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Sexta Meditação
A OBRA DE JESUS, A MESSE, OS DISCÍPULOS

Intitulei esta meditação a obra de Jesus, a messe, os discípulos: são estes alguns temas que aparecem numa passagem de João (4,31-38), que segue o relato do encontro de Jesus com a Samaritana. Ela se insere entre o fim do diálogo com a Samaritana, quando a mulher vai chamar os de seu país e estes estão vindo, e a sua chegada. Entre estes dois momentos há outro diálogo, entre Jesus e os seus, os Doze; é sobre ele que eu queria propor-lhes meditar, no espírito da meditação sobre o “Chamado do Rei”, que abre a segunda semana dos Exercícios (EE, n. 91-98).

O “Chamado do Rei”, como Inácio o apresenta, encontra ressonâncias muito mais imediatas nas cenas de chamamento dos Doze que encontramos em Mc 3,13-18, e textos paralelos, e depois ainda na cena da missão aos Doze (Mc 6,7-13). Nos Evangelhos sinóticos, particularmente em Marcos, o chamamento dos Doze constitui um dos momentos fundamentais da ação de Jesus. João, ao contrário, não tem um chamamento dos Doze tão solene; somente no início, no capítulo 1, se mostra como Jesus trava os primeiros conhecimentos e faz as primeiras amizades. Portanto, prevalece o sentimento da unica e insubstituível responsabilidade de Jesus com relação à missão recebida do Pai para o mundo. Jesus está em ação; e os discípulos apresentam-se, sem mais, associados a ele na sua obra.

Esta passagem é muito breve (somente 7 versículos) e é composta, segundo o estilo de João, levando em consideração diferentes níveis de discurso. Com efeito, parece-me que podemos identificar três níveis: o primeiro é o nível da situação imediata, que se enquadra mediante uma série de perguntas e respostas sobre o alimento. Estas são entrecortadas por outras, que aludem a um nível enigmático, porque podem ser entendidas tanto em sentido literal, quanto em sentido espiritual. Algumas afirmações alcançam diretamente o nível superior.

Podemos fazer uma pré-leitura do texto para compreender resumidamente estes aspectos e assim tornar-nos sensíveis ao que o texto contém: “Os discípulos pedem-lhe: ‘Rabi, come’ (aqui estamos no nível da imediata necessidade diária). Mas ele respondeu: ‘Tenho um alimento que vós não conheceis’ (a resposta é enigmática, poderia valer para o alimento como também para outra coisa que o alimento significa; mas os discípulos voltam de novo ao nível precedente). E os discípulos perguntavam-se entre si: ‘Será que alguém lhe trouxe de comer?’ (Estamos diante de um mal-entendido: eles falam de uma coisa, Jesus fala de outra.) Jesus lhes diz (aqui vem uma afirmação de valor espiritual): ‘Meu alimento é fazer a vontade daquele que me enviou e realizar a sua obra’” (4,31-34). Assim acaba a primeira parte do diálogo.

A segunda começa com um novo enigma: “Vós não dizeis: Mais quatro meses e virá a colheita? (Pode tratar-se de um provérbio ou de um modo de dizer, que de fato se refere à colheita, isto e, à situação presente, ou talvez também ao período do ano; mas logo se passa ao nível enigmático.) Eu vos digo: levantai os olhos e contemplai os campos já lourejantes, prontos para a colheita (o problema é: que campos? De que está falando? Parece que está falando do que disse antes, mas na realidade já é outro discurso). Agora quem colhe recebe a paga e colhe o fruto (até aqui o discurso pode parecer ambivalente) para a vida eterna (já estamos num novo tipo de discurso), de sorte que o semeador compartilhe da alegria de quem colhe. Com efeito, aqui se realiza o ditado: ‘um planta e outro colhe’” (aqui estamos de novo no campo do provérbio, do enigma com muitos significados).

