7° Domingo do Tempo Comum (ciclo A)
Mateus 5,38-48

Referências bíblicas:
1ª leitura: Lv 19,1-2.17-18
2ª leitura: 1Cor 3,16-33
Evangelho: Mt 5,38-48
A gramática da compaixão
Queridos irmãs e irmãos,
Neste domingo temos uma palavra que nos é oferecida com uma forte dimensão ética. No fundo, esta palavra faz-nos refletir sobre o fulcro do nosso estar, do nosso ser, da relação que temos com os outros, e enche o nosso coração de perguntas. A primeira é sobre a qualidade da relação, da expressão de nós mesmos. Que qualidade, que cor tem aquilo que somos em ato, em acontecimento, em situação, em contexto? Será que nós somos verdadeiramente cristãos?
Para a Palavra de Deus que hoje escutamos é muito claro que nós só podemos dizer que acreditamos em Deus se nos tornamos de alguma maneira naquilo que Deus é. Se aquilo que Deus é – e nós sabemos que Deus é amor, porque é essa a revelação – se essa verdade fundamental for expressa naquilo que somos e nós formos uma coisa só com Deus. Não é acreditar que Deus é bom, se eu não sou bom não acredito que Deus é bom, não sei o que é Deus ser bom. Não é acreditar que Deus é amor, porque se eu não amo, se eu não vivo na tensão do amor, eu verdadeiramente não sei aquilo que Deus é.
Então, a vida concreta nas suas relações, o ethos, a expressão prática daquilo em que nós acreditamos é de facto fundamental, é a forma de conhecimento, é a ciência fundamental para sabermos quem é Deus. Se não, nós até podemos dizer um catecismo inteiro de verdades acerca de Deus, mas não sabemos quem é Deus. Porque, o saber de Deus é o sabor de Deus. A nossa vida tem de estar contaminada de Deus, tem de estar banhada, ensopada da arte de Deus, do estilo de Deus, do reflexo de Deus, da luz de Deus para sabermos o que Deus é. Se não o nosso saber é um saber abstrato, é um saber com uma distância enorme e não é aquele saber espiritual, aquele saber íntimo que nasce da convivência que nasce da relação, que nasce de uma mimésis, de uma imitação do próprio Deus. E o saber da fé, o acreditar da fé não é o acreditar simplesmente racional, passa pela nossa cabeça mas tem de passar pelo nosso coração. Tem de passar pelos nossos gestos, tem de passar por aquilo que somos. E este para nós é o grande desafio.
Jesus não tem dúvidas, nós temos de viver numa tensão, numa tensão. Nós ouvimos tantas coisas sobre o modo de viver e como organizar a nossa vida. Jesus diz isso: “Ouvistes que foi dito: «olho por olho, dente por dente».” E esta que é uma das antigas Leis, e teve até o seu papel porque, “olho por olho” não é um olho e eu tiro-te dois olhos. Nesta Lei antiga há uma certa razoabilidade, é um primeiro passo de civilização. Se eu sou prejudicado em 50 é em 50 que eu vou requerer, se é um dente é outro dente, não são os dentes todos. Já aí há um avanço. Mas Jesus não se fica por aí, não se fica por essa espécie de moral negociada, Jesus fala de uma ética que supera. É preciso superar, nós vivemos mergulhados também numa determinada visão ética do mundo que, mesmo de uma forma inconsciente, acaba por regular a nossa vida. Nós reagimos de uma determinada maneira aos acontecimentos, ao que nos fazem, ao que nos dizem, partilhamos uns com os outros “já viste isto e já viste aquilo, vou fazer desta maneira, vou fazer daquela.” E, de repente, há uma praxis ética que vai regendo a nossa vida. A grande questão é saber se ela é uma praxis cristã. Se nós somos cristãos até à medula e se depois isso se exprime no bom e no mau, no certo e no errado, no fácil e no difícil, no feliz e no dilemático da nossa vida, se aí nós somos verdadeiramente.
Jesus é muito claro: nós só somos se superarmos este estádio ético que é até de uma certa razoabilidade, que é de fazer aos outros o que eles nos fazem, que é de criar distanciamento, que é de pagar na mesma ordem de coisas, de sentimentos. Jesus diz: “Não, é preciso romper com isso.” A Palavra de Jesus nós podemos reinterpretá-la, podemos explicá-la, podemos comentá-la, podemos tentar atenuar e domesticar a força desta Palavra, mas a verdade é que Jesus disse isto: “Não resistais ao homem mau. Se alguém te bater na face direita oferece-lhe também a esquerda, se alguém quiser ficar com a tua túnica deixa-lhe também o manto, se alguém te obriga a acompanhá-lo durante uma milha, acompanha-o durante duas. Dá a quem te pedir e não voltes as costas a quem te pede emprestado. Ama os teus inimigos e ora por aqueles que te perseguem.” Este é um código, é um código ético. E é um código ético que nós não podemos dizer: “Não é para nós. Não é para mim, não sou capaz, não consigo.” Não consegues hoje, não consegues agora, mas faz desta Palavra o mapa da tua vida. Faz desta Palavra o teu projeto da casa, da vida, da existência que estás a construir. Habita a tensão, a provocação que esta Palavra te deixa. Porque só isso é que nos coloca dentro de Deus.
