Texto pdf:
Primeira Meditação
EXERCÍCIOS PARA O CRISTÃO MADURO
Este nosso curso de Exercícios Espirituais propõe-se a realizar uma audição da mensagem evangélica. Com esta finalidade tomaremos como ponto de partida o quarto Evangelho, o de João. Não se trata de uma exegese, nem de uma iniciação à leitura e nem mesmo de uma lectio continua do Evangelho segundo João, mas de uma verdadeira e própria audição da mensagem joanina. Além disso, teremos continuamente presente a chave da leitura que nos é oferecida pelos Exercícios inacianos, que não são outra coisa senão uma experiência de interiorização da mensagem evangélica.
Por isso propomo-nos a ouvir a Palavra de Deus num clima de oração. Em particular, como já disse, propomo-nos a ouvir “a palavra” — a mensagem evangélica — do Evangelho segundo João. Dou-me conta de que esta escolha pode parecer um pouco ousada ou arriscada, e isso por vários motivos. Antes de mais nada, porque o Evangelho de João, ao contrário dos outros Evangelhos (pense-se, por exemplo, em Lucas), não apresenta muitos daqueles temas que são usuais nos Exercícios. Além disso, como todos sabemos, trata-se de um Evangelho difícil, cheio de coisas que não se captam logo. Lê-se uma página, lêem-se algumas linhas, compreende-se globalmente o sentido das coisas que se dizem, mas não se compreende por que são ditas naquele ponto e qual o significado preciso que elas têm. Com freqüência os comentários explicam coisas óbvias, que já compreendemos, mas não respondem às perguntas que alguém realmente se faz lendo este Evangelho: por que o evangelista insiste neste tema precisamente neste ponto. E assim por diante.
A primeira verdadeira pergunta a se fazer é a seguinte: a quem é dirigida a palavra de João?
O fato é que o Evangelho segundo João não só nos desloca fora de uma experiência concreta de tipo ascético e exige uma notável atenção à concatenação interna dos vários temas, mas sobretudo supõe uma experiência espiritual elevada, como logo veremos. Por isso, certamente não se trata de um Evangelho para principiantes. É um Evangelho que supõe a situação do cristão maduro, ou, em outras palavras, do gnóstico, do perfeito, do cristão iluminado, portanto daquele que já tem atrás de si uma longa maturação ascética e por isso não está mais interessado na repetição de certos temas já conhecidos, mas antes numa ulterior penetração deles.
Existe este cristão maduro e iluminado? Segundo o Novo Testamento deve existir, porque este é o escopo final da pregação neotestamentária. Cito algumas passagens do Novo Testamento em que se trata do cristão gnóstico, perfeito, maduro, iluminado.
Tome-se, por exemplo, a carta aos Romanos em 15,14: “Pessoalmente estou convencido, meus irmãos, de que vós mesmos estais cheios de todo conhecimento”, portanto sois cristãos “gnósticos”, cristãos conhecedores. Este é o nível ao qual certamente ainda não haviam chegado os cristãos da primeira pregação; contudo Paulo supõe que eles já se tornaram gnósticos.
Também na primeira carta aos Coríntios (cfr. 1,5), ele diz que os cristãos de Corinto foram enriquecidos com todos os dons de palavra e de ciência, isto é, foram enriquecidos “de toda gnosis”, de toda forma de conhecimento. Portanto supõe-se que já exista este cristão gnóstico, que percorreu um certo caminho espiritual e chegou a certa maturidade.
Outras passagens do Novo Testamento não nos falam de tudo isso mediante o tema da gnosis, mas mediante o tema do téleios, “perfeito”. Por exemplo, a carta aos Filipenses em 3,15 diz: “Nós todos, já que somos homens perfeitos (téleioi), temos estes sentimentos”. Portanto ela é dirigida a um público que já se supõe que possa ser definido, sem presunção e sem jactância, como téleios.
Também a carta aos Colossenses em 1,28 evoca duas vezes este conceito: “ a ele (Jesus) que anunciamos, admoestando e instruindo todo homem com toda sabedoria para tornar cada um téleion em Cristo”, perfeito em Cristo. O escopo da pregação é o de fazer chegar os chamados a esta maturidade.
