Terceira Meditação
OS INIMIGOS DE JESUS
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O Evangelho de João não nos fala apenas de amigos, mas também abundantemente dos inimigos do Senhor. É um Evangelho realista que, desde o início, ao lado da luz coloca as trevas, e depois desenvolve coerentemente o tema da oposição a Jesus. Agora devemos refletir sobre os obstáculos que se opõem à presença de Jesus entre nós, segundo o que nos diz o quarto Evangelho.
Esta meditação corresponde, de alguma forma, à meditação dos Exercícios “sobre os três pecados”, que é a primeira meditação da primeira semana (EE n. 45-54).Divido a meditação em três partes:
1. A primeira parte consistirá na leitura de alguns textos joaninos, em que entram em cena os inimigos. Tomei apenas alguns textos até o capítulo 10, evitando portanto entrar no tema da paixão; trata-se de poucos exemplos; poder-se-iam encontrar outros. Como estão vendo, o elenco começa no capítulo 5, porque é ali que começam as grandes controvérsias que depois ocuparão sobretudo os capítulos 7 e 8.
2. A segunda parte procurará inverter toda a matéria e ver a questão não já partindo dos inimigos de Jesus, mas partindo do próprio Jesus. Depois de escutar as censuras que os inimigos de Jesus lhe dirigem, se tratará de prestar atenção às coisas de que Jesus se lamenta e que, por sua vez, ele censura nos outros.
3. Como terceira parte proponho um episódio específico em que a ira de Jesus explode contra alguém. É o episódio da purificação do Templo, que nos permite concretizar melhor os nossos pensamentos.
Primeira parte:
alguns textos joaninos, em que entram em cena os inimigos de Jesus
a) No capítulo 5 aparecem antes de tudo como inimigos de Jesus aqueles que o acusam de violar o sábado: por isso os judeus o perseguiam, “porque fazia estas coisas em dia de sábado” (5,16). Aqui temos um grupo que poderíamos chamar integristas, ou formalistas; estes se escandalizam de Jesus e, sem escutá-lo, se põem a combatê-lo.
b) Um segundo episódio de oposição a Jesus nos é narrado em 7,32 e depois em alguns dos versículos seguintes: “Os fariseus perceberam que o povo cochichava tais coisas a respeito de Jesus e eles com seus sacerdotes-chefes mandaram alguns guardas prendê-lo”. Aqui há uma oposição direta a Jesus, em razão da qual se tenta prendê-lo. De onde parte esta oposição? Ela parte da audição das palavras do povo, narradas em 7,31: “Contudo, muitos dentre o povo acreditavam nele e comentavam: ‘Quando vier o Cristo, por acaso fará mais milagres do que ele?’”
De tal oposição fala-se ainda em 7,46ss., quando os servos enviados para prendê-lo tiveram medo e não o prenderam; por isso se desculpam, dizendo: “Jamais um homem falou assim. Responderam então os fariseus: ‘Vós também ficastes seduzidos? Por acaso alguém dos chefes ou dos fariseus acreditou nele? Mas esta gente que não conhece a lei é maldita!’ Nicodemos, que antes tinha ido encontrar-se com Jesus, e era um deles, lhes disse: ‘Acaso nossa Lei condena alguém sem primeiro ouvi-lo e conhecer suas ações?’ Responderam-lhe: ‘Tu também és galileu? Investiga e verás que nenhum profeta surge da Galiléia’”. Estes inimigos de Jesus são aqueles que, medindo a obra de Deus com o próprio metro de possibilidades e de razão, nada aceitam que vá além disso; por isso condenam Jesus que não entra em seu esquema mental.
c) Encontramos um terceiro episódio em 8,48.52-53. Aqui, os inimigos de Jesus são aqueles que o acusam de ser endemoniado: “Responderam os judeus e disseram-lhe: ‘Não temos razão de dizer que és um samaritano e um possesso’?… Os judeus afirmaram-‘Agora estamos seguros de que estás possesso do demônio. Abraão e os profetas morreram e tu dizes: ‘Se alguém guardar a minha palavra, não morrerá nunca!’ Por acaso és maior que Abraão, nosso Pai, o qual morreu, e maior do que os profetas, que também morreram? Quem tens a pretensão de ser?’”