Eis então a especificação em nível superior: “Eu vos mandei colher o que não é fruto de vosso trabalho; outros trabalham e vós herdais o fruto de suas penas. Aqui, embora já estejamos em nível do discurso espiritual, todavia ainda se joga com enigmas, porque no fundo a aplicação poderia também referir-se à situação imediata, àquela dos Samaritanos. Quem lê o discurso poderia pensar: Jesus está prevenindo os discípulos sobre a chegada de uma multidão de gente os samaritanos, que eles acolherão sem nada ter feito para atraí-los. Mas o discurso, como veremos, é muito mais amplo: ele é uma visão profética em que Jesus prevê todo o futuro. Portanto, este é o texto sobre o qual agora podemos refletir. Os pensamentos que lhes proponho seguem precisamente as várias fases do texto. Antes de tudo, o enigma (isto e, os vv. 31-33), depois o v. 34 (Jesus revela o segredo de sua vida) e, por fim, os vv. 35-38, um novo enigma sobre o tema dos apóstolos e da messe.

1. O enigma (vv. 31-33)

O primeiro enigma enxerta-se num mal-entendido; uma pergunta referente ao alimento diário recebe de Jesus uma resposta enigmática. Jesus diz: “Tenho um alimento que vós não conheceis”; mas os discípulos permanecem no nível da compreensão imediata: “Será que alguém lhe trouxe dé comer?” Portanto, há uma situação de distância e de incompreensão entre Jesus e os seus: Jesus não compreendeu. Este aspecto é bastante sublinhado no Evangelho de Marcos. E creio que contém um ensinamento importante para nós, que nunca chegamos a compreender suficientemente o Senhor, nem conseguimos dar-nos conta daquilo que no fundo realmente importa.

Também os presbíteros, também aqueles que lhe estão próximos, com frequência não compreendem o que realmente interessa a ele, e colocam diante dele uma coisa quando na realidade ele quer outra; e por isso, embora animados de boa vontade, erram na maneira de tratá-lo: não conhecemos o mistério de Jesus, que nos foge, porque ele nos chama para algo mais alto. Creio que isso nos deve fazer refletir sobre a nossa própria vida espiritual: fazemos realmente o que Jesus pede de nós? Tratando do tema das trevas, já refletimos sobre a desorientação: o que realizamos realmente de valioso, que lhe agrade? O que fazemos é realmente o que ele nos pede, ou não será outra coisa?

Jesus responde com uma palavra enigmática, mas que já começa a explicar o seu mistério. Jesus afirma que alguém o alimenta secretamente. Na realidade, a palavra dos discípulos alude implicitamente a outra pergunta: “Por que estás falando com esta mulher? O que estás dizendo?”. Ou seja, os discípulos se admiram de que Jesus esteja falando com uma mulher naquela situação e que esteja explicando os segredos do reino; pensando até que lhe tenha dito algo que não disse a eles. Mas Jesus orienta gradual e pacientemente seu desapontamento para o segredo da sua vida, que aqui é comunicado pela primeira vez — de alguma forma — no v. 34 (ainda que depois volte de maneira muito ampla em todo o Evangelho). Jesus lhes diz:

2. Jesus revela o segredo de sua vida (v. 34)

“O meu alimento é fazer a vontade daquele que me enviou, e que eu realize a sua obra”. Agora devemos examinar atentamente este versículo, porque é muito importante.

Temos aqui a menção de alguém que envia e da sua vontade: e esta vontade é o alimento de Jesus. Quem é que envia? É o Pai. E aqui aparece pela primeira vez em João o verbo “enviar”. Doravante encontraremos toda uma série de passagens em que o Pai tem como seu atributo específico o “daquele que envia”. Em outras palavras, Jesus revela aqui o segredo de sua missão, que consiste no seu estar entre nós como enviado do Pai.

Encontramos expressões análogas de novo em 5,23ss., e nos capítulos seguintes até 20,21: “Como o Pai me enviou assim eu vos envio”. Em toda a sua vida, pois, Jesus se apresentará como aquele que é enviado pelo Pai.

É enviado pelo Pai; mas para quê? Para que faça a sua vontade. Que coisa é esta vontade de Deus que Jesus é enviado a fazer da parte do Pai? A palavra “vontade” é importante; vamos encontrá-la mais adiante numa passagem quase idêntica (6,38-40) e volta depois em 7,17. Lendo estes versículos poderíamos perguntar-nos: que coisa é esta vontade de Deus que Jesus vem realizar? Ela é concretamente o desígnio de salvação. Como se especifica a seguir de maneira ainda mais clara, a obra a realizar é o desígnio de Deus para a salvação do mundo. Esta é a vontade de Deus, que é designada como “obra a realizar”; uma obra trabalhosa e difícil, que comporta uma gradualidade de momentos e que deve ser levada até o fim.