Ainda em Ccl 4,12 encontramos: “Epafras, que é um dos vossos, vos saúda. Este servo de Cristo Jesus não cessa de lutar por vós nas suas orações, para que vos conserveis firmes, perfeitos (téleioi) e exatos cumpridores de toda a vontade de Deus”. Portanto, o escopo da disciplina espiritual é formar gente firme, perfeita, realizada e cumpridora de todas as vontades de Deus. Este é também. o escopo específico da pregação de João.
Cito ainda uma passagem em Hebreus 6,1-2: “Deixando para trás o ensino elementar sobre Cristo, passemos a tratar de assuntos mais elevados (diz o texto grego: epí tén teleioteca Ierometha, “passemos ao que é téleion”), ao que é mais pleno, mais perfeito, sem lançar de novo os fundamentos da renúncia às obras da morte, da fé em Deus, da doutrina dos batismos, da imposição das mãos, da ressurreição dos mortos e do juízo eterno. É o que pretendemos fazer, se Deus quiser”.
A pregação de João situa-se precisamente neste segundo nível, que se alcança quando já são conhecidas muitas outras coisas, e portanto já se trata de entrar no coração das situações.
A passagem que talvez melhor resuma o que no espírito neotestamentário representa a mensagem de João é a primeira carta aos Coríntios em 2,6-16, sobretudo os versículos 6.7.8. Ali lemos brevemente, indicando o que me parece ser o ritmo meditativo destes versiculos, que cada qual poderá depois aplicar a si: “Entre os perfeitos (portanto entre os téleioi) falamos, sim, de sabedoria (por isso é um discurso gnóstico), mas de uma sabedoria que não é deste mundo, nem dos dominadores deste mundo que são reduzidos a nada. Falamos de uma sabedoria divina, misteriosa, que permaneceu oculta e que Deus ordenou desde antes dos séculos para a nossa glória. Nenhum dos dominadores deste mundo pôde conhecê-la”.
Quais são as indicações fundamentais que emergem destes versículos?
1. Existe, antes de mais nada, uma sabedoria de que São Paulo quer falar, que é própria do discípulo fervoroso e iluminado. Portanto esta sabedoria existe e está à nossa disposição, no sentido de que Deus quer dá-la.
2. Esta sabedoria não é deste mundo. Ou seja, é uma sabedoria que não se adquire a preço de leituras, de conversas, de estudos, de pesquisas, porque não é produzida por uma eficiência de ações humanas. Não é deste mundo e não rende para este mundo. Ou seja, não é nem uma sabedoria que adquirimos para depois falar bem diante dos outros: pregar ou dar retiros. … uma sabedoria que está além dos cálculos que poderíamos ser tentados a fazer, uma sabedoria para nós, mas uma sabedoria não deste mundo, nem dos dominadores deste mundo, isto é, de todas as forças — de ganho, aquisição e eficiência — que a desejariam em nós, para instrumentalizá-la como todas as outras coisas de que podemos usar.
3. Falamos, ao contrário, de uma sabedoria divina, misteriosa, oculta. E aqui poderíamos refletir atentamente sobre estes atributos “misteriosa” e “oculta”: ou seja, existe uma experiência na vida cristã que com freqüência permanece oculta aos nossos olhos, porque não se identifica com nenhuma das ações que fazemos e nenhum dos pensamentos que colocamos em ação. Ela está além de todas estas coisas: uma sabedoria, misteriosa e oculta, mas que Deus oferece a nós, pobres.
Portanto, há uma sabedoria cristã que é a fonte de toda plenitude de vida, da serenidade do espírito, da capacidade de julgar nas situações difíceis, da coragem de uma vida cristã em situações adversas. Esta sabedoria, que Deus estabeleceu antes dos séculos para a nossa glória e que dele mesmo nos vem, nos é revelada por seu Espírito.
A disciplina espiritual do quarto Evangelho, pois, quer não explicar — porque estas não são coisas que se expliquem com palavras — , mas indicar um caminho para penetrar nesta sabedoria que está além de todas as regras estéticas, de todas as práticas, de todos os pensamentos. este o coração e o cerne de uma vida cristã madura.