É importante para compreender esta acusação — assim como a apresenta João — ler também os versículos precedentes 44.45.46, onde Jesus é o primeiro a acusar (são versículos que citaremos também na segunda parte da meditação): “Vós tendes o diabo por pai, e quereis cumprir os desejos do vosso pai. Ele foi assassino desde o começo do mundo e jamais esteve com a verdade, porque nele não há verdade; quando ele mente, faz o que lhe é próprio: ele é mentiroso e pai da mentira. Mas a mim, que digo a verdade, vós não dais crédito. Quem de vós pode me acusar de pecado? E se vos digo a verdade, por que não acreditais em mim? Aquele que é de Deus ouve a palavra de Deus; se vós não me ouvis é porque não sois de Deus”.
Como se configura aqui a oposição? A oposição nasce das acusações de Jesus. Jesus acusa estas pessoas de hipocrisia, de mentira, e isso suscita toda a sua indignação; por isso passam ao ataque e se fecham à audição da palavra. Percebe-se aqui toda a sensação de mal-estar e de rancor que se apodera de uma pessoa que se vê contestada, criticada; então, sem pensar naquilo que pode haver de justo ou óbvio na acusação sofrida, a pessoa se defende investindo contra o acusador.
Por fim, convido-os a se deterem em 8,58-59 e 10,31-33: inimigos de Jesus são aqueles que procuram apedrejá-lo. Procuram apedrejá-lo porque Jesus fala de maneira nova e incompreensível de sua relação com o Pai. Aqui o tema da oposição se exprime como tendência a fechar-se ao mistério da pessoa de Jesus e ao mistério do Pai, de Deus que se manifesta nele. Estes episódios captam um único aspecto fundamental do pecado: aquele de Iechar-se à verdade, ou seja, intolerância para a verdade, que é intolerância para a palavra de Deus como nova, como diferente, como capaz de redirecionar o nosso pensamento. Não há dúvida de que este é um tema que nos faz tremer se realmente o aplicarmos a nós mesmos.
Para concluir, é preciso notar que todas estas oposições estão concentradas na pessoa de Jesus. Ele é a chave não somente da amizade com Deus, mas também do pecado. Algo existe aqui de misterioso que não podemos explicar com palavras, mas que é útil ao menos procurar contemplar.
Segunda parte:
as coisas de que Jesus se lamenta e que, por sua vez, ele censura nos outros
Agora tentaremos especificar melhor esta misteriosa oposição a Jesus, invertendo a perspectiva e perguntando-nos: o que é que Jesus censura nos seus adversários? Quais são as acusações que dirige contra eles? Partindo ainda do capítulo 5, indico uma série de textos que juntei em três grupos fundamentais.
a) Encontra-se uma primeira série de cerradas acusações de Jesus aos seus adversários em 5,37-38 e 42-44:
vv. 37-38: “Aquele que me enviou, o Pai, esse dá testemunho de mim. Mas vós nunca ouvistes a sua voz e nunca vistes seu rosto, e sua palavra não permanece em vós”. Aqui poderíamos perguntar como pode isso ser uma censura (“nunca ouvistes a voz de Deus, nunca vistes o seu rosto”): se para os hebreus Deus é absolutamente invisível, como é que se pode censurar alguém dentre eles por não ter visto a Deus? A acusação, ao contrário, é certamente gravíssima porque se refere à audição da Palavra: lestes a Bíblia e a sabeis de cor, e não ouvistes a sua Palavra; esta é uma acusação que vai direto ao coração da atitude dos piedosos hebreus com os quais Jesus entra em choque. A chave é dada’ pela segunda parte do versículo 38: “Não credes naquele que me enviou”. Ninguém pode ver a Deus, mas ele pode e deve ser visto na pessoa de Jesus, e a atitude para com ele corresponde à atitude assumida para com a Palavra, que é o desígnio e o próprio mistério de Deus. Se eles não reconhecem Jesus e não acreditam nele, é porque não ouviram a Palavra; e visto que não ouviram a voz de Deus, por isso não vêem o seu rosto manifestado no seu convite.
v. 44: “Como podeis acreditar, vós que recebeis glória uns dos outros, e a glória que vem só de Deus vós não a procurais?” (Aqui o texto é bastante difícil: a versão em italiano da CEI traduz assim: “Como podeis crer, vós que tomais a glória uns dos outros, e não procurais a glória que vem de Deus?” Note-se que muitos manuscritos omitem a palavra Deus: “do Só”.) Portanto, aqui está em questão a vanglória destas pessoas.
Poder-se-ia pensar que o tema é banal: como é possível que da vanglória possa nascer uma oposição total à pessoa de Jesus? Todavia, não há dúvida de que para João este é um tema importante. Esta atitude de sustentar-se com o louvor mútuo (“eu te louvo para que tu me louves”) é bastante comum na realidade de grupo, sobretudo se se trata de grupos que se afirmaram: basta pensar no mundo académico ou no ambiente científico; aqui ela é vista como uma das causas fundamentais que nos impedem de libertar-nos do condicionamento da opinião de outrem, e portanto de crer na verdade de Jesus.
