À beira de «um furacão de fome»
MARGARIDA SANTOS LOPES
Revista Além-Mar Maio 22022
Pelo menos 50 países dependem do trigo produzido pela Ucrânia e pela Rússia para alimentar as suas populações. A maioria deles situa-se em África, no Médio Oriente e na Ásia, onde há cada vez mais habitantes e cada vez menos água e terras aráveis.
Norte de África
A guerra na Ucrânia pode representar uma ameaça existencial para algumas economias e populações do Norte de África (Egipto, Líbia, Sudão, Tunísia), segundo organizações humanitárias. No Egipto, o maior importador mundial e também o maior comprador de trigo à Rússia e à Ucrânia, mais de 70 milhões de pessoas dependem de pão subsidiado. Se os preços continuarem a subir, o regime de Abdel Fateh El Sisi dificilmente levará por diante o plano de cortar os subsídios ao pão, pois corre o risco de protestos como os que derrubaram o ditador Hosni Mubarak em 2011. Nas padarias não subsidiadas, o preço aumentou cerca de 50%. A Líbia, que comprava à Ucrânia mais de 40% do seu trigo, viu os preços deste bem essencial aumentarem mais de 30% uma semana depois da invasão russa. Depois de mais de uma década de conflitos, implosão do governo central e emergência de vários senhores da guerra, pelo menos 12% dos líbios, ou seja, mais de meio milhão de pessoas, precisarão de ajuda em 2022, segundo o PAM. O Sudão, onde o aumento dos preços do pão também contribuiu para a queda de um tirano, Omar al-Bashir, em 2019, é o país mais exposto às consequências da invasão da Ucrânia pela Rússia, que forneciam cerca de 87% dos seus cereais, segundo a FAO. A inflação, devido a desvalorizações da moeda e diminuição dos subsídios, chegou a 250%. Em Cartum, a capital, o preço de um pão, que era de 2 libras sudanesas há dois anos, é agora de 50. As Nações Unidas estimam que quase 1/3 da população, ou mais de 14 milhões de pessoas, precisará de ajuda humanitária este ano. Os que se encontram em situação mais vulnerável são os 3,3 milhões deslocados internos da região de Darfur. Na Tunísia, a braços com uma grave crise política e uma economia à beira da falência, debilitada por anos de inflação, desemprego e dívida pública, a invasão russa da Ucrânia, país que lhe vendia 50% do trigo, fez com que os preços registassem a maior subida dos últimos catorze anos. Regista-se também escassez de arroz, sêmola, açúcar e farinha, que são alimentos básicos.
Sahel
No Sahel, que inclui alguns dos países mais pobres do mundo (Burquina Faso, Chade, Mali, Mauritânia, Níger), a fome ameaça 35 milhões de pessoas em 2022, se não receberem ajuda, alerta a organização Action Against Anger. É uma subida significativa em relação a 2020 (15 milhões) e 2021 (27 milhões). Incluídos os 17 Estados da África Ocidental e do Sahel, mais os Camarões, as previsões da OCDE são as de que 40,7 milhões de pessoas enfrentarão, até Junho, uma crise alimentar e de nutrição, agravada pelo impacto da guerra na Ucrânia no preço dos produtos básicos – um aumento expressivo face aos 28,9 milhões em 2021. O que se avizinha no Sahel, onde os centros de saúde abarrotam de crianças desnutridas, poderá ser, diz o PAM, a maior crise alimentar da última década. A região debate-se com muitos demónios: violência intercomunitária, ameaças jiadistas e operações militares estrangeiras, que desalojaram mais de 9 milhões de sahelianos; golpes de Estado; secas e chuvas extremas, degradação da biomassa, pobreza, pandemia. No Sahel, onde se verifica um rápido crescimento da população, que duplicou desde 2000 e deverá voltar a duplicar até 2050 (de 92 milhões para quase 200 milhões), há cada vez menos o que comer e beber, mas há cada vez mais gente para alimentar.
