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Décima Segunda Meditação
A PAIXÃO DE JESUS SEGUNDO JOÃO

Agora vamos entrar na meditação da paixão de Jesus. Pessoalmente, encontro sempre grande dificuldade neste ponto dos Exercícios Espirituais, porque se há uma meditação que deve ser feita em silêncio é precisamente esta; com efeito, falando destas realidades, há sempre o perigo de banalização do mistério. Por isso, não sabendo como apresentar cada uma das meditações, quero limitar-me a dar alguma indicação para a sua leitura pessoal do texto de Joio.

O escopo que Inácio propõe para estas meditações é exposto nos preâmbulos, que variam ligeiramente de acordo com a materia. Na primeira meditação, a da Ceia: “Pedir dor, comoção e confusão, porque o Senhor vai à paixão pelos meus pecados” (EE, n. 193). E na meditação seguinte, a segunda do dia: “Pedir o que desejo, ou seja, o que é próprio da paixão: dor com Cristo abandonado, abatimento com Cristo abatido; lágrimas, penas internas por tanta pena que Cristo sofreu por mim” (EE, n. 203). A insistencia refere-se sobretudo a dois elementos: sentir dor com Cristo, e o que Cristo fez por mim. Podemos resumir estas indicações inacianas lembrando aquela frase de João em que já se acena para a paixão: “Se alguém me quer servir, que me siga, e onde eu estiver, estará também meu servidor” (12,26). Vivamos de acordo com estas palavras todas as meditações da paixão, de modo a estar onde’ ele está; e por isso estar com ele, onde ele está por mim.

Como lhes disse, pretendo dar apenas algumas indicações sumárias de leitura, tendo presente que o próprio Inácio propõe, no fim da terceira semana, dedicar um dia inteiro, depois de ter meditado as várias cenas da paixão, a toda a paixão conjuntamente, “num ou em diversos exercícios, como melhor puder e como for de maior fruto para aquele que medita” (EE, n. 209).

Nesta primeira meditação, gostaria de lançar um olhar introdutório a diversos temas em conjunto, de modo a entrar na mentalidade de João e obter aquela que eu chamaria a “inteligência espiritual da paixão”; acrescentarei o esquema de uma possível subdivisão da paixão joanina em sete episódios. Numa segunda meditação, procurarei deter-me no segundo episódio da paixão (18,28-19,16), que é aquele ao qual João dedica mais espaço, e brevemente no episódio de Jesus ainda na cruz depois da morte. (19,3 1-37).

Antes de mais nada, quero sublinhar alguns aspectos gerais do relato joanino, que identificarei mediante a apresentação de três temas. Quero entrar neles convidando-os a ter presente que valem também para a narração da paixão duas leis ordinárias do estilo joanino: a compenetração dos planos e o estilo hierático. Explico-me brevemente.

Como já vimos, João costuma apresentar uma grande visão unitária e contemplativa, em que os diversos planos se compenetram mutuamente. É como se ao olhar místico do vidente o plano da vida terrena de Cristo, de sua vida gloriosa, da vida da Igreja presente (à qual o apóstolo está falando) e da vida da Igreja futura, estivessem de fato compenetrados e vistos em conjunto. Portanto, esta visão compreende presente, passado e futuro; por isso, em nosso caso, compreende cruz e glória, a cruz na vida humilde do cristão e a sua glorificação. Por isso, a paixão joanina deve ser meditada atendendo a esta densa compenetração de planos.

É inegável, além disso, que o relato da paixão tem um estilo hierático, majestoso, lento, às vezes prolixo, que é tipicamente joanino. Bastaria ler a cena de Pilatos para se ter até a impressão de uma certa desumanidade de João: no sentido de que os fatos, embora permanecendo como são na sua crueza — a injustiça da condenação de Jesus sofredor, o trato que lhe é infligido injustamente, a flagelação, a crucificação — todavia são transfigurados à luz da realidade profunda que eles contêm.

Poder-se-ia quase acusar João de falta de sentimento e até mesmo de se deixar levar pelos jogos verbais. Nem falta aqui a ironia joanina, que se torna mais aguda em razão dos contrastes — ora dramáticos ora embaraçados — que explodem no interior das situações. Mas não devemos esquecer que os próprios Sinóticos, se os considerarmos atentamente, às vezes se nos apresentarão um pouco impiedosos na descrição da paixão; pensando bem, eles não contêm nenhuma exclamação nem uma interrogação do coração. Pensando na dramaticidade dos eventos, estes autores representam realmente as cenas com uma objetividade desconcertante.