Repito que isso poderá parecer-nos banal; parece-nos até que às vezes a vanglória pode dar-nos uma certa ajuda para ir em frente; mas aqui ela é vista em suas raízes mais infectas e destrutivas, tanto que em 12,41-43, resumindo toda a obra de Jesus, se volta precisamente a este tema: “Isaías disse estas coisas quando viu a glória de Deus e falou dele. Muitos dos chefes do povo acreditavam nele, mas por causa dos fariseus não o confessavam, para não serem colocados fora da sinagoga”; e eis a última palavra: “Preferiam a glória dos homens à glória que vem de Deus”.
Isso significa que este tema, que parece referir-se apenas ao caso de uma ingênua vaidade, de fato é um tema que toca profundamente a nossa relação com Deus e com os outros. E é sobretudo um tema que se refere de perto ao presbítero, porque aquele que não tem títulos nem fama não tem vaidade: ele não tem nada a defender, e então pode perder facilmente o que não tem. Mas quando, a uma certa altura, já se formou uma rede de relações e de conveniências, a pessoa torna-se praticamente escrava dela e corre o perigo de que seja sufocada a liberdade de escutar na verdade a Palavra de Deus. É por isso que João insiste tanto neste tema, pois ele constitui a causa da cegueira dos inimigos de Jesus; com efeito, alguns deles pensavam: “Talvez ele tenha razão; mas ninguém o diz, ninguém se pronuncia, e por isso eu também me calo”.
b) No capítulo 8 encontramos um segundo grupo de censuras de Jesus (vv. 44 e 47): “Vós tendes o diabo por pai, e quereis cumprir o desejo de vosso pai. Ele foi assassino desde o começo do mundo”. Trata-se de uma investida terrível. Basta notar aqui o parentesco que Jesus indica entre a inveja e a mentira, que são duas causas fundamentais do pecado. O nosso texto é tirado exatamente do livro da Sabedoria, onde se diz: “Por causa da inveja do diabo veio a morte” (Sab 2,24). É da inveja que nasce o desejo de esmagar os outros, causa de muitos pecados, assim como é da falta de sinceridade, ou seja, da mentira, que deriva toda uma série de confusões das quais nasce a oposição a Jesus.
c) Por fim, um último texto que também me parece importante para determinar qual é a oposição a Jesus lamentada pelo próprio Jesus. Vou citá-lo, embora se encontre na segunda parte do Evangelho, porque me parece um texto que resume tudo o que Jesus tem a dizer sobre os seus inimigos: “Quem me odeia também odeia a meu Pai. Se não tivesse feito entre eles as obras que nenhum outro fez, não teriam pecado; mas agora viram e apesar disso odeiam a mim e a meu Pai. Isso acontece para que se cumpra a palavra escrita na sua Lei: Odiaram-me sem motivo” (15,23-25).
Aqui encontramos um elemento de radical importância para captar o que Jesus tem a dizer sobre os seus inimigos: “Odiaram-me sem motivo”; isso significa que toda a sua oposição é fruto de um ódio insano, e é causa, para aqueles que a realizam, de tristeza e de morte. Trata-se daquela incapacidade de abrir-se ao amor de Deus, de acreditar no amor de Deus, que se cristaliza na recusa em acreditar que Deus com a sua Palavra queira realmente fazer de nós algo de melhor, tirando-nos de nossa situação presente e transformando-nos. Tudo isso se torna um “ódio gratuito” contra Deus e contra si mesmo, que já é uma forma de autodestruição, de inferno vivido na própria pessoa.
Para concluir, também no que se refere a estes textos vemos como é decisiva a relação com a pessoa de Jesus. O Verbo se fez carne, e é contra a sua pessoa que se concentram a oposição e as recusas. O verdadeiro relacionamento com Jesus realiza-se ao abrir-se à sua voz e no ouvir o seu convite. Pelo contrário, o fato de recusar-se, de fechar-se diante dele, leva a um conjunto de situações mentirosas e falsas, que no fim se traduzem em ódio contra Deus e, por isso, em ódio contra si mesmo.
Terceira parte:
a ira de Deus manifestada em Cristo
Assim chegamos à terceira parte da meditação em que nos ocuparemos de um exemplo específico da cólera de Jesus, isto é, da ira de Deus manifestada em Cristo (Jo 2,13-22).
