32° Domingo do Tempo Comum (ciclo C)
Lucas 20, 27-38

Referências bíblicas:
1a leitura: 2 Macabeus 7,1-2.9-14
2a leitura: 2 Tessalonicenses 2,16 – 3, 1-5
Evangelho: Lucas 20, 27-38 ou 27,34-38
Caminhamos para o encontro
Queridos irmãs e irmãos,
Permitam-me começar com um episódio, quase uma anedota, de um escritor que visitou o nosso país e uma das coisas que o impressionou mais foi, nas estações de comboio, nas repartições públicas haver uma sala de espera. Ele ficou muito espantado com este povo peculiar que tinha até uma sala para a espera. Isto não quer dizer que nós saibamos esperar melhor do que outros povos.
Isto lembra aquilo que o Papa Bento XVI, que é um observador atento do catolicismo contemporâneo, na encíclica que ele escreveu sobre a esperança, Spe Salvis, salvos na esperança, começava por dizer: “Hoje, no interior do catolicismo, há um défice em relação à esperança.” Porque sobre a fé nós continuamos a perceber como ela é importante, como ela é significativa, como ela modifica e é central nas nossas vidas. Sobre a caridade, mesmo sendo difícil praticá-la, mesmo com toda a dureza de coração, é impossível nós não percebermos a centralidade que ela ocupa, e como ela é o primeiro dos mandamentos, que é o amor que nos revela o rosto de Deus. Mas, sobre a esperança aí nós temos de colocar muitas reticências. Porquê? Porque deixamos em silêncio esta categoria. É como se nós, contemporâneos, mulheres e homens desta modernidade tardia não soubéssemos já falar da esperança. E a pergunta sobre o que é que nos é possível esperar, o que é que eu espero, é uma pergunta que de certa forma se tornou um tabu cultural. Nós esperamos almoçar a seguir à missa, nós esperamos as pequenas coisas da vida. Mas em relação às coisas grandes há um silêncio incómodo, embaraçoso, que se abate sobre o nosso coração. E mesmo dentro do próprio espaço católico.
Há poucos anos fizeram uma sondagem no interior do catolicismo italiano, que é um catolicismo emblemático (ao menos para o espaço europeu), e verificou-se que 20% dos católicos italianos acreditam na reencarnação, não na ressurreição mas na reencarnação – porque dizem que é mais fácil acreditar na reencarnação. Se fizéssemos uma sondagem semelhante ao catolicismo português se calhar chegávamos a uma conclusão semelhante. Nós, quando ouvimos ‘reencarnação’ pensamos no Oriente, no budismo, no hinduísmo – não tem nada a ver com isso! Esta crença na reencarnação nasceu há 100 anos e nasceu com o espiritismo. Porque no hinduísmo a reencarnação é um mal, é um pesadelo e aquilo que nos salva é fugir do círculo inevitável das reencarnações. A pessoa só se salva, só fica resgatada quando já não tem de reencarnar porque reencarnar é ainda voltar a padecer. Esta visão circular da vida, de uma vida que não tem redenção, de uma vida que tem de regressar sempre ao seu princípio é uma visão que não é a visão cristã.
É interessante nós olharmos para a formação da fé na ressurreição, e eu usei de propósito a palavra fé. Porque uma das dificuldades em falar da esperança é porque nos faltam palavras para a dizer, as palavras são estreitas, desadequadas, ficam aquém do mistério, não temos palavras para dizer. E, de facto, nós no credo não dizemos: “E eu penso, e eu reflito, e eu cheguei a conclusões claras acerca da ressurreição dos mortos e da vida eterna.” Não se diz nada disso, diz-se: “Eu creio na ressurreição dos mortos.” A palavra “crer” vem de um verbo hebraico: Ãman. A palavra que nós dizemos tantas vezes: Ámen. Ãman quer dizer acreditar, confiar. Ámen quer dizer eu creio, eu confio. Não se trata de elaborar um pensamento acerca da ressurreição, mas trata-se de acreditar, de fazer confiança, de colocar o nosso coração aí.
