complexidade da forma não quer servir a outra coisa senão para estimular o aprofundamento daquilo que está por trás dos fatos da história, para captar precisamente o que eles significam. Portanto é claro que enquanto na estrutura ascendente é a cena sétima que é sublinhada (“Eis o vosso rei”), na estrutura concêntrica da cena o que se quer pôr em destaque é a coroação de jesus.
Por isso, são dois os momentos da realeza propostos à atenção daquele que contempla estas cenas. Então começamos a compreender como o tema que preocupa mais João é o da realeza. Por isso a pergunta temática fundamental pode ser expressa assim: qual é a verdadeira realeza de Cristo, se, quando queriam fazê-lo rei, ele havia fugido, ao passo que pelos fatos e pelas situações ele é insistentemente proclamado rei? Ou, em outras palavras: onde Cristo é verdadeiramente Messias? Onde se realiza a plenitude do triunfo messiânico? Onde se manifesta a glória de Deus no triunfo messiânico do rei? Evidentemente, a resposta mais imediata que nos vem à mente é na Ressurreição. Mas João quer fazer-nos passar além desta primeira resposta e mostrar-nos que já na paixão Cristo reina de verdade, e que por isso mesmo o mistério pascal já está em ação.
Vejamos agora com que progressão, nas diversas cenas, é aprofundado o tema da verdadeira realeza de Crista. Na segunda cena é Jesus quem se proclama rei diante de Pilatos, mas com uma realeza especial, ainda não especificada; o tema é apresentado como real, mas ao mesmo tempo misterioso. Na quarta cena, que está em posição central com relação às outras cenas, Jesus é coroado de espinhos, vestido de púrpura e saudado como rei. uma cena em que o historiador lê vergonha, ignomínia e derrisão; João, ao contrário, contempla esta cena como transfigurada, vendo nela o significado transcendente: Jesus se manifesta rei, e os soldados, precisamente enquanto julgam aviltá-lo, na realidade realizam o desígnio da salvação.
Nesta realidade ignominiosa da realeza de Cristo é o amor de Deus que se manifesta entre nós, é a glória de Deus. Na cena seguinte, a quinta, Jesus é apresentado com as insígnias régias. Todavia Pilatos ainda não diz: “Eis o vosso rei”, como dirá no fim, mas diz: “Eis o homem”. Que progressão indica esta declaração de Pilatos? Provavelmente no plano histórico transparece nestas palavras um certo sentimento de compaixão para com Jesus: “Eis este pobre homem, o homem de quem se fala com tanto medo”. Ou então, segundo outros, não sendo Pilatos um homem de usar compaixão, há nessas palavras antes um sentido de desprezo para com os judeus: “Eis o homem que se quer eliminar como perigoso, como turbulento”. Todavia, no plano teológico, que é o de João, que sempre filtra os fatos através da meditação, é claro que estas palavras têm um sentido mais profundo.
Com efeito, Jesus não é chamado “homem” do mesmo modo como quando é apresentado pela primeira vez a Pilatos, que sai e diz: “Que acusação tendes contra este homem?” (18,29), mas é chamado em sentido pleno ho’ anthropos: “Eis o homem”. E esta frase é dita daquele homem que está ali presente, do homem que está com a coroa, com a púrpura, e que na mesma passagem é chamado “aquele que se faz Filho de Deus”. Por isso, provavelmente — atendo-nos sempre ao estilo de João — , aqui há uma alusão ao título de “Filho do homem”: eis o homem preanunciado, o homem que devia vir, aquele que com seu título de “Filho do homem” evoca o poder judicial e régio do Messias. Em outras palavras, João contempla na humilhação do Cristo o sinal do poder misterioso do filho do homem presente na terra. Ele vê, nesta contemplação, aquela “coincidentia oppositorum” que é o sinal das obras divinas. Deus tinha prometido este misterioso “Filho do homem”, juiz e rei; agora ele está aqui e exerce, no interior desta sua situação de ignomínia, o seu poder de juízo sobre a humanidade.
Finalmente, a última cena, a sétima, que começa com o v. 13. Ela é apresentada com particular solenidade. Antes de mais nada, João quer chamar-nos a atenção para o lugar em que tudo se realiza: estamos no exterior, num lugar chamado “litróstoto”, em hebraico gabbata, provavelmente um lugar elevado então conhecido, de tal modo a atrair o olhar e a mente de quem lê. Em segundo lugar, para João é importante precisar a hora: estamos na hora sexta, a hora da preparação da Páscoa, a hora em que se imola o cordeiro pascal. Precisamente naquele mesmo momento se está realizando o grande mistério, que realiza a verdade dos sinais que se verificam no Templo.
