O Papa abre este sábado em Roma o sínodo em que quer colocar toda a gente a escutar-se e a debater o que deve ser a Igreja e a sua missão na sociedade. Este é o coração da reforma de Francisco, coincidem vários analistas. Mas o processo está atrasado em Portugal (apesar de ter havido um dedo português na escolha do tema), é inexistente no plano dos bispos americanos e quase ignorado em várias partes do mundo.
António Marujo | 9 Out 21
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Quando, na manhã deste sábado, 9 de Outubro, o Papa Francisco presidir à sessão de abertura do Sínodo da Igreja Católica, cuja assembleia conclusiva de bispos será daqui a dois anos, estará a forçar a nota de um processo que, até agora, não parece ter provocado muito entusiasmo em vários países – incluindo Portugal, Reino Unido, Espanha ou Estados Unidos, por exemplo.
Este é “talvez o projecto mais audacioso” do pontificado do Papa argentino, notava há um mês, na sua coluna “Sinais dos tempos”, no La Croix International, o teólogo católico e historiador Massimo Faggioli (ligação reservada a assinantes). No seu livro O Pastor Ferido, o jornalista inglês Austen Ivereigh concorda com Faggioli: “a sinodalidade é de vários modos o coração da reforma de Francisco”.
O processo que nesta manhã de sábado será aberto tem, na sua origem, pelo menos um dedo português: há seis anos, no final do Sínodo sobre a família, o patriarca de Lisboa deixara na lista de sugestões para temas seguintes precisamente a sinodalidade. “Com este Papa, a sinodalidade vai ser uma constante na vida da Igreja” e merecia mesmo um Sínodo dos Bispos para debater o tema, dizia o cardeal Manuel Clemente nessa altura.
A dinâmica proposta para este sínodo é inédita: durante dois anos, o Papa quer colocar toda a Igreja Católica a reflectir e debater a sinodalidade – ou seja, a participação de todos os baptizados na vida e nos processos de decisão da comunidade crente em que estão inseridos. Se já em relação a anteriores assembleias Francisco tinha tentado dinamizar a participação do maior número de católicos nas fases preparatórias, desta vez quer colocar a Igreja toda a debater em encontros locais, regionais e continentais a sua dinâmica interna e o seu modo de estar em sociedade.
Em declarações à agência Ecclesia e Família Cristã, em Roma, o arcebispo do Luxemburgo e relator-geral do Sínodo, cardeal Jean-Claude Hollerich, resumia o que está em causa: “Deveríamos fixar as regras para vermos como a Igreja irá atravessar os tempos. Encontramo-nos numa mudança de civilização muito grande. Encontramo-nos completamente nos inícios duma nova era de informática, e isto só agora começou. Toda a nossa maneira de pensar, de sentir, de reagir tem que mudar; não podemos ser ingénuos.”
“Escutar, mais do que ouvir”
O encontro desta manhã no Vaticano contará com mais de 200 participantes de todo o mundo, entre representantes de organismos internacionais de bispos, membros de congregações religiosas e movimentos católicos, além de elementos da Cúria Romana e do Conselho Consultivo dos Jovens.
Entre os intervenientes, estarão a teóloga espanhola Cristina Inogés, o jesuíta Paul Béré, do Burkina-Faso, os cardeais Jean Claude Hollerich, relator-geral, e Mario Grech, secretário-geral, além de vários leigos, religiosos e bispos, e também o irmão Aloïs, prior da comunidade monástica ecuménica de Taizé (França). O Papa Francisco fará também um discurso. No domingo, presidirá à eucaristia que marca a abertura oficial do Sínodo (a partir das 9h de Lisboa) e fará também a homilia.
Em ambas as ocasiões, é de prever que o Papa Francisco insista em várias das ideias que, para ele, são fulcrais neste processo e na intuição do caminho sinodal. Ideias que ele referiu em 2015, em pleno Sínodo sobre a família, no discurso que fez sobre os 50 anos da instituição desta assembleia.
O Sínodo, disse na ocasião, é “a manifestação mais evidente dum dinamismo de comunhão que inspira todas as decisões eclesiais”. E uma Igreja sinodal, acrescentou, “é uma Igreja da escuta, ciente de que escutar ‘é mais do que ouvir’. É uma escuta recíproca, onde cada um tem algo a aprender: povo fiel, colégio episcopal, bispo de Roma: cada um à escuta dos outros; e todos à escuta do Espírito Santo, o ‘Espírito da verdade’, para conhecer aquilo que Ele ‘diz às Igrejas’.”