É interessante nós olharmos para o itinerário bíblico, porque a fé na ressurreição só aparece no século II antes de Cristo. Reparem em tudo o que está para trás: uns acreditavam e outros não, e a maioria não acreditava. Há muitos livros da Bíblia em que não se fala na ressurreição, nem esse horizonte está presente. Por exemplo, o livro do Eclesiastes nós diríamos que é escrito por um agnóstico, alguém cujo horizonte de existência é unicamente o horizonte terreno, não há mais nada. Tudo desaparece debaixo do sol, tudo é vaidade ou, como diz o livro da Sabedoria de uma forma tão bela, “Tudo é a sombra de um sonho que passa.”
No século II antes de Cristo, muito a partir da resistência cultural que o Judaísmo começa a fazer ao Helenismo, que colonizava os países à volta, que entrava por Israel dentro, o inculturava e tornava outra coisa, surgem estes Macabeus que são os lutadores, os resistentes. Mas também resistentes culturais porque eles querem manter a integridade do Judaísmo face ao modos vivendi do Helenismo. Quando eles são perseguidos e são martirizados começam a dizer: “Não, Deus é fiel. Nós dizemos-lhe que sim e damos a vida por Ele. Sabemos que Deus há de garantir a nossa vida, sabemos que havemos de ressuscitar, havemos de ser levantados de novo em Deus. Por isso somos capazes de sofrer as maiores atrocidades, porque acreditamos nessa vida que o próprio Deus garante que é maior do que esta.”
Esta leitura que hoje lemos do Segundo Livro dos Macabeus é na Bíblia um dos textos mais antigos para falar da ressurreição. E “mais antigos” é o século II. No tempo de Jesus, dentro do Judaísmo, havia uma grande liberdade de pensamento em relação à ressurreição. Neste texto do Evangelho de Lucas que hoje lemos vêm os Saduceus, que não acreditam na ressurreição, colocar à prova Jesus. Jesus é mais da linha dos fariseus e acredita na ressurreição. Mas podia ser um bom judeu e acreditar na ressurreição ou não acreditar na ressurreição, não era um elemento decisivo, estruturante, da própria confissão religiosa e essa é também uma diferença em relação ao Cristianismo. Porque o Cristianismo faz da ressurreição uma verdade central da sua proposta. Nós somos cristãos e aquilo que nos distingue é precisamente a fé na ressurreição. Aquela manhã de Páscoa, aquele sepulcro vazio tornou-se o quilómetro zero da nossa história. Não quer dizer que não tenham existido dificuldades na fé na ressurreição e que ainda hoje elas não subsistam.
Nós lemos, por exemplo, as cartas de Paulo, Primeira Carta aos Tessalonicenses, Primeira Carta aos Coríntios, Segunda Carta aos Coríntios. Um dos temas fortes nessas cartas é o debate que Paulo tem com a comunidade porque alguns não acreditam na ressurreição. E também vemos a própria dificuldade de Paulo em explicar o que é a ressurreição. Ele começa por usar imagens muito realistas e depois vai usando imagens que sobretudo têm a ver com a transformação, com a mudança, têm a ver com o nascimento, com a imagem do parto. E é muito interessante isto que Jesus nos diz: “Porque nascem da ressurreição.” A ressurreição ser como uma espécie de parto, como uma espécie de nascimento.
Mas, para Paulo, para lá das imagens o que é que a ressurreição afirma fundamentalmente? Afirma que nós estaremos em Deus, que Deus estará sempre a garantir a nossa vida. A fé na ressurreição é a fé no Deus dos vivos, para quem todos estão vivos porque Ele é Deus dos vivos e não dos mortos, como Jesus nos afirma lendo Ele também o Antigo Testamento.
Queridos irmãs e irmãos, no credo que nós vamos rezar daqui a pouco nós vamos dizer: “Creio na ressurreição dos mortos e na vida eterna.” Nós somos chamados a acreditar na ressurreição dos mortos. Nós vamos ressuscitar, aqueles que partiram antes de nós ressuscitam em Deus.
