Formação Permanente – Português
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Manter sempre vivo “o estupor eucarístico”
Síntese das pregações da Quaresma 2022
Card. Raniero Cantalamessa
1. A LITURGIA DA PALAVRA
Algumas igrejas locais e nacionais decidiram dedicar o ano corrente a uma catequese especial sobre a Eucaristia, em vista de um desejado renascimento eucarístico na Igreja católica. Parece-me uma decisão oportuna e um exemplo a ser seguido. Por isso, pensei em dar uma pequena colaboração ao projeto, dedicando as reflexões desta Quaresma a uma revisitação do mistério eucarístico.
A Eucaristia está no centro de todo tempo litúrgico. É o que celebramos cada dia, a Páscoa diária. Cada pequeno progresso na sua compreensão se traduz em um progresso na via espiritual da pessoa e da comunidade eclesial. Contudo, ela é também, infelizmente, a coisa mais exposta, pela sua repetitividade, a cair na rotina, a se tornar coisa habitual. São João Paulo II, na Carta Ecclesia de Eucharistia de abril de 2003, diz que os cristãos devem redescobrir e manter sempre vivo “o estupor eucarístico”. Assim, a este fim, gostariam de servir as nossas reflexões: a reencontrar o estupor eucarístico.
A Eucaristia na história da salvação
Que posto ocupa a Eucaristia na história da salvação? A resposta é: não ocupa um lugar, mas a ocupa inteiramente! A Eucaristia é coextensiva à história da salvação. Ela, porém, está presente em três modos diversos, nos três diversos tempos, ou fases, da salvação: está presente no Antigo Testamento como figura; está presente no Novo Testamento como evento e está presente no tempo da Igreja como sacramento. A figura antecipa e prepara o evento, o sacramento “prolonga” e atualiza o evento.
No Antigo Testamento, dizia eu, a Eucaristia está presente “em figura”. Uma destas figuras era o maná, uma outra era o sacrifício de Melquisedec, uma outra ainda era o sacrifício de Isaac. Na sequência Lauda Sion Salvatorem, composta por Santo Tomás de Aquino para a festa de Corpus Christi, canta-se: “As figuras o simbolizam: é Isaac que se imola, o cordeiro que se destina à Páscoa, o maná dado a nossos pais”. Enquanto figuras da Eucaristia, Santo Tomás chama estes ritos de “os sacramentos da antiga Lei”.
Com a vinda de Cristo e o seu mistério de morte e ressurreição, a Eucaristia não está mais presente como figura, mas como evento, como realidade. Nós o chamamos “evento” porque é algo historicamente acontecido, um fato único no tempo e no espaço, ocorrido apenas uma vez (semel) e irrepetível: Cristo, “na plenitude dos tempos, uma vez por todas, se manifestou para destruir o pecado pelo sacrifício de si mesmo” (Hb 9,26).
Enfim, no tempo da Igreja, a Eucaristia, eu dizia, está presente como sacramento, isto é, no sinal do pão e do vinho, instituído por Cristo. É importante que compreendamos bem a diferença entre o evento e o sacramento: na prática, a diferença entre a história e a liturgia. Deixemo-nos ajudar por Santo Agostinho.
Nós – afirma o santo doutor – sabemos e cremos com fé certíssima que Cristo morreu uma só vez por nós, ele, justo pelos pecadores, ele, Senhor pelos servos. Sabemos perfeitamente que isso aconteceu uma só vez; e, contudo, o sacramento periodicamente o renova, como se se repetisse várias vezes o que a história proclama ter acontecido uma só vez. E, ainda assim, evento e sacramento não contrastam entre si, quase como se o sacramento fosse enganoso e apenas o evento fosse real. De fato, do que a história afirma ter acontecido na realidade, uma só vez, o sacramento renova (renovat) frequentemente a celebração disso no coração dos fiéis. A história desvela o que aconteceu uma vez e como aconteceu, a liturgia faz com que o passado não seja esquecido; não no sentido de que o faz acontecer de novo (non faciendo), mas no sentido de que o celebra (sed celebrando).
Precisar o nexo que existe entre o sacrifício único da cruz e a Missa é algo bem delicado e tem sido sempre um dos pontos de maior discordância entre católicos e protestantes. Agostinho usa, como vimos, dois verbos: renovar e celebrar, que são justíssimos, com a condição, porém, de serem compreendidos um à luz do outro: a Missa renova o evento da cruz celebrando-o (não reiterando-o!) e o celebra renovando-o (não apenas recordando-o!). A palavra, na qual se realiza hoje o maior consentimento ecumênico, é talvez o verbo (usado também por Paulo VI, na Encíclica Mysterium fidei) representar, compreendido no sentido forte de re-apresentar, isto é, tornar novamente presente. Neste sentido, dizemos que a Eucaristia “representa” a cruz.
Segundo a história, houve, portanto, uma só Eucaristia, aquela realizada por Jesus com a sua vida e a sua morte; segundo a liturgia, ao contrário, ou seja, graças ao sacramento, há tantas Eucaristias quantas são celebradas e serão celebradas até o fim do mundo. O evento se realizou uma só vez (semel), o sacramento se realiza “cada vez” (quotiescumque). Graças aos sacramento da Eucaristia, nós nos tornamos, misteriosamente, contemporâneos do evento; o evento se faz presente a nós e nós ao evento.
O que nos propomos fazer é uma pequena catequese mistagógica sobre a Eucaristia. Para permanecer o mais ancorados possível na natureza sacramental e ritual dela, seguiremos de perto o desenvolvimento da Missa em suas três partes – liturgia da palavra, liturgia eucarística e comunhão –, acrescentando no fim uma reflexão sobre o culto eucarístico fora da Missa.
Liturgia da palavra
Nos primeiríssimos dias da Igreja, a liturgia da Palavra era separada da liturgia eucarística. Os discípulos, referem os Atos dos Apóstolos, “dia após dia, unânimes, frequentavam