Nós podemos dizer: “Se eu viver desta maneira, eu vou ser engolido por todos, eu vou ser espezinhado, eu vou ser esmagado, vão-me tratar como um louco.” Pois é precisamente isso que S. Paulo nos diz na Carta aos Coríntios. Há uma sabedoria de Deus e essa sabedoria de Deus faz-nos aparecer como loucos aos olhos do mundo. O que é viver como loucos? É vivendo numa sabedoria alternativa, vivendo de um modo diferente, de um modo consistente, sentindo que de facto nós somos lugares sagrados. Nós somos expressões de Deus, nós somos fragmentos de Deus, nós somos templos no meio do mundo. Nós não temos a Capela de Nossa Senhora da Bonança, nós somos capelas. Nós estamos aqui uma rede de capelas, uma rede, uma rede de capelas que se junta, nós somos uma confederação, é isso que nós somos. A vida de cada um de nós é um lugar sagrado cheio de encontros, cheio de vida, ou de silêncio, ou de esquecimento, ou de ocultação, mas é isso que nós somos. Estamos aqui, juntos, confederados para tornar santo aquilo que em nós já é santo, já é santo.
Ouvi falar de um projeto que me deixou muito interessado e a pensar. É uma rede que está a surgir que é a rede das cidades compassivas. No fundo, é a ideia de que as próprias cidades têm de se organizar e as comunidades têm de estar mobilizadas para a compaixão, para ir visitar os doentes, para cuidar daqueles que necessitam, para estar atento às situações de exclusão, para escutar a dor uns dos outros, o sofrimento uns dos outros, para perdermos a atitude agressiva ou de indiferença em relação aos nossos irmãos e fazermos da compaixão o nosso caminho, a nossa forma de estar. Para já, a rede das cidades compassivas está apenas em algumas cidades da América Latina onde está a começar; em Portugal querem fazer, penso que de Castelo Branco, a primeira da rede de cidade compassiva. Mas eu pensei: será que são só as cidades? Porque não também uma rede de famílias compassivas? Porque não uma rede de casas compassivas ou de referentes de compaixão? E como a rede eclesial que nós somos, esta confederação de lugares sagrados que estamos aqui, todos juntos, porque é que não assumimos a compaixão como cultura, como modo de ser, como prioridade?
Hoje no Salmo nós rezávamos isso: “Senhor, sois um Deus clemente e compassivo.” Nós precisamos voltar a esta gramática, a gramática da compaixão, a gramática da clemência, a gramática da bondade. É verdade que nós podemos dizer: “Eu não quero passar por parvo, eu não quero ser enganado.” Mas será que queres ser o juiz do teu irmão? Será que é isso que Deus espera de ti? É que pessoas que nos julguem nós todos temos muitas. Eu acho que temos de mais. Pessoas que olham para nós e nos julgam ou veem de fora, ou não nos conhecem verdadeiramente, ou não pararam um minuto para nos escutar eu acho que todos nós temos de sobra. Mas agora pessoas que nos amaram, pessoas que de uma forma gratuita, de uma forma generosa, desinteressada se colocaram a caminhar a nosso lado, pessoas que nos ouviram sem sobreporem um juízo, um julgamento àquilo que nós dizemos, isso é tão raro, isso é tão raro! E, de facto, aquilo que nos transforma é a experiência de amor, não tenhamos dúvidas. Aquilo que nos transforma é a experiência de amor!
Eu não faço isso, mas lembro-me de uma senhora que eu conheci há muitos anos, uma alemã, que dava esmola a todas as pessoas que lhe pediam. Eu lembro-me muitas vezes dela. Ela sabia que muitas vezes era enganada ou não era necessário, mas se lhe pediam ela dava e aquele gesto que parece um gesto louco, insensato ou radical é um gesto que salva o mundo, é um gesto que salva o mundo. Digamos, a insensatez dela enche o mundo de maior sabor, de maior luz, de maior amor do que a minha sabedoria de só dar a quem eu acho que merece. E é isto: se nós só damos, só amamos aqueles que achamos que merecem o mundo não fica contaminado por Deus, o mundo não fica contaminado por Deus.
Porque, como diz Jesus nesta belíssima imagem: “Deus faz nascer o sol sobre bons e maus.” E é esta que tem de ser a nossa atitude. Porque muitas vezes nós não sabemos o que vai no coração dos outros, e temos uma responsabilidade muito grande, que nós esquecemos, que é: nós não podemos fazer com que o outro perca a esperança. Às vezes a esperança do outro é conseguir vender uma revista. A esperança do outro é uma coisa irrisória aos nossos olhos mas nós somos pastores daquela esperança, somos responsáveis pela pequenina chama naquela torcida, por aquele brilho de luz que está no meio daquelas cinzas. Somos responsáveis por isso, e como tal, a nossa atitude se calhar tem de ser mais complexa do que é, se calhar tem de estar mais próxima de Jesus. Porque nós lemos tantos livros e ouvimos tantas coisas mas depois temos de voltar a estas palavras, estas palavras que Jesus diz, deixar que elas façam eco no nosso coração e deixarmos que elas nos moldem.