O tema da ira é um tema de que pouco se fala; mas mereceria um amplo aprofundamento. Então nos daríamos conta de que também o Novo Testamento insiste fortemente no tema da cólera de Deus, que às vezes procuramos relegar apenas às páginas do Antigo Testamento. Portanto, é um tema que não pode ser negligenciado; em todo caso, ele existe e não podemos pó-lo facilmente de lado, tirando por exemplo dos Salmos tudo o que se refere à ira de Deus: não é assim que podemos ter uma visão equilibrada e completa da mensagem bíblica.
Temos aqui, pois, um episódio típico da cólera de Jesus. O fato é conhecido. O texto pode facilmente ser dividido assim: no início (2,13) a situação; nos três versículos 14. 15 e 16 o fato; nos seguintes, de 17 a 22, as reflexões sobre o fato, respectivamente dos discípulos, dos judeus e de Jesus.
a) Quanto à situação (v. 13), notemos a importância que João dá a este episódio: é o primeiro episódio da vida pública de Jesus. É verdade que primeiro vem Caná, mas Caná é um episódio pela metade: Jesus atua, mas de certa forma ainda ocultamente. Este, ao contrário, é o primeiro episódio em que Jesus entra oficialmente em cena. E entra em cena num momento importantíssimo para a vida judaica: “Estava próxima a Páscoa dos judeus”. João relaciona propositalmente este episódio com a Páscoa: como é sabido, o Evangelho de João é ritmado segundo a sucessão das festas, a principal das quais será a última Páscoa de Jesus. Aqui encontramos o primeiro aceno a esta série de festas; com isso se inaugura o desenvolvimento litúrgico da vida de Cristo. Portanto, estava próxima a festa dos judeus, e Jesus subiu a Jerusalém: é a primeira vez que para lá se dirige oficialmente; por isso João faz o possível para sublinhar este episódio. De outro lado, o episódio é riquíssimo em símbolos e em significados, que certamente não podemos aprofundar aqui: interessa-me indicar alguma reflexão que vá no sentido do nosso atual momento existencial de reflexão.
b) Como se desenvolve a cena? Jesus encontra no Templo gente que vende bois, ovelhas, pombos, e os cambistas sentados no chão; fazendo um açoite de material que é dificílimo determinar, exnulsa a todos e vira as mesas. Não sei como traduzir schoinion em 2,15; poderiam ser cordas ou canas: a palavra em si mesma tem um significado muito dúbio. Seja como for, a idéia é clara, e é esta: Jesus age aqui um pouco como um louco, como alguém que está arrebatado: vai agarrando o que lhe aparece pela frente e jogando no chão. A cena é verdadeiramente dramática, e talvez até um pouco desagradável. O único momento em que Jesus retoma o raciocínio é quando fala aos vendedores de pombos; explica-lhes: “Tirai estas coisas daqui, e não façais da casa do Pai uma casa de comercio.
c) As reflexões sobre este fato são três. Os discípulos lembram a Escritura: “O zelo de tua casa me devorou” (2,17); portanto, os discípulos no fundo fazem a aplicação imediata: Jesus purifica o Templo que deveria ser lugar de oração (aqui não é chamado “lugar de oração” como nos sinóticos, mas “casa do Pai”).
Os judeus pedem um sinal (2,18). Jesus interpreta a cena referindo-se ao sinal do seu corpo que — como explica João — será o templo definitivo (2,19-22). Aqui está, pois, todo um encruzamento de símbolos muito complexos, que seria difícil separar, porque se entrecortam praticamente um dentro do outro.
Limito-me a sublinhar o fato que na revelação bíblica o pecado pode sempre ser reduzido a uma profanação do Templo de Deus, no qual se colocam ídolos (cfr. 1 Jo 5,21). Todo pecado é profanação da obra divina: profanação do homem e da mulher, da criança, do trabalho, do amor, da natureza. O próprio apetite de gozo, o espírito de avareza, a vontade de poder tomam o lugar de Deus no seu Templo. Tudo isso pode ser visto como aplicação ao Templo profanado, segundo 1 Cor 3,17: “O Templo de Deus é sagrado e este Templo sois vós”. E por isso a cólera de Deus se exerce pela profanação de todo Templo: do seu Templo, de cada Templo que somos nós. Somente o corpo de Cristo ressuscitado será o Templo novo, fundamento e centro de um mundo novo e do “homem novo criado segundo Deus na justiça e santidade da verdade” (Ef 4,24).
Evangelho segundo São João
Carlo Maria Martini
Edições Loyola
S. Paulo – Brasil – 1980