Por isso tomemos este quarto Evangelho como uma espécie de manual daquilo que poderíamos definir o “terceiro ciclo” da iniciação cristã. Com efeito, podemos chamar “primeiro ciclo” o ciclo catecumenal, para o qual é especialmente apropriado o Evangelho de Marcos; e chamar “segundo ciclo” tanto a instrução sobre os deveres da Igreja, para o qual é muito apropriado Mateus, corno a instrução sobre a situação do fato cristão na história do mundo (isto é, a inserção do cristianismo na sociedade e na cultura do tempo e do ambiente), para a qual são muito apropriados Lucas e os Atos. Por isso, se tomamos Marcos como primeiro ciclo e Mateus-Lucas-Atos como o segundo ciclo da iniciação cristã (a “catequese”), o terceiro ciclo é aquele que comporta a formação mística do cristão interior, isto é, o encaminhamento para a familiaridade experimental com o mistério de Deus. E esta no Novo Testamento talvez seja a tarefa de Paulo, mas particularmente de João, e, de outro ponto de vista, da carta aos Hebreus.
Tratando-se de um terceiro ciclo, ele supõe os precedentes, e portanto supõe sabidas várias coisas: trata-se precisamente de ir além e de ver o significado mais profundo destas coisas. neste sentido que queremos deixar-nos guiar pelo Evangelho de João.
Mas aqui aflora uma segunda e decisiva pergunta: de onde parte esta pregação de João?
João prega: ele quer educar o cristão téleios, o cristão gnóstico, o cristão cheio de riqueza, de sophia, de sabedoria. Certamente, o seu ponto de partida não pode ser o cristão já téleios (já perfeito), porque este não teria necessidade de instrução. Seu ponto de partida é o “presbítero”, isto é, a pessoa que, depois de ter adquirido a instrução, um conhecimento e um certo exercício primordial — até mesmo um pouco superior — das virtudes ordinárias da vida, agora se encontra diante de situações sutis e difíceis que o mantém prisioneiro no anterior.
Para concretizar melhor qual é o ponto de partida da pregação joanina, prestemos atenção a duas figuras que encontramos na primeira parte do Evangelho: Nicodemos e a Samaritana. Com efeito, Nicodemos e a Samaritana não representam tanto a gente que o evangelista quer formar quanto aquela que ele encontra diante de si na realidade. Indico muito brevemente algum aspecto típico destes dois personagens.
A propósito do relato de Nicodemos, quero sublinhar 4 elementos:
Jo 3,2: de noite
Jo 3,2: Rabi-Mestre
Jo 3,4: velho e
Jo 3,4 e 3,9: como pode acontecer isso
1. Quem é Nicodemos? Trata-se de um homem que já chegou, ou seja, trata-se de um “presbítero”, isto é, de um “adulto”, que já fez uma certa carreira e por isso tem certas prerrogativas e certos deveres externos a salvaguardar: em resumo, ele sente um pouco o peso de sua reputação, de sua importância. Por isso tem medo de comprometer-se; tem medo de enfrentar abertamente a Palavra de Deus: com efeito, encontra-se “em situação”, é vigiado, visto e olhado pelos outros; por isso vai de noite a Jesus. Vê-se, pois, que o discurso de João é dirigido ao presbítero que, tendo já feito um certo caminho eclesiástico — adjetivo que, em nosso caso, é aplicável também aos leigos — , isto é, tendo já chegado a uma certa responsabilidade externa, tem medo de comprometer-se, e este medo o impede de escutar as novas exigências da Palavra de Deus.
2. Nota-se no discurso de Nicodemos uma grande insistência nos elementos intelectuais: “Mestre (Rabi), sabemos que . vens de Deus como mestre (didaskalos)”; e Jesus, com ironia, retruca em 3,10: “Didaskalos és tu… “, pois te glorias de ser mestre. O fato é que a situação do presbítero que já andou um certo caminho é aquela de quem está tentado a reduzir o mistério à doutrina. “Eu sei estas coisas”, ou então “Eu quero sabê-las, eu creio que tenho os métodos para sabê-las”, e por isso a minha situação já é aquela de quem ou sabe ou quer comunicar, ou então procura saber, com os métodos ordinários de eficiência, através dos quais se afirma o saber. Nicodemos está nesta situação, que é situação de fechamento à novidade misteriosa da Palavra.