Mas devemos levar em consideração que o relato, quando foi composto, já havia sido longamente absorvido e amorosamente meditado; isso fez com que a dor se tenha transfigurado em contemplação; e os autores neotestamentários nos apresentam uma reflexão já muito avançada destes mistérios. João, de sua parte, parece insistir na linha de sua contemplação do mistério cristológico; ele vê na paixão a revelação do “Deus por nós”, isto é, a realização da encarnação: até que ponto Deus se deu a nós em seu Filho, até que ponto o Pai nos ama no Filho.

Finalmente, entremos nos temas mediante os quais João desenvolve a sua contemplação do mistério cristológico na paixão.

1. Temas da inteligência espiritual da paixão

O tema da glória

É preciso indicar antes de tudo o tema da glória, que aliás aparece desde o início do Evangelho: “Vimos a sua glória” (1,14). Já em Caná houve uma primeira manifestação da glória (2,11), que nos deixou intuir em que dimensão esta glória se manifestaria depois: num contexto de humildade e de serviço, como aquele de Caná, mas bem diferente na sua dramaticidade. Depois de Caná, toda a espera da glória que deverá manifestar-se já está orientada para a paixão: esta será realmente o momento glorioso por excelência.

Chegamos assim ao prelúdio da paixão (cfr. 12,23-28). Podemos ler algumas palavras desta passagem, que é essencial para compreender a paixão segundo João. O contexto é conhecido: alguns gregos querem ver Jesus. Jesus responde: “Chegou a hora na qual o Filho do homem será glorificado. Eu vos afirmo e esta é a verdade: se o grão de trigo não cair na terra e morrer, ficará só. Se, pelo contrário, ele morrer, dará muito fruto. Quem ama a sua vida a perderá… Se alguém me quer servir, que me siga, e onde eu estiver, estará também meu servidor” (12,23-26). Depois, no v. 28, volta ao tema da glória: “Pai, glorifica o teu Nome! Veio então uma voz do céu: ‘Já o glorifiquei e o glorificarei de novo’ “. No v. 27, o mistério da glória de Jesus se havia manifestado num contexto de perturbação: “Sinto agora grande aflição. E, que direi? Pai, livra-me dessa hora”. Depois, no v. 28: “Pai, glorifica o teu Nome”. Esta glória está para se manifestar na paixão de Jesus.

Temos aqui uma aproximação de paradoxos: o termo “glória”, na sua acepção ordinária, significa honra, homenagens, favores, poder, sucesso; contudo, a glória de Jesus que nos é descrita aqui passa através da infâmia, dos insultos, os golpes e o esmagamento por parte dos homens. Um paradoxo que supõe uma aceitação da paradoxalidade do mistério de Deus entre nós, que agora se revela nos seus momentos culminantes e mais fortes. Um paradoxo que talvez ainda possa iluminar-se aos nossos olhos, se considerarmos as duas invocações: aquela de Jesus (“Pai, glorifica o teu Nome”) e aquela que está no início do Pai-nosso (“Santificado seja o teu nome”).

Estas invocações assumem todo o seu significado de invocações análogas presentes no Antigo Testamento: “Santifica o teu nome, ó Deus; glorifica-o” queria significar: “Mostra, ó Deus, que és poderoso, que és capaz de salvar; mostra o teu poder extraordinário nas dificuldades, nos sofrimentos do teu povo”. E por isso “Glorifica o teu Filho” (17,1) ou então “a hora em que o Filho do homem deve ser glorificado” (12,23), atendo-nos ao sentido vetero-testamentário, são expressões que poderiam ser traduzidas: “Mostra que o teu Filho é poderoso e capaz de salvar”. Agora esta glória de Deus, este poder extraordinário do Filho, se manifestam na cruz. Por quê? João nos faz entender isso: “Pois Deus tanto amou o mundo que deu seu Filho” (3,16). E por isso Deus mostra a sua glória amando o mundo, e amando-o assim: dando seu Filho mediante a cruz. Deus se revela na sua gloriosa plenitude de morte através dessa doação total que Jesus faz livremente de si por nós.

O tema da exaltação

Um segundo tema, relacionado com o precedente, é aquele da exaltação: a cruz como exaltação. Sobre isso cito três passagens fundamentais.