E o que é essa ressurreição dos mortos? Uma das dificuldades em acreditar é muitas vezes a dificuldade da linguagem, a dificuldade de imaginar, a dificuldade de representar. Mas nós temos de saber que o limite é nosso. Hoje a própria ciência nos mostra que o que nós vemos do mundo é muito limitado – um microscópio vê muito mais que os nossos olhos. Por isso, seria irracional nós dizermos: “Eu só acredito naquilo que eu consigo compreender.” Não, a nossa capacidade de compreender é muito limitada também. Por isso, nós temos de abrir o coração a esta confiança: eu acredito na ressurreição dos mortos, e acredito nessa ressurreição como a assunção que Deus faz da nossa vida, completamente.
O que é acreditar na ressurreição da carne? Certamente não é acreditar na ressurreição destas moléculas, destas células, desta pele, mas é acreditar na ressurreição do nosso corpo, daquilo que nós somos.
E o que é o nosso corpo? Hoje a própria filosofia ajuda-nos a entender isso de outra forma. O nosso corpo não é apenas estes quantos quilos, estes quantos metros que assinalam um determinado espaço, estes quantos anos de vida. Mas o nosso corpo é linguagem, o nosso corpo é a nossa biografia, o nosso corpo são os nossos encontros, o nosso corpo é aquilo que nós amamos. O nosso corpo são as nossas paixões, são as coisas que fizeram bater o nosso coração. É isso, é isso o nosso corpo, é isso que nós somos e é isso que ressuscita em Deus. Não chegamos a Deus apenas como uma alma, apenas como um númeno, apenas como uma abstração. Não, nós chegamos a Deus com este conjunto do vivido, do encarnado, do experimentado, do sofrido, do sonhado, do amado que nós somos. E é isso que Deus abraça, é isso que Deus abraça.
Creio na ressurreição dos mortos, creio na ressurreição da carne. Isto é, creio que Deus abraçará isto que eu sou e será fiel a isto que eu sou. Porque em Deus nós sabemos que Ele é o Senhor da vida, que Ele é o Senhor da história. Por isso, nós não caminhamos para o apagamento, nós não caminhamos para o nada, mas nós caminhamos para o encontro. Nós caminhamos para esse grande parto que é, no fundo, a morte e a ressurreição. Esse grande momento transformador, esse grande momento de dom, esse grande momento de dádiva radical, esse grande momento de entrega total que é a nossa morte. Morte que hoje também deixamos de falar dela, temos medo de falar dela, adiamos, tornou-se um fantasma, um interdito das nossas sociedades, quando ela, de facto, é uma etapa fundamental na construção da nossa esperança.
E creio no mundo que há de vir. Creio nesse mundo que habita aquilo que Deus é, esse mundo que o próprio Deus tem no Seu seio, no Seu coração, esse mundo que é essa apocatástase, essa espécie de roda, essa espécie de lugar onde todos os vivos estão, essa espécie de solidariedade não apenas enquanto mortais mas de solidariedade nessa vida escatológica, nessa vida plena onde o próprio Cosmos também entra.
É um desafio nós pensarmos na esperança. Porque a esperança não é só para cada um de nós ter alguma ideia sobre a sua morte ou sobre a morte dos seus. A esperança marca o presente. Porque nós verdadeiramente vivemos conforme esperamos. E a verdade é que não podemos substituir a esperança pelo temor, por uma nebulosa: sei lá como é, não sei. E a verdade é que a maneira como vivemos diz que nós não sabemos, que nós temos muito medo, que é um susto. Porque a maneira que vivemos reflete isso, documenta o nosso medo, a nossa incerteza, a nossa ignorância. Mas quando nós sabemos há uma confiança, há uma simplicidade, há um desprendimento, há uma certeza, frágil que seja, mas que anima o nosso caminho.
Vamos rezar pela nossa esperança nesta sala de espera que é a nossa vida.
Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo XXXII do Tempo Comum
José Tolentino Mendonça
http://www.capeladorato.org
Destinados à vida
Marcel Domergue sj
O coração e a pedra de tropeço da fé
A Ressurreição é o núcleo central da fé, como se tem repetido. Podemos crer em Deus, no valor dos ensinamentos de Jesus, na excelência da moral evangélica, mas, se não cremos que o Cristo ressuscitou e que somos destinados a compartilhar de sua vida indestrutível, “vã é a nossa pregação, vã é a nossa fé…”. A fé na Ressurreição torna-se ainda mais difícil se, ao invés de nos contentarmos em afirmá-la, damos asas à imaginação e nos fazemos representar o corpo ressuscitado e a vida nos “novos céus e novas terras”. É o que fazem os saduceus, braço sacerdotal proveniente do Grande Sacerdote Sadoc. A mesma questão foi posta ainda pelos destinatários da primeira Carta aos Coríntios: “Como ressuscitam os mortos? Com que corpo eles voltam?” Paulo se esforça para orientá-los com a noção de “corpo espiritual” (1 Cor 15,35-49), o que nos deixa diante de um enigma, mas vai de encontro à resposta de Jesus no evangelho. Não podemos nos representar o universo da Ressurreição conforme a imagem do nosso universo atual. Esta é, no entanto, uma questão que inquieta a muitos cristãos, inseguros quanto ao destino futuro das relações vividas hoje. O que podemos dizer é que tudo o que é amor em nossas vidas nos faz avançar os limites que temos para conhecer esta realização: não há na Vida de Deus amor que seja menor do que o que experimentamos em nossa vida “terrestre”. Ao contrário, o nosso amor atual transfere-se ao infinito.
Relações conjugais e mortalidade
Muito antes de Jesus, a humanidade já pressentia que as relações conjugais, em particular a sexualidade, têm ligação com a mortalidade, fazem parte do mesmo processo. A união dos casais contém a vontade de existir no outro e pelo outro; é como uma tentativa de salvação e, também, de travessia da morte. Não por acaso, o orgasmo sexual é às vezes chamado de “pequena morte”. A vinda de uma criança materializa a nossa sobrevida numa outra pessoa. É o nosso prolongamento. Por isso é tão freqüente na Bíblia a preocupação com a descendência. Vem daí a lei do Levirato evocada no evangelho: um homem deve esposar a viúva do seu irmão que tenha morrido sem filhos, a fim de prover-lhe a descendência. Deixemos de lado todas as reflexões que esta lei pode sugerir, quer sobre a forte unidade que a Bíblia atribui aos laços fraternos quer sobre a idéia da feminilidade que ela se faz e que está longe de ser negativa. A resposta de Jesus aos saduceus inscreve-se nesta perspectiva: se as relações conjugais, a sexualidade e a procriação são remédios para a morte, elas não têm mais razão de ser no universo da Ressurreição que é o universo da morte atravessada e ultrapassada. Para esconjurar a inquietação que as palavras de Jesus podem provocar, devemos repetir que a forma hoje assumida por nossas relações familiares é que está ultrapassada, uma vez que o modo pelo qual as vivemos é tributário da morte a se esconjurar. Na vida de Deus, estas relações, longe de serem destruídas, encontram a sua verdade, mas “o que seremos ainda não se manifestou.”
O Deus dos vivos
Se o episódio dos saduceus atravessa a questão do sentido de nossa sexualidade, sua ponta extrema é a imagem que fazemos de Deus: “Deus não é Deus dos mortos, mas dos vivos, pois todos vivem para ele”. Está tudo escrito no presente, devemos notar; o que sugere que o universo da Ressurreição não se situa “após” a nossa vida tal como a conhecemos, mas, de alguma forma, “por sobre”. Conforme se queira, a Ressurreição, a “vida eterna” é uma dimensão das nossas existências no presente. “A vida eterna, diz Jesus, é que eles te conheçam a ti, o único Deus verdadeiro, e aquele que enviaste” (João 17,3). Tudo se conjuga: viver da Ressurreição é conhecer a Deus e conhecer a Deus é reconhecer que Deus não é Deus dos mortos, mas dos vivos, o Deus da Ressurreição permanente, no presente. Esta é a face escondida das nossas existências. Compreende-se então que é absurdo desprezar “a vida terrestre” em proveito de uma “vida celeste”. Atendo-nos a esta linguagem, devemos dizer que a nossa vida terrestre é já celeste. O que está adiado, como diz a primeira Carta de João (3,1-2), é a manifestação da nossa condição de filhos de Deus. Notemos que, para falar da nossa condição de ressuscitados, Jesus, no evangelho, emprega as expressões “filhos de Deus, herdeiros da Ressurreição” (versículo 36). O Batismo significa tudo isto.