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Nona Meditação
A FÉ E AS SUAS IMPLICAÇÕES

Nesta meditação trataremos antes da importância da fé no Evangelho de João. Depois trataremos de fazer uma descrição sumária; por fim, serão dadas algumas indicações sobre os comportamentos a que ela nos conduz. Diremos também algo sobre os frutos da fé; e, por fim, gostaria de deter-me um pouco na fórmula “procurar a Deus em todas as coisas”.

1. A importância da fé no quarto Evangelho aparece pelo fato de que ela é o escopo da “obra de Deus” (o ergon tou theou). Já em Jo 6,29 encontramos: “Esta é a obra de Deus: que vós creiais”. Por isso toda a obra de Deus — aquela obra que meditamos em 4,34: “Fui enviado para realizar a obra de Deus” — é que se creia. Este é também o escopo de todo o Evangelho: “Estas coisas foram escritas para que creiais que Jesus é o Filho de Deus” (20,31). O sentido exato deste versículo só pode ser compreendido se se entende o “crer” no sentido de um aprofundamento da fé já recebida; o quarto Evangelho não foi escrito “para que venhais à fé”, mas “para que acrediteis que Jesus é o Filho de Deus”, com todas as implicações que isso comporta; e por isso, abraçando estas implicações de boa vontade, tenhais a vida plena nele. Este é o escopo da meditação proposta ao presbítero. Para João, a fé já é também a vida eterna; com efeito, fé é conhecer o Filho que o Pai enviou, e este conhecer é “vida eterna”.

2. Para tentar descrever esta fé, poderíamos tirar do quarto Evangelho duas indicações fundamentais: uma da consideração do objeto da fé, a outra da consideração dos sinônimos desta fé que se encontram em João. Examinaremos agora um certo número de passagens de modo que possamos ter uma certa idéia daquilo que João quer significar com o verbo “crer”.

a) Qual é o objeto da fé? No Novo Testamento o objeto da fé é sempre, num sentido mais ou menos uniforme, o mistério da salvação. Em Paulo prevalece o aspecto da morte e ressurreição de Jesus; em João sobretudo aquele de “Jesus Filho de Deus e Salvador”. Por isso o objeto único e central do crer é Jesus, na concretude de sua vinda do Pai como Filho e na sua iniciativa de salvação pela qual nos leva ao Pai. Basta observar que o verbo “crer” aparece sozinho 12 vezes em contextos do tipo “crer em Jesus, ou crer nas suas palavras”, 36 vezes em contextos do tipo “crer nele”.

O crer se qualifica, pois, como um ato que nos coloca em relação imediata com a pessoa de Jesus e com o seu mistério.

b) Outra indicação sobre aquilo que significa crer pode ser dada pelos muitos sinônimos usados por João. Enumero os seguintes: “receber Jesus”, “vir a Jesus”, “procurá-lo”, “guardar a palavra”, “permanecer nele”. Bastam estes para revelar-nos como a fé é realmente um ato complexo. Como se demonstra que eles são sinônimos? Demonstra-se notando que em João eles são usados paralelamente, um pelo outro. Por exemplo: “Vós não me recebeis: como poderíeis crer?” (5,43s.); “quem vem a mim não terá mais fome, quem crê em mim não terá mais sede (6,35); ainda: “Não credes porque não sois das minhas ovelhas: as minhas ovelhas ouvem” (10,26s.).

Por isso podemos concluir que o objeto único da fé em João é Jesus, em todos os seus aspectos, tanto os mais concretos como os mais sublimes: Jesus que vem, que ensina, que opera, que chama a si todos os homens, que sai deste mundo, mas que vive e permanece nos seus discípulos, enviando-lhes o seu espírito que o manifesta e o glorifica. Por isso exige-se a fé não somente dos apóstolos que se encontram com Jesus, que vão a ele, que o ouvem, que o recebem, mas também de todos os que continuam na Igreja esta atividade de ouvir, receber, pôr-se em sintonia com Jesus, continuamente presente na Igreja. A fé é a atividade fundamental do cristão, aquela que o torna livre. O “crente” é aquele que prolonga, diante das presenças misteriosas e contínuas de Cristo, a atividade dos seus apóstolos, quando o recebem, o ouvem, o aceitam.