Médio Oriente
Três agências das Nações Unidas – a FAO, o PAM e a Unicef – fizeram soar o alarme em 14 de Março, menos de um mês após a invasão russa da Ucrânia: a crise de fome no Iémen aproxima-se do nível de catástrofe, com 17,4 milhões de pessoas a necessitar já de ajuda alimentar urgente, número que poderá aumentar para 19 milhões, entre Junho e Dezembro. Há pelo menos 2,2 milhões de crianças desnutridas, quase meio milhão delas em risco de vida, condição em que se encontram igualmente 1,3 milhões de mulheres grávidas ou a amamentar. Num país que dependia em 30% do trigo importado da Ucrânia, os preços quintuplicaram em relação a 2015. Uma guerra que dura há sete anos e já matou centenas de milhares de pessoas é o principal causador da fome: cerca de 80% dos cerca de 30 milhões de iemenitas precisam de assistência para sobreviver. Na Síria, dependente do trigo da Rússia, cerca de 90% da população vivem na pobreza depois de onze anos de uma guerra sem fim. Há 4 milhões de pessoas em situação de insegurança alimentar. No Líbano, cerca de 80% do trigo importado em 2020 provieram da Ucrânia e outros 15% da Rússia, indicam dados oficiais. Depois da explosão de um silo de armazenamento no porto de Beirute, há dois anos, as reservas do país ficaram reduzidas a um mês. A situação é dramática, tanto mais que 80% da população vivem agora na pobreza.
Afeganistão
O PAM estima que cerca de 95% dos 38 milhões de habitantes do Afeganistão não têm alimentos suficientes para comer nem dinheiro para os comprar. Cerca de 23 milhões – mais de 55% – já passam fome. A guerra na Ucrânia é «um desastre», não só porque «desvia recursos, simpatia e atenção merecidos por milhões de afegãos que precisam de fundos, alimentos e protecção contra abusos de direitos humanos», mas porque também «irá beneficiar os talibãs, que aproveitarão o facto de o mundo estar distraído com outro agressor para assim consolidar o seu poder», analisa o United States Institute for Peace. Embora os principais fornecimentos de trigo ao Afeganistão provenham do Cazaquistão e do Usbequistão, a subida dos preços dos bens essenciais e do combustível poderá aumentar em 20% o custo da assistência humanitária. Um saco de farinha custa o equivalente a 26 euros, mas a maioria dos afegãos vive agora com menos 1,75 euros por dia. A Unicef calcula que mais de um milhão de crianças afegãs com menos de 5 anos correm o risco de morrer desnutridas; 3,5 milhões precisam de ajuda alimentar. O PNUD avisa que os rendimentos de 97% dos Afegãos ficarão este ano abaixo da linha de pobreza.
África Oriental
Antes da guerra da Rússia na Ucrânia – países que fornecem 90% do trigo que se consome na África Oriental –, pelo menos 28 milhões de pessoas na Etiópia, Quénia, Somália e Sudão do Sul enfrentavam o perigo real de fome severa, em consequência de conflitos locais, da pior praga de gafanhotos dos últimos setenta anos, de cheias diluvianas e de uma seca sem precedentes nas últimas quatro décadas. Agora, porque os preços dos bens alimentares, já exacerbados pelos efeitos da covid-19, aumentaram 80% desde a invasão russa, teme-se uma catástrofe, alerta a organização humanitária britânica Oxfam. A Etiópia vive a mais grave crise de insegurança alimentar desde 2016, com mais de 30 milhões de pessoas a necessitar de assistência. Uma semana após a invasão russa, o preço do óleo de girassol, por exemplo, aumentou 215%. Na região somali, no Leste, 3,5 milhões de pessoas não têm água e alimentos suficientes. Na região do Tigré, no Norte, com nove milhões a precisar de ajuda, a situação é ainda mais crítica, devido a uma guerra civil iniciada em 2020. No Quénia, muito dependente do trigo russo e ucraniano, os preços aumentaram de 345 para 550 dólares a tonelada, depois de uma quebra de 70% nas colheitas. Pelo menos 3,1 milhões de pessoas estão em situação de fome aguda. Na Somália, que importa praticamente todos os cereais da Ucrânia ou da Rússia (o preço da farinha aumentou mais de 50%) e onde 90% do território enfrenta uma seca severa, 4,3 milhões de pessoas passam fome. Pelo menos 2,3 milhões foram obrigadas a deixar as suas casas, em busca de sustento. Quase metade das crianças com menos de 5 anos estão desnutridas. No Sudão do Sul, o PAM alerta que, este ano, poderá ser a pior crise de fome de sempre: mais de 70% da população luta pela subsistência num país criado em 2011 e onde a insegurança alimentar atingiu níveis sem precedentes, causada por conflitos e choques climáticos, pela pandemia de covid-19 e pelo aumento constante dos preços.