O místico Angelus Silesius dizia isso: “Nós não sabemos o que Deus é, só acreditamos Nele tornando-nos em Deus.” Este tornar-se naquilo que Deus é penso que representa o grande desafio para as nossas vidas.
Nesta Eucaristia com alguns irmãos nossos, algumas famílias nós estamos a lembrar também alguns parentes que partiram: mãe, avó, avô. Pessoas que deixaram uma marca indelével de quê? Que marca é que essas pessoas deixaram que 20 anos, meses, anos depois da sua partida nós continuamos a sentir que eles são uma fonte de vida? Que marca é essa? Eu diria, é a marca de amor. E não há amor se não houver excesso de amor. Porque o amor é sempre uma coisa em excesso. O amor não é uma coisa muito equilibrada, muito regrada, muito calculada. O amor é ariscar, o amor é dar o nosso amor ao outro sem controlar aquilo que o outro pode fazer com o nosso amor. O amor é isso, e é quando nós somos tocados por essas experiências de amor que nunca mais nos esquecemos e sentimos que essas pessoas fazem eternamente parte de nós.
Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo VII do Tempo Comum
José Tolentino Mendonça
http://www.capeladorato.org
A Loucura de Deus
Marcel Domergue
Isto que Jesus nos fala no evangelho é, com certeza, um programa para nós ou, se quisermos, um ideal a não se perder de vista. É uma concepção do mundo e da vida que está em contradição com o comportamento habitual da maior parte dos homens. Jesus pede que nos afastemos do espírito do mundo: estais no mundo, mas não sois do mundo, diz ele, no evangelho de João. De alcance bem mais amplo do que a Lei, que aqui é resumida sob a forma do talião, as suas prescrições, com certeza, não são para serem tomadas ao pé da letra. Em João 18,22-23, quando um guarda o esbofeteia durante o processo, não apresenta a outra face, mas o interroga: «Por que me bates?» Notemos que não se deixa levar pela raiva nem procura se vingar, mas faz o guarda voltar-se para si mesmo, convidando-o a indagar-se sobre o seu comportamento. Jesus não o julga, mas encarrega-o de julgar-se a si mesmo. No evangelho de hoje, vai mais longe: pede que nos submetamos à vontade do outro, mesmo se esta vontade seja maldosa. Ele próprio aceitará dar a sua carne e o seu sangue e nos pedirá para fazer o mesmo, em sua memória. Não pensemos imediatamente em martírio: quantos pais são levados a se submeterem às escolhas imprevistas de seus filhos e filhas quando se tornam adultos? E os esposos entre eles? A cada instante somos de um modo ou de outro, convidados a dar a nossa própria vida, enquanto esperamos oferecer o nosso último e definitivo dom. A perspectiva da Paixão já está presente no Sermão da Montanha, o primeiro discurso de Jesus, em São Mateus. Portanto, o fim está presente já desde o início. Tudo o que vem em seguida só virá demarcar esta caminhada rumo ao dom de si absoluto. Sabedoria de Deus que é loucura para os homens, conforme diz São Paulo.
Como Deus é?
As maneiras que temos de nos representar Deus são todas antropomórficas, quer dizer, tiradas de tudo o que vemos acontecer entre nós, homens. Isto acontece porque o Todo Outro nos escapa. No entanto, atribuir a Deus o que vemos acontecer entre os homens não é de modo algum um absurdo, já que o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus. Sim, está certo, estamos ainda a caminho da nossa criação perfeita e acabada; e a única imagem autêntica que temos é, enfim, o Cristo, «imagem do Deus invisível» (Colossenses 1,15). Ele é o homem completo, realizado. É ele que é «perfeito como o nosso Pai celeste é perfeito» (conforme as últimas palavras deste evangelho). E eis que ele nos pede que o encontremos aí, nesta perfeição da semelhança. Só então é que Deus será verdadeiramente o nosso pai, pois o que caracteriza a paternidade ou a maternidade é a semelhança (Gênesis 5,3). Assim, quando Jesus nos pede para sermos perfeitos como nosso Pai é perfeito, está nos pedindo para irmos até ao fundo, até ao limite final da nossa humanidade. Podemos retomar as instruções que ele nos dá (não contra-atacar o malvado, dar além daquilo que te querem tirar, amar os nossos inimigos) sem perder de vista que elas nos descrevem a «conduta» de Deus para conosco. Temos aqui, então, quem pode e deve nos reconfortar. Conforto este que precede e desencadeia a imitação. Temos que ser como Deus. Era este o projeto de Adão e Eva, o «homem antigo» que se mantém no fundo de nós. Exceto no que este homem velho se engana sobre Deus. Escutemos a este respeito o que nos diz o Cristo, o Homem Novo.