Tudo isso faz pensar que estamos realmente diante de um evento de grande significado. Do ponto de vista histórico, trata-se de uma condenação à morte de Jesus: um ato ignominioso da história, um ato de vileza e de injustiça. Pilatos senta-se no tribunal, apresenta Jesus como rei de comédia, depois o abandona para que seja crucificado. Ao menos é isso que aparece após uma primeira e óbvia leitura da passagem. Mas se lermos atentamente os nossos versículos, notaremos ao menos dois pormenores:
1. a condenação na realidade não existe, porque não é pronunciada uma sentença específica;
2. há uma frase que deu o que pensar aos exegetas e que para alguns deles parece propositalmente ambígua: trata-se da expressão ekathisen epi bematos no v. 13, traduzida pela Vulgata “sedit pro tribunali”; enquanto comumente se pensava que a frase significasse que Pilatos se sentou no tribunal, dada a proximidade do nome de Jesus e a possível atribuição de um valor ativo ao verbo ekathisen, parece que Pilatos “fez Jesus sentar-se”, no sentido de que o instalou no banco. De fato, a Bíblia ecumênica traduz: “Levou Jesus para fora e o instalou numa tribuna”. A impressão que nos fica desta cena é que aquele que parecia ser julgado, na realidade é aquele que neste momento está julgando a humanidade. Ou seja, aquele episódio que, no plano histórico, se conclui com a condenação de Cristo, no plano interpretativo — dada a presença do poder judicial e régio, que a Cristo compete como Filho do homem e que João contempla — faz resplandecer a glória de Cristo na humilhaçao da sua morte.
Aqui talvez estejamos no limite da análise exegética, aquele limite em que se passa da exegese ao virtuosismo exegético. Mas muitos exegetas pensam que estão na verdadeira interpretação joanina: João tem tal olhar paradoxal — porque conheceu o mistério de Deus, que é paradoxo com relação a toda ação humana — que é levado a ler, também nas mais oprobriosas circunstâncias da morte de Jesus, o sinal da realização de sua missão messiânica; Jesus manifesta o amor do Pai de maneira tão inaudita que se torna, por força deste amor, rei e Messias, e por isso fonte de salvação para a humanidade, seja que esta o aceite ou rejeite.
Temos aqui, pois, a entronização messiânica de Jesus, que acontece no momento em que ele realiza a sua missão fundamental, que consiste em manifestar aos homens mediante a sua doação o amor do Pai. Apresentando-nos no seu Evangelho o choque dramático entre luz e trevas, o evangelista João nos conduz ao momento culminante, em que as trevas parecem triunfar: é a hora mais negra da humanidade; contudo, naquele mesmo momento em que a humanidade tenta expulsá-lo, na realidade Cristo reina e triunfa. O que acontece diante de Pilatos constitui um sinal em que o historiador lê a morte; o crente, ao contrário, lê ali a realização da verdadeira missão de Jesus, o seu triunfo.
Esta série de paradoxos pode fazer-nos refletir sobre aquela vicissitude paradoxal que é a vida cristã, a nossa própria vida: Deus reina para nós em situações aparentemente paradoxais, particularmente na situação mais paradoxal de todas, que é a morte. Por ocasião da morte somos chamados a manifestar a glória de Deus, não através de palavras que não conseguem exprimi-la, mas através da própria realidade do evento, que nos associa ao momento em que Cristo se deu a si mesmo por nós.
Refletindo depois sobre o significado mais vasto que pode ter a realeza de Cristo, podemos dirigir a nossa atenção à doutrina sinótica acerca do Reino de Deus. Que significa “Reino de Deus”, ou “Reino do Pai”? Significa que Deus está no centro de toda realidade e que toda a realidade está perfeitamente ordenada sob o domínio divino. È este o “Reino de Deus” que Jesus veio instaurar. Segundo a doutrina exposta em João, este domínio é dado a Jesus precisamente no momento em que ele realiza o supremo serviço de caridade e de verdade. Então se realiza também a palavra de Jesus acerca da “atração”.
Jesus não reina dominando, isto é, estendendo a sua influência de pessoa a pessoa mediante um poder do alto, mas reina atraindo. Fazendo resplandecer em si o amor de Deus pela humanidade abandonada, Jesus é capaz de atrair a si todo aquele que sabe ler este sinal, isto é, todo aquele que através da meditação da cruz sabe ler na própria pobreza e abandono — situação totalmente semelhante àquela do Filho — a certeza de ser amado por Deus.
Como última reflexão, proponho-lhes meditar a passagem que segue imediatamente o relato da morte na cruz de Jesus (19,31-37). Já estamos no fim da paixão. Tudo está concluído. Jesus está morto; não haveria mais nada para contar. Todavia, depois de tudo acabado, João ainda quer dizer-nos alguma coisa que nos faça compreender melhor a morte de Jesus.
Jesus está morto; na sua morte realizou-se a Escritura e realizou-se a sua obra. Mas o que significa a sua morte? Também aqui, segundo o modo tipicamente joanino, que pode parecer-nos um pouco estranho, o evangelista vislumbra num simples pormenor anatômico o significado transcendente do que aconteceu. O fato histórico é, em si mesmo, muito simples e bastante plausível. Está próximo o dia de sábado; é preciso que os condenados não permaneçam na cruz. Segundo os costumes da época, é preciso quebrar-lhes as pernas.