Uma primeira passagem: “Como Moisés ergueu a serpente no deserto, assim o Filho do homem deve ser erguido, para que todo o que crer nele tenha a vida eterna” (3,14s.). Note-se que é o mesmo escopo que levou João a escrever o Evangelho: “Para que se creia nele e se tenha a vida” (20,31); escopo que está relacionado com a elevação de Jesus, que aqui tem um caráter misterioso e enigmático. O que é, pois, esta elevação?

Em 8,28 é ainda particularmente sublinhado o mistério: “Quando tiverdes levantado o Filho do homem, então sabereis que ‘Eu sou’, e que nada faço por mim mesmo”. A elevação assinalará o momento em que se conhecerá verdadeiramente quem é o Filho do homem, cujo modo de ser repetirá, em tudo e por tudo, aquele de Javé (“eu sou”).

Outro esclarecimento é dado no curso do capítulo 12, que serve de prelúdio à paixão: “Mas eu, quando for elevado da terra, atrairei todos a mim. Dizia isso querendo dar a entender de que morte haveria de morrer” (l2,32s.). Aqui o enigma já se esclarece: a elevação é o erguimento na cruz. De Outro lado, agora aparece um novo paradoxo; com efeito, o termo “elevação” pode ser traduzido com “exaltação”: em tal caso ele serve para exprimir a elevação ao trono de um rei. A elevação de Jesus na cruz, portanto, é uma elevação régia na qual, enquanto o rei elevado no trono domina impondo-se, Jesus domina atraindo. Estamos diante de um jogo de conceitos, que talvez possa espantar por sua dramaticidade, mas que na realidade nos permite ver como João contemplou longamente o significado cósmico do mistério de Jesus crucificado, que é centro de atração da história, revelação do sentido da existência humana e da própria existência de Deus.

O tema da hora

O terceiro tema — também este estreitamente relacionado aos temas que já indicamos — é o tema da hora. Ele aparece já em Caná: “Minha hora ainda não chegou” (2,4). O mesmo tema da hora da glória de Jesus está presente em todo o Evangelho; basta pensar nos textos “veio a hora em que o Filho do homem deve ser glorificado” (12,23), ou “eis que vem a hora” (16,32) etc.

O que representa esta hora na vida de Jesus? O tema é muito rico e complexo; além disso, há muitos aspectos exegeticamente não de todo claros. Eu diria simplesmente isso: esta “hora”, que acompanha Jesus do início ao fim (desejo da hora, a hora que está por vir, que se anuncia, que veio), exprime a vontade de dom da sua vida, que esta presente em toda a vida de Jesus. Desde o início ele está pronto a dar-se e tende para o momento do dom, que será “a sua hora”, isto é, o momento previsto pelo Pai. Em toda a sua vida, Jesus revela a si mesmo como Filho abandonado ao Pai, procurando corresponder totalmente ao desígnio de amor de Deus, que ele deve manifestar a nós. Quando este desígnio de amor pedir a Jesus o dom da vida, em obediência ao Pai, na cruz, então terá chegado sua “hora”.

2. Leitura da paixão

Estas são algumas indicações que podem introduzir-nos à leitura meditada da paixão. Em todo caso, visto que o relato da paixão é bastante longo (são dois capítulos inteiros) e com freqüência a gente se perde por causa das muitas coisas ali encontradas, achei útil ajudá-los na leitura, sugerindo uma possível subdivisão do texto em vários episódios. Indico sete, dos quais agora enumerarei apenas os títulos: ao mesmo tempo, para cada um deles quero fornecer-lhes alguma indicação que sirva para sublinhar o aspecto sobre o qual me parece que João mais insiste.

1. O primeiro episódio (18,1-12), é o da prisão de Jesus. João não tem o relato da agonia no horto, porque deixa de lado os temas do sofrimento imediato, detendo-se muito mais no tema de Cristo revelador. Da prisão de Jesus noto sobretudo três aspectos:

a) Um paradoxo: aquele que é procurado para ser morto se oferece espontaneamente; os homens o procuram, pensando que ele vá fugir, mas ele mesmo se oferece.

b) Jesus se revela como aquele que vai à paixão na consciência de sua divindade: “Eu sou” (ego eimi). Hoje os exegetas têm comumente como certo que esta palavra “sou-o” contém uma clara alusão à identidade de Javé, cujo nome é precisamente “Eu sou”. João nos apresenta Jesus que vai à paixão gloriosamente, na plena consciência de seu ser Deus; assumindo a sua identidade divina, ele nos revela o mistério do Pai.

c) Jesus se preocupa em salvar os seus, em cobri-los: ele é o bom Pastor, que defende os seus e não quer que sofram como ele sofre.

