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Décima Primeira Meditação
OS “TRÉS BINÁRIOS” EM SÃO JOÃO
Nos Exercícios Espirituais, na tarde do quarto dia, depois de ter feito a meditação dos “Estandartes”, é proposta a meditação sobre “as três classes de homens” (EE, n. 149-156).
Esta meditação, depois do primeiro preâmbulo, tem um segundo que é insolitamente grandioso: “Ver a mim mesmo diante de Deus nosso Senhor e a todos os santos, com desejo de conhecer o que é mais agradável à divina Bondade” (EE, n. 151). Depois, o terceiro preâmbulo nos faz pedir “graça para escolher o que é de maior glória da Sua Divina Majestade e salvação de minha alma” (EE, n. 152).
Encontramos os temas iniciais do “Princípio e Fundamento”, que reaparecem aqui para permanecerem o centro da ação: a glória de Deus e a salvação da alma, no espírito do seguimento de Cristo.
Esta meditação, como é sabido, nos faz refletir em três diferentes atitudes diante do problema de libertar-se de um certo apego. No exemplo sugerido por Inácio, trata-se de uma soma de dinheiro. Evidentemente, esta soma de dinheiro pode ser equiparada a qualquer outra posse inquietante. Há muitas posses que carregamos e que não nos inquietam, ainda que nos desagradasse sermos privados delas: possuímos a vida, por exemplo, e nos desagrada perdê-la, mas geralmente isso não constitui problema; temos saúde, desagrada-nos perdê-la… e assim por diante. No caso proposto por Inácio, ao contrário, trata-se de uma posse inquietante, isto é, de algo cuja perda e cuja aquisição nos fascina excessivamente.
A meditação termina, depois de ter feito o inventário das várias atitudes possíveis, indicando a atitude mais idônea, que não é tanto aquela de quem renuncia de fato, quanto aquela de quem renuncia no afeto, de modo a estar disposto a escolher com toda liberdade. Depois, se nos faz repetir o colóquio da meditação dos “Estandartes”, mas aqui com maior insistência, como diz a nota adjuntiva: “Quando sentimos afeto ou repugnância à pobreza atual, quando não estamos indiferentes frente à pobreza ou à riqueza, é muito importante, para extinguir este afeto desordenado, pedir que o Senhor nos escolha para a pobreza atual, e protestar que se quer, se pede e se suplica isso desde que seja para o serviço e louvor de Deus” (EE, n. 157). Isso demonstra qual deve ser a força do empenho no pedir a libertação.
A quem deseja meditar sobre uma situação análoga àquela sugerida por Inácio, poderia aconselhar uma página do Evangelho joanino, cujo aprofundamento pode ser interessante: trata-se das discussões que surgem em torno do milagre do cego mudo, no capítulo 9. Já vimos algo sobre este capítulo: a primeira parte e a última (o cego curado, o cego que se dirige a Jesus). Entre estas duas partes há uma intermediária muito longa (do v. 8 ao v. 34), em que Jesus não aparece: emerge, ao contrário, um emaranhado de situações em que agem pessoas que intervêm tomando posição com relação ao sinal oferecido por Jesus. Podemos dividir estas pessoas em três categorias: as que dizem não ao sinal, porque por opiniões preconcebidas não o podem aceitar e fazem de tudo para não aceitá-lo; aquelas que compreenderam o sinal, mas não querem comprometer-se; e aquelas que, ao contrário, se decidem. Vejamos brevemente cada uma destas categorias.
1. Quem diz não ao sinal? São principalmente os fariseus. Vejamos as características de sua atitude sublinhadas por João: eles trazem juízos já feitos sobre Jesus dos quais não querem se desfazer. Por exemplo, no v. 16: “Este homem não observa o sábado: por isso não é de Deus”. Ou então quando os fariseus chamam pela segunda vez o cego curado e lhe dizem: “Dá glória a Deus: nós sabemos que este homem é pecador” (9,24). Eles já decidiram quem é Jesus e falam com base em juízos já feitos, insistindo no verbo “saber”: “Nós sabemos”. . . Tal expressão aparece duas vezes no v. 29: “Nós sabemos que Deus falou a Moisés; quanto a este homem, não sabemos de onde vem”. Portanto, para esses é suficiente o que já sabem, nem têm capacidade de escutar e ver a situação assim como é. Quando perguntam, pela terceira vez, ao cego curado: “Que te fez ele, como te abriu os olhos?”, esse responde impaciente: “Já disse e não quisestes escutar. Que pretendeis ainda ouvir? Será que desejais fazer-vos também discípulos dele?” (9,26s.). Eles querem ouvir de novo as mesmas coisas, mas para negá-las de novo; o seu é um ouvir sem escutar. Esta atitude é apresentada por João como fruto de zelo pela lei: “Nós sabemos que Deus falou a Moisés” (9,29); por isso eles não querem fazer o mal: “Nós somos discípulos de Moisés” (9,28), ao passo que acusam Jesus de haver faltado ao sábado. Eles se sentem animados por um zelo bom, religioso.
O que nos diz tudo isso? Certamente nos faz refletir sobre a cegueira de quem não quer ouvir. Nada consegue convencer uma pessoa que se ligou emotivamente a certa posição. Mas então poderíamos dizer: devemos estar prontos a renunciar a toda posição, portanto a todas as convicções que temos conseguido, à nossa cultura e talvez também à fé?