Em outras palavras, poderíamos dizer que prevalece em João o aspecto iluminativo da fé, ao passo que Paulo gosta de insistir no aspecto da obscuridade da fé, inerente à contraposição entre a fraqueza humana e o poder extraordinário de Deus: . “Contra a esperança acreditou Abraão (…), vendo seu corpo já sem vigor e crendo na vida” (Rom 4,18-20). Acrescento que talvez João não use o termos pístis (“fé”), precisamente porque não quer sublinhar este aspecto paulino, mas sim o aspecto iluminativo, pelo qual a fé é um caminho dentro da luz divina e para esta luz, como aumento de conhecimento e de clareza. Por isso João fala de “ver”, “escutar”, “conhecer, “compreender”, “vir à luz”. O crer é como que a desembocadura e — diria eu — a unificação de todas estas atitudes de iluminação.

3. Perguntemo-nos agora em que comportamentos se manifesta a fé; queria insistir particularmente num comportamento que me parece bastante importante. A fé, assim como João a descreve, não alcança seu objeto senão através de testemunhos e de sinais; por isso ela realiza, na sua estrutura essencial, duas condições: capacidade de interpretar os sinais como tais, e capacidade de ir além dos sinais. É interessante examinar, a este propósito, quais são os obstáculos que se opõem a estas duas capacidades: de interpretar os sinais e, ao mesmo tempo, de superá-los. João nos indica muitos, mas escolhi três que me parecem característicos da sua espiritualidade e da sua mentalidade.

Encontramos dois no capítulo 6 e um no capítulo 9. No capítulo 6, ao lado de toda uma discussão sobre o valor do sinal e sobre aquilo a que o sinal deve levar, apresentam-se-nos duas atitudes que impedem a fé: a primeira está em concentrar a atenção naquela coisa que é “sinal” (6,26). “Sinal” aqui é a multiplicação dos pães: a multidão procura Jesus com ânsia, encontra-o além do lago e lhe pergunta: “Rabi, quando vieste para cá? Jesus respondeu: Eu vos afirmo e esta é a verdade: vós me procurais, não por causa dos milagres que vistes, mas porque comestes pão e ficastes saciados” (6,25s). O pão era um sinal; eles receberam a coisa, mas não compreenderam o sinal como tal, não compreenderam seu valor significante: por isso procuram Jesus por um motivo diverso daquele que pretendia com a multiplicação dos pães.

O segundo impedimento é aquele que eu chamaria “a obsessão messianica ; vemo-lo descrito em 6,14. Também aqui se trata de uma interpretação errada do sinal: depois da multiplicação dos pães, “aqueles homens, vendo o sinal feito, disseram: ‘Este é verdadeiramente o profeta que deve vir ao mundo’ “. E Jesus, sabendo que vinham para raptá-lo e fazê-lo rei, vai sozinho para o monte. Esta obsessão de encontrar o Messias a todo custo torna-os incapazes de compreender o significado daquilo que Jesus fez.

A terceira atitude que demonstra a nossa incapacidade de interpretar os sinais é a da auto-suficiência religiosa. Encontramo-la presente em diversas passagens, mas sobretudo em 9,41: “Disse-lhes Jesus. Se fôsseis cegos não teríeis pecado. Agora dizeis: Nós vemos. O vosso pecado permanece”. Este é um impedimento que fecha todo discurso de fé: visto que julgais ver, isto é, visto que sois auto-suficientes em virtude do vosso sistema já feito, vos é impossível compreender o significado daquilo que está acontecendo.

Aqui encontramos alguns pormenores dramáticos da chamada “ironia joanina”. Seria interessante ler todo o capítulo 9 sob esta luz: quando não se quer ver, nenhum sinal basta; mais, é o próprio sinal que cega. Outras passagens são igualmente significativas. O cume da ironia é dado por uma frase paradoxal de Jesus: “Porque vos digo a verdade não acreditais em mim” (48,45). O próprio fato de mostrar a verdade é ocasião de cegueira.

A esta incapacidade de ver o significado da realidade opõe-se o que meditamos na cena dos dois discípulos que vão ter com Jesus: “Vinde e vede” (1,39); deixai de lado os preconceitos e experimentai. Também depois, quando Natanael perguntar: “O que pode vir de bom de Nazaré?” (1,46), a resposta será: “Vem e vê”. Mais adiante Jesus dirá a todos indiferentemente: “Se alguém quiser fazer a vontade do Pai, ficará sabendo se a minha doutrina é de Deus, ou se falo por mim mesmo” (7,17). Em outras palavras, Jesus pede que se entre corajosamente na dinâmica dos sinais e se faça a prova, sem pedir continuamente novos testemunhos; no fundo, isso demonstraria que na realidade não se quer escutá-lo.

4. Vejamos agora brevemente algo referente aos frutos desta atitude de fé exigida por Jesus. Também a este propósito João é riquíssimo em indicações; cito somente algumas.