2. O segundo episódio (18,13-27) resulta do entrecruzar-se de dois motivos: Jesus diante dos Sumos Sacerdotes Anás e Caifás e Pedro que o nega. Tais motivos se alternam em quatro quadros: primeiro Jesus é conduzido aos Sumos Sacerdotes, depois a cena se interrompe e se fala de Pedro; a seguir, Jesus é interrogado pelo Sumo Sacerdote, e por fim fala-se de novo de Pedro.Um aspecto que aqui me impressiona é a coragem de Jesus e o medo de Pedro. Jesus se mostra testemunha corajosa e tranqüila; Pedro se espanta e nega. Jesus se apóia no Pai e por isso se apresenta forte na sua atitude de coragem, de calma e de dedicação; Pedro se apóia em si mesmo, e não pode deixar de cair pela própria fragilidade.

Há ainda um aspecto doloroso, de natureza mais íntima, que João quer sublinhar. Jesus se apoia nos seus amigos: “Interrogai-os; eu falei abertamente: interrogai aqueles que me ouviram”; de outro lado, os seus procuram recuar: “Não sabemos quem ele é”; portanto, há um contraste nítido entre a confiança que Jesus deposita neles, e o comportamento deles que parece não merecer esta confiança.

3. O episódio seguinte, o terceiro, é o mais longo (18,28 — 19,16): Jesus diante de Pilatos. Na próxima meditação nos deteremos neste episódio. De todo modo, desde agora posso antecipar que o tema central me parece este: aquele que é julgado reina, isto é, julga. Os homens preocupam-se em julgar Jesus, e ele, precisamente enquanto se deixa julgar, mostra-se de fato o seu juiz e o seu rei.

4. O episódio seguinte (19,17-22) é o da crucificação, onde João insiste no título da cruz, ao qual são dedicados muitos versículos. Aqui o tema me parece consistir na exaltação régia de Jesus. ‘ou então — se se quiser — no contraste entre os homens que se agitam para matá-lo e a sua realeza que se manifesta.

5. O quinto episódio (19,23-30) é o do cumprimento: no momento da morte de Jesus cumprem-se as realidades da salvação. Trata-se de uma cena extremamente importante. Realiza-se a Escritura: os soldados dividem as vestes (esta é uma das poucas citações bíblicas sobre as quais João insiste). Além disso, é dada a Mãe de Jesus aos seus. Com este dom da Mãe a João, tem início a Igreja; poucos amigos de Jesus formam o núcleo da Igreja por ele salva. Agora Jesus pode pronunciar a sua última palavra: “Tudo está consumado”.

Depois disso, a Jesus não resta outra coisa senão “entregar o Espírito”. Também há uma ambigüidade. Jesus “entrega o espírito”, no sentido de que morre; mas a expressão usada por João — e sobre este ponto os exegetas parecem concordes — significa também: “Jesus dá o Espírito”, no sentido de que com sua morte abre as portas à efusão do Espírito. É a glória de Deus que se manifesta, porque através da morte do Senhor o Espírito invade o mundo.

6. Por fim, depois da morte, o último mistério (19,3 1-37). Também aqui duas citações bíblicas (que João só dá nos momentos extremamente importantes), correspondentes aos dois temas da água e sangue e do Cordeiro de Deus. O sacrifício pascal do verdadeiro cordeiro se realizou; o novo Templo, do qual brota a água da vida, já está consagrado para a humanidade.

7. O último episódio (19,38-42) fecha o relato com um tema tipicamente joanino: a coragem dos amigos. A partir da morte de Jesus começa a revelar-se misteriosamente a coragem no coração da queles que são seus amigos: estes começam agora a honrá-lo, ainda que não tenham sido muito coerentes durante a paixão. A glória de Jesus no coração dos homens, já iniciada sob a cruz com os mais íntimos, que aqui começa a difundir-se nos outros; estes criam coragem e vão pedir o seu corpo. “Cem libras de mirra e aloés” representam uma quantidade desproporcionada, que serve bem para dar a medida da saudade com que Jesus, depois de ter aceito o seu destino doloroso, é venerado pelos seus.

Evangelho segundo São João
Carlo Maria Martini
Edições Loyola
S. Paulo – Brasil – 1980