Esta é a vontade de Deus. E por esta vontade de Deus cada um de nós é chamado a inserir-se em Jesus. Que significa, pois, para nós “fazer a vontade de Deus”? Quer dizer entrar no desígnio de salvação que Jesus realiza, aceitando a sua presença entre nós com todas as implicações que ela comporta.

A vontade de Deus, que Jesus realiza como enviado do Pai, é o alimento da sua vida. Que significa? Aqui Jesus certamente se refere a toda a tradição judaica, que indica como alimento “a audição da palavra de Deus” (Dt 8,3 e muitas outras passagens análogas). Esta é a essência de sua vida, é o que constitui sua alma, que o define: Jesus se nos apresenta como “obediente ao Pai”, de modo que aqui está a própria definição de seu estar entre nós.

Deveríamos ver mais claramente o que implica este conceito de encarnação, mas já desde agora podemos compreender como a presença de Deus entre nós é colocada por Jesus precisamente através deste ato de obediência que ele realiza no mundo. Aqui está algo que nos deve fazer pensar, porque nós certamente nunca teríamos insistido tanto sobre o fato de que Jesus foi “enviado pelo Pai”: tal verdade só pode derivar de uma revelação sobre a própria essência do mistério de Deus.

Além do verbo pémpo, que encontramos precisamente nestas passagens e em outras (o Pai é ho pémpsas, “aquele que manda”), existem ainda mais de vinte passagens em que aparece o verbo apostello. Este uso inicia-se em 3,17 (“O Pai enviou, apésteilen, o Filho”) e continua até o fim do Evangelho. Temos assim quase cinqüenta lugares em que com insistência a obra de Jesus é definida como o “receber um mandato”. Que significa este por nós? Devemos refletir sobre isso atentamente, contemplando na meditação a pessoa de Jesus.

3. Os apóstolos e a messe (35-38)

O terceiro momento da passagem vai do v. 35 ao v. 38: os apóstolos e a messe. Aqui volta um novo enigma: “Vós não dizeis: Mais quatro meses e virá a colheita? Eu vos digo: levantai os olhos e contemplai os campos já brancos, prontos para a colheita (vede as regiões diante de vós que estão brancas, que já estão prontas para a messe)” (v. 35). Que acontece aqui? Encontramo-nos diante de alguma coisa que do ponto de vista lógico não funciona, porque, se “são quatro meses”, estamos no mês de fevereiro-março; dado que a colheita se dá no mês de junho, estamos ainda muito atrás, e na Palestina pode ainda estar fazendo frio, e por isso não há nenhuma iminência a contemplar. A coisa se explica antes como uma visão profética de Jesus. Colocado diante deste primeiro episódio do seu apostolado (a Samaritana acabou de chegar, e estão por vir outros da aldeia), que é talvez um episódio modesto e um pouco banal, ele entrevê a sua missão e a dos discípulos: portanto, a messe é grande, imensa, e os campos já estão prontos (provavelmente Jesus pensa na colheita messiânica, como é descrita pelos profetas, por exemplo em Amós 9,13).

Creio que aqui nós poderíamos refletir sobre a maneira pela qual Inácio descreve o mundo na “contemplação da encarnação”: “Ver a imensidade do mundo, com todas as pessoas em suas diversas situações: há quem chora, quem ri, quem sofre, quem morre, quem vai ao inferno”… (cfr. EE, n. 101-109). Eis uma visão análoga àquela que Jesus nos apresenta: um olhar sobre a imensidade da obra do Pai à qual Jesus quer começar a associar os discípulos. Até agora só ele estava em cena; a partir desse momento, ele procura fazer entrar de alguma forma também no ânimo dos discípulos aquele sentimento de ansiedade e de responsabilidade que se apodera dele em virtude da missão recebida do Pai. Por isso Jesus já vê profeticamente a colheita, já se recolhe o fruto da messe; esse fruto é levado para casa e a gente se alegra. Esta é uma alegria interior, na qual ele antecipa a visão messiânica maior da colheita final, que ele procura comunicar aos seus, tornando-os participantes da obra que o Pai confiou à sua responsabilidade.