É claro que seria ridículo pôr continuamente em jogo tudo: ninguém resistiria a semelhante difração total de si. O que se nos pede é muito menos. Pede-se que nos libertemos das posses inquietantes, ou seja, daquelas coisas que afirmamos com emotividade excessiva e com segurança ostentada. As coisas que Deus nos dá como dom seu e que realmente possuímos são tais que podemos afirmá-las tranquilamente, com calma; podemos também vê-las colocadas em discussão sem que nós mesmos nos sintamos questionados, porque Deus no-las dá com tranquilidade e nós as possuímos seguramente.
A situação se torna perigosa quando as coisas são afirmadas com uma emotividade superior ao que está em jogo e com uma ostentação de segurança que serve apenas para revelar a real insegurança de fundo dos interessados. Se os fariseus tivessem realmente a certeza de que Cristo não podia fazer milagres, não teriam interrogado várias vezes o cego, perguntando-lhe ansiosamente: “O quê? Mas como?” O próprio fato dessa insistência e dessas oposições tão emotivas mostra que há nelas uma profunda insegurança e que nos encontramos diante de uma daquelas posses inquietantes que devem ser questionadas.
2. A segunda categoria é aquela das pessoas que não querem comprometer-se. São pessoas simples, honestas, que vêem e compreendem, e visto que — ao menos aparentemente — não têm posições a defender, sua primeira reação é sadia. Eis um exemplo: “Os vizinhos e os que antes o conheciam como mendigo diziam: Não é ele que vivia sentado a mendigar? Uns diziam: É ele mesmo. Mas outros afirmavam: Não é ele, não; e sim alguém parecido com ele. E ele próprio afirmava: Sou eu mesmo. Perguntaram-lhe então: Como foi que teus olhos se abriram? Respondeu: Aquele homem chamado Jesus fez um pouco de lama, untou-me os olhos com ela e me disse: Vai a Siloé e lava-te. Fui, lavei-me e comecei a enxergar” (9,8-11).
Esta gente mostra-se pronta a uma aceitação simples e concreta; contudo, basta que intervenha um receio do exterior ou uma pressão social para que logo recuem. Assim acontecerá que estes apelarão para os fariseus (cfr. 9,13): cabe a eles julgar, eles é que sabem; nós temos medo de pronunciar-nos, nao queremos aborrecimentos…
Esta atitude aparece ainda melhor nos pais, que respondem como gente simples e honesta: “Sabemos que é nosso filho e que nasceu cego. Mas não sabemos como é que está vendo agora e quem lhe abriu os olhos. Perguntai a ele. Tem idade bastante. Explique-se ele próprio a seu respeito” (9,20s.). E João conclui: “Os pais diziam isso com medo dos judeus, os quais já tinham decretado que se alguém confessasse que Jesus era o Cristo, seria expulso da sinagoga” (9,22). Eis por que os pais diziam: “Perguntai a ele. Tem idade bastante”.
Reconhecemos aqui aquele medo de nos encontrarmos em situações difíceis, por causa da pressão social de pessoas ou de opiniões que estão acima de nós, que com frequência nos parece totalmente insuperável; na realidade, não há nada de mais tremendo do que a pressão social que nos cerca de todos os lados: e às vezes bastam oito ou dez pessoas para formar o ambiente em torno de nós e para fechar-nos irreparavelmente.
3. O terceiro tipo de pessoas — infelizmente pouquíssimas nesta passagem — é constituído por aqueles que se decidem por Jesus. Quem são? Em primeiro lugar, alguns Iariseus, que demonstram estar dispostos à aceitação do sinal: “Alguns dos fariseus diziam: Este homem não vem de Deus, pois não guarda o sábado. Mas outros também diziam: Como poderia um pecador fazer tais milagres? E havia divisão de opiniões entre eles” (9,16).
Mas quem sobretudo se decide por Jesus — e João nos mostra as etapas sucessivas do seu caminho — é o cego curado, que, precisamente diante da contestação, se eleva a uma compreensão sempre mais clara do evento de que foi protagonista; ele fica tranquilo e dá as respostas mais óbvias, deixando-se guiar pela natureza das coisas que vão acontecendo e abrindo os olhos aos sinais assim como sao. Por isso ele chega a compreender quem foi que o beneficiou: um homem que tantos contestam, mas cuja bondade e amizade ele experimentou. Aqui há toda a honestidade de quem reconhece a ação de Deus na própria vida: primeiro a reconhece nos seus sinais, depois passa destes ao conhecimento da amizade que Jesus mostra através daqueles sinais e daquela proximidade com o Senhor que vence todo medo.
É este o ensinamento fundamental que Inácio indica na segunda semana: para libertar-nos de todos os nossos vínculos não vale o princípio de enfrentá-los diretamente, mas antes aquele de colocar-nos em contato com a pobreza, a vida humilde, a pessoa amável de Cristo. Porque somente depois de ter chegado à familiaridade com ele poderemos enfrentar os pontos difíceis das nossas escolhas e achar tudo mais fácil: verificar que as coisas, depois do conhecimento de Cristo, nos orientam quase espontaneamente para escolhas que, embora ainda possam exigir de nós certo esforço, sentiremos que brotam do interior naturalmente.
No colóquio final poderemos pedir, inspirando-nos nas palavras da primeira carta de João: “Tu, ó Senhor, que dás aquela perfeita caridade que exclui todo medo, dá-me este dom perfeito, de maneira que todo temor presente na minha vida possa ser vencido corajosamente através da>união com a pessoa de Jesus” (cfr. 1 Jo 4,18).
Evangelho segundo São João
Carlo Maria Martini
Edições Loyola
S. Paulo – Brasil – 1980