A sinodalidade tem também relação com a forma como a Igreja se insere na sociedade, afirmou o Papa. “O nosso olhar estende-se também para a humanidade. (…) Compartilhando as dificuldades da história, cultivamos o sonho de que a redescoberta da dignidade inviolável dos povos e da função de serviço da autoridade poderá ajudar também a sociedade civil a edificar-se na justiça e na fraternidade, gerando um mundo mais belo e mais digno do homem para as gerações que hão-de vir depois de nós”.
“Nada acontece”
De acordo com o calendário e o guião divulgados em Maio pelo secretário-geral do Sínodo, cardeal Mario Grech, cada uma das três mil dioceses católicas do mundo deveria estar neste momento a organizar já, para a próxima semana, uma assembleia semelhante à que neste sábado decorre no Vaticano. “O bispo diocesano local celebrará o mesmo programa [que o Papa celebra neste sábado]: 1) Sessão de abertura e tempo para reflexão; 2) Orações litúrgicas e celebração da Eucaristia.”
Ou seja, para lá do programa do próximo fim-de-semana, deveria estar concluída a constituição de equipas e deveriam ser já conhecidas as propostas de metodologias de auscultação e de debate.
A avaliar pelas notícias e comentários que surgem um pouco por toda a imprensa especializada, o processo está muito atrasado e pouco está a acontecer. No texto já citado, Massimo Faggioli notava que “muitos amigos e colegas de todo o mundo [diziam] que nas suas dioceses nada acontece: não ouviram nada sobre a preparação para a celebração dos sínodos locais, nem do seu bispo nem do seu pároco”.
Em Portugal, por exemplo, a maior parte das dioceses ainda só tem nomeado o responsável pelo processo, sem que as equipas tenham sido constituídas. E no Reino Unido, o semanário católico The Tablet escrevia esta semana que, “num monumental fracasso da liderança, demasiadas dioceses estão a falhar o caminho sinodal”.
Há um mês, o conselho permanente da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP) debateu em Fátima o processo sinodal e apelou ao envolvimento das comunidades católicas. “A intenção é que todos sejam auscultados”, disse na ocasião aos jornalistas o padre Manuel Barbosa, secretário da CEP. Na próxima terça-feira, o conselho permanente volta a reunir e o tema estará de novo em agenda, mas os mecanismos de consulta estão, nesta primeira fase, centralizados em cada diocese.
As excepções a nível mundial são fáceis de enumerar: Alemanha e Austrália já tinham iniciado um caminho sinodal antes de o Papa convocar esta assembleia. Na Itália e na Irlanda, o processo já deu passos visíveis. Na América Latina, a cultura de participação e corresponsabilidade já existe – e, notava Faggioli, é dela que procede o Papa Francisco.
Já nos Estados Unidos, por exemplo, o Plano Estratégico da Conferência dos Bispos Católicos para 2021-2024 nem sequer menciona o processo – mesmo que fosse de passagem. “As experiências de sinodalidade a nível diocesano são muito raras nos Estados Unidos – um sinal de subdesenvolvimento eclesial, mesmo dentro de uma Igreja que é muito mais sociologicamente vital do que as Igrejas na Europa, por exemplo”, notava Faggioli no texto citado.
Este historiador dizia ainda não ser novidade a “grande variedade de tipos de recepção – e mesmo de não recepção – do convite de Francisco para o processo sinodal 2021- 2023: “a história dos sínodos é, de um ponto de vista institucional, também uma história de fracasso.” E apesar de o Concílio de Trento, no século XVI, ter mandatado os bispos para realizarem regularmente sínodos diocesanos e metropolitanos (o diocesano deveria ser anual); e apesar de o Código de Direito Canónico de 1917, obrigar a sínodos diocesanos cada dez anos (CIC 1917, cân. 356-362), isso raramente aconteceu. Por isso, a cultura sinodal é ainda hoje rara no catolicismo.
É isso que Francisco pretende alterar com o processo que neste sábado se inicia em Roma.