Neste ponto encontramos um salto típico na maneira de falar de João, que de resto tem uma correspondência imediata também na análoga passagem de Mt 3: “A messe é grande… “. Depois que Jesus procurou participar aos seus as suas ânsias, a sua responsabilidade e também a sua alegria pelo imenso trabalho que o Pai lhe deu a realizar, Jesus lembra que este trabalho não é unicamente obra dos apóstolos. Isto é, parece que ele quer compensar com as palavras seguintes aquele sentimento de medo que pode apoderar-se da pessoa diante desta obra imensa: “Nisto o ditado está certo: um planta e o outro colhe’. Eu vos mandei colher o que não é fruto de vosso trabalho; outros trabalham e vós herdais o fruto de suas penas” (vv. 37s.). Que quer dizer Jesus com esta linguagem parabólica, que entre outras coisas parece querer referir-se a uma passagem do profeta Miquéias, que em si mesma é uma passagem de tristeza: “Aquele que semeia não colherá” (cfr. Miq 6,15)? Jesus toma a palavra em outro sentido: um semeia e outro colhe; vós colheis o que outros semearam.

Parece-me que aqui Jesus está introduzindo os apóstolos num aspecto muito importante de sua obra. Com efeito, existe a obra do Pai que Jesus deve realizar e à qual ele associa os seus de modo gradual, na medida em que estes se tornam capazes de carregá-la pela crescente maturidade do seu coração, mas sem nunca descarregá-la sobre eles, como se fossem os únicos responsáveis. Jesus quer indicar-lhes (e João quer indicá-lo à sua comunidade dos presbíteros) que se trata de uma obra situada no âmbito de uma longa tradição viva, da qual eles não são nem o início nem o fim, e da qual por isso não são os únicos responsáveis; pelo contrário, como se recebe a missão, assim também se recebe a colocação nesta ampla tradição, da qual cada um de nós é uma parte e na qual faz alguma coisa, sem que ninguém seja o responsável ou dominador absoluto.

Notemos o mesmo conceito na passagem de Mateus: “A messe é grande, os operários são poucos”, que é um grito de alegria e de angústia ao mesmo tempo; com efeito, enquanto à primeira vista a gente seria levada a concluir: “Por isso, ide logo colher”, a conclusão é: “Orai ao Senhor da messe”. Como se dissesse: “Não sois vós os responsáveis finais da obra de Deus”! Esta obra é de Deus: Deus a confiou ao Filho e o Filho a participa a nós, mas ela permanece obra longa, ampla e de muitos.

Assim começamos a entrever uma das linhas típicas eclesiais do Evangelho de João, que é aquela de ajudar o discípulo, o presbítero, a compreender a presença de Jesus na tradição viva da Igreja e a inserir-se nela, aceitando que a obra de Deus venha e se realize desta maneira; por isso tirando do coração dos discípulos e dos presbíteros aquele sentimento de angústia segundo o qual nós deveríamos fazer tudo como se tudo nascesse e morresse conosco. Nós entramos sempre num trabalho que outros já fizeram, colhendo a herança de outros e preparamos o caminho para os que vêm. E isso, também humanamente, nos tranquiliza e torna mais simples, mais concreta, mais humilde a nossa ação. Jesus faz um aceno específico aí onde começa a formação eclesial dos seus discípulos.

Podemos concluir a nossa meditação considerando a passagem com que termina o relato da Samaritana: “Nós vimos que este é verdadeiramente o Salvador do mundo” (4,42). Este é o único lugar do Novo Testamento em que Jesus é chamado “Salvador do mundo”. E assim é chamado na conclusão dos dois episódios de Nicodemos e da Samaritana, como síntese do que aconteceu. Jesus falou tanto a judeus como a samaritanos; daqui se vê sua destinação universal. Jesus, “Salvador do mundo”, é pois aquele que nos faz compreender as necessidade do mundo inteiro e o modo pelo qual devemos comportar-nos enquanto enviados ao mundo.

Evangelho segundo São João
Carlo Maria Martini
Edições Loyola
S. Paulo – Brasil – 1980