Este costume foi documentado dramaticamente com a descoberta, feita há alguns anos num túmulo próximo de Jerusalém, dos ossos de um crucificado: é a primeira vez na história da arqueologia que se encontram os ossos de um homem crucificado, em particular o osso da perna, com base no qual se pôde reconstruir também a posição daquele crucificado, que é mais ou menos do tempo de Jesus: provavelmente fazia parte daqueles que em grande número — diz José Flávio — foram crucificados em torno de Jerusalém pouco antes de 70 d.C. O resultado do estudo sobre esta descoberta arqueológica é verdadeiramente impressionante, porque nos ossos daquele condenado se pode ler toda a estrutura do cruel suplício da cruz. Deste condenado vê-se o furo do prego e também o rompimento do osso, praticado depois da condenação.
João alude a um fato por assim dizer de crônica. Todavia, as pernas de Jesus não são quebradas, mas lhe é dado apenas o golpe de misericórdia para ter certeza de que está morto; trata-se de um golpe de lança no lado. O que segue é difícil de interpretar do ponto de vista médico, mas parece ao menos plausível: além do sangue, sai alguma coisa como água. Seja como for, João não quer insistir sobre o porquê deste fato — se é milagroso ou não — , mas, tomando-o como episódio de crônica, procura seu significado nas Escrituras. E então se pergunta o que podem significar estas coisas acontecidas depois da morte de Jesus. “Nenhum osso lhe foi rompido” (cfr. x 12,46), e João pensa no cordeiro pascal, e por isso nos faz contemplar na cruz de Jesus o verdadeiro sacrifício de Israel, com o qual se realiza perfeitamente toda a espera do Templo: aquele Templo que deve ser destruído e reconstruído que é o próprio Jesus, no qual se realiza o sacrifício do verdadeiro cordeiro.
Mais misteriosa é a outra profecia: “Contemplarão aquele que transpassaram (cfr. Zac 12,10). Historicamente, ela se aplica aos soldados e aos que estavam olhando, e talvez também ao discípulo que, como testemunha, olhou com certa curiosidade para aquele último fluxo de vida do crucificado. Mas o pensamento de João, através das palavras da profecia, dirige-se a toda a humanidade que contemplará o crucificado como a manifestação plena do Deus que é por nós, de Jesus Cristo que é por nós até o limite extremo do seu amor.
Também o mistério do sangue e da água, embora não seja comentado por João com textos bíblicos, é expressamente posto em relevo: “Quem viu dá testemunho e o seu testemunho é verdadeiro, e ele sabe que diz a verdade, para que também vós creiais”. Isso certamente tem um significado. Qual? Os exegetas propõem vários. João é tão rico nas suas indicações que nunca tem uma só palavra em mente: tem duas ou talvez três ao mesmo tempo; e todas validamente explicáveis. A água é a vida; é o dom do Espírito; e é também, na interpretação batismal do cap. 3 em diante, o sacramento do batismo. O sangue derramado na morte é o sangue de que Jesus disse: “Quem beber o meu sangue terá a vida em si” (6,54). Por tudo isso, da cena que João nos apresenta emerge um primeiro significado: é da morte de Jesus que nasce a vida sacramental: Batismo e Eucaristia. A Igreja reconhece que recebe estes dons do Senhor crucificado.
Provavelmente a cena tem também outro significado para o qual se orienta a profecia de Ezequiel: como, segundo a promessa (Ez 47,1-12), do novo Templo brotariam fontes de água viva — e Jesus retoma precisamente esta palavra no cap. 7 — , assim agora, deste novo Templo, destruído e próximo a ser reedificado, brota a nova água do Espírito e da Vida. Em Jesus temos o sacrifício perfeito, o perfeito Templo, a vida da Igreja. Talvez João não tenha levado explicitamente a sua meditação até a este ponto; mas é expresso claramente o fato de que a vida sacramental brota de Jesus e que desta vida sacramental do Senhor nasce a Igreja.
Podemos concluir a meditação pedindo a Jesus que nos ajude a ver como este golpe de lança — que humanamente pareceria querer dizer: nem mesmo na morte Jesus é poupado, porque um destino implacável e maligno faz com que se obstinem contra ele não só em vida, mas também na morte — mostra o poder de quem o enviou à terra, e o próprio poder de Jesus que, aceitando até o fundo a sua missão, através desta última humilhação que lhe é infligida, dá a vida à humanidade. Estes são mistérios tão paradoxais e difíceis que somente a nossa adoração pode, de alguma forma, captar o que essas indicações joaninas estimulam em nós, como repensamento do significado cósmico, válido para toda a história, do único sacrifício de Jesus sobre a cruz.
Evangelho segundo São João
Carlo Maria Martini
Edições Loyola
S. Paulo – Brasil – 1980