3. A dificuldade de Nicodemos é esta: “Como é que um homem pode nascer quando já está velho?” Para o presbítero que já chegou a um certo ponto, o grande medo é este: não se pode começar tudo de novo; daqui surgem muitas dificuldades e muitos embaraços, porque na realidade a Palavra de Deus pode pedir que se recomece da estaca zero, e isso espanta.
4. Em resumo, Nicodemos tem pouca confiança no poder de Deus. É um homem que tem experiência eclesial e sabe quais são as coisas que podem ser feitas e quais as que não podem; por isso diz: “Há coisas que se dizem, mas não se fazem”. Note-se como as suas duas intervenções — tanto em 3,4 como em 3,9 — começam com a mesma interrogação: “Como pode acontecer isso?” (3,4: “Como é que um homem pode nascer quando já está velho?”; 3,9: “Como pode acontecer isso?”). E por fim note-se a insistência sobre o poder e sobre o não poder da segunda parte de 3,4: “Como um homem pode renascer?… Acaso pode reentrar no ventre da mãe?” Ele já estabeleceu os limites daquilo que se pode e que não se pode fazer: é um presbítero que já chegou, que em seu ponto de chegada se fecha às ulteriores compreensões do mistério de Deus. Este é o homem a quem João dirige a sua pregação.
Na Samaritana percebemos outros aspectos típicos da pessoa a quem é dirigida a pregação joanina. Talvez se trate de aspectos mais psicológicos, mas também eles muito importantes. Noto sobretudo dois, que tiro de algum elemento do relato.
1. A Samaritana é uma pessoa que tem um problema pessoal, de fundo: uma situação irregular que aflora no fim do colóquio. Como acontece com freqüência, depois de projetadas todas as situações externas, aparece o problema. Jesus lhe diz: “Tens razão em dizer que não tens marido, porque tiveste cinco e o que tens agora também não é teu marido” (4,18). Que este seja o problema é depois confirmado pela exclamação da mulher: “Vinde e vede um homem que me contou tudo o que fiz” (4,29) e por aquilo que lemos em 4,39: “Muitos samaritanos acreditaram nele por causa das palavras da mulher que declarava: ‘Ele me disse o que eu fiz’ “.
Quem é, pois, o presbítero a quem se dirige a mensagem de João? É uma pessoa que a certa altura pode ter problemas pessoais de fundo, que podem também não ser problemas tão graves ou clamorosos, mas que se manifestam, em todo caso, como bloqueios para situações das quais não se quer sair, que talvez se prefere projetar no exterior em formas de todo tipo, dado que estas estão sempre ligadas a situações sociais ou ambientais, mas que na realidade estão dependentes de um bloqueio interior à audição da Palavra.
2. A segunda característica da Samaritana revela-se em 4,11. 12 e 15: “Nem tens um balde e o poço é fundo; de onde vais apanhar a água da vida? Dá-me dessa água, para que eu não tenha mais sede e não tenha mais de vir aqui buscá-la”. E aqui João, como é seu costume, brinca e ironiza frente a esta incompreensão que quer traduzir as palavras de Jesus em eficiência diária. Pode-se encontrar a mesma ironia em lo 6,26-27: “Dá-nos, pois, sempre deste pão”. A Samaritana é uma pessoa que, tendo já feito uma certa carreira e tendo calculado o que se pode fazer e o que não se pode fazer, traduz tudo em termos práticos de utilidade, ainda que este seu pragmatismo seja talvez endereçado à realização da vantagem máxima para a Igreja, ou para a própria vida espiritual, ou para o bem dos outros. Ela vive em termos de dar e receber; o seu espírito está preso numa certa gaiola institucional, e por isso tudo é traduzido em termos de sucesso apostólico e ascético, pastoral e pessoal: trata-se então de adquirir novas clarezas de ideias, novas intuições, para si e para os outros, mas deixando de lado o que é o dom e o entregar-se à Palavra para além de todas as vantagens pessoais.
Se reconhecemos em nós algum aspecto entre os que caracterizam as duas figuras de Nicodemos e da Samaritana, isso significa que também nós estamos entre aqueles presbíteros a quem é dirigido, concretamente, o Evangelho segundo João: também a nós o Evangelho tem algo a anunciar.
EVANGELHO SEGUNDO S. JOÃO
Carlo Maria Martini
Edições Loyola
S. Paulo – Brasil – 1980