Antes de tudo, recordemos aquele fruto que consiste em compreender a palavra de Jesus como que por conaturalidade (10,26s.). Os crentes reconhecem a sua voz e compreendem o que ele diz, como por instinto, assim como a ovelha reconhece a voz do pastor e compreende o que quer por instinto. Por isso, para os crentes é tornada possível e fecunda a palavra de Deus; e eles compreendem o sentido da Escritura.

Outro fruto é aquele de sair das trevas: “eu vim como a luz do mundo, para que todo o que crer em mim não fique no escuro” (12,46). Isto vale dizer que crer em Jesus — no sentido de dar-se a ele, indo além dos sinais — liberta o discípulo ao menos da grande desorientação: não caminha mais nas trevas. Não que o discípulo não tenha mais incertezas ou dificuldades, mas a desorientação de fundo é tirada.

Por fim, é preciso assinalar, que para João é da fé que deriva o conhecimento do verdadeiro sentido do homem, isto é, do significado da existência humana como existência nascida do Pai e que retornará ao Pai no Cristo. Os crentes compreendem o significado da existência humana à luz da palavra: “Deus amou tanto o mundo que deu seu Filho único, para que todo aquele que crer nele não morra, mas tenha a vida eterna” (3,16). Este é o sentido do homem à luz da fé: ser amado por Deus para a vida.

5. As implicações seculares da encarnação: a abertura para o sentido das coisas. Buscar a Deus em todas as coisas: de que maneira uma situação humana nos coloca na presença de Deus.

Nesta abertura sobre o verdadeiro significado da existência humana, enquanto amada por Deus e chamada a transformar-se — graças ao amor de Deus — na fé em Cristo, coloca-se o último tema que me havia proposto a tratar: o da abertura para o sentido das coisas. Em outras palavras, gostaria de convidá-los a refletir sobre as implicações seculares da encarnação, em relação àquela fórmula tipicamente inaciana que soa: “buscar a Deus em todas as coisas.

Esta fórmula indica eminentemente uma direção de sentido. Sem reduzi-la de maneira simplista a interpretações que não respeitam a sua complexidade, mas levam a formas de fanatismo mistificador ou idolâtrico, gostaria de limitar-me a apresentar-lhes ao menos alguma indicação geral que a meu ver emerge da mensagem joanina.

Perguntemo-nos então de que maneira uma situação humana nos coloca na presença de Deus. Entendo “situação humana” em toda a sua vastidão, enquanto se refere às nossas pessoas particulares, como também a todas as outras situações que de alguma forma são parte da nossa experiência (não existimos como pessoas estáticas, mas como pessoas que interagem com outras e com o mundo). Nas várias situações humanas Deus se nos apresenta antes de tudo como dom. Pensemos na situação do sacramento: é Deus quem se dá; ou então na situação de um encontro: é o dom de Deus que está presente nesta realidade que vem ao meu encontro.

Além de dom, Deus às vezes se apresenta como luz, ou como guia que dirige. Pensemos na presença de Deus na Bíblia, como luz; na presença de Deus no magistério da Igreja, como guia. Deus às vezes se nos apresenta em certas situações como iluminação interior, ou como incitamento e como estímulo exterior. Às vezes se nos apresenta como apelo que nos chama à fraternidade, à compreensão, ao socorro, à dedicação. Às vezes se nos apresenta através da treva a iluminar, ou da mentira a refutar. Em resumo, todas as situações de serviço e de caridade, que prolongam para o bem do mundo a obra do Pai criador e do Filho, são situações em que podemos contemplar e saborear a presença de Deus.

Evidentemente, este é um quadro extremamente vasto e multiforme, em que vale o princípio da analogia, no sentido de que nem todas estas presenças são idênticas, do contrário se cairia numa forma de panteísmo. Cada uma delas tem sua direção e seu sentido. Uma é a presença de Deus como treva a iluminar, outra é a presença de Deus como incitamento, ou como estímulo, ou como apelo. Para não cair num panteísmo prático é preciso lembrar-se continuamente desta analogia. Por este motivo creio que não seja fácil resumir em fórmulas teóricas a experiência do “buscar a Deus em todas as coisas”. De todo modo, devemos convencer-nos do fato de que não está em questão algo absolutamente místico ou inatingível.

Se alargamos a nossa vida e a nossa experiência, sem dar lugar à fantasia e sem vãos castelos mentais, na realidade tocamos continuamente a presença de Deus nisso que devemos fazer e fazemos, nas pessoas que nos enriquecem continuamente, naquelas a que por nossa vez procuramos comunicar os dons que recebemos. Por isso podemos pedir e refletir sobre o que concretamente significa “conhecer, amar e seguir Jesus” (EE, n. 104); que significa para nós e o que comporta o caminho da fé, e que horizontes se abrem para todas as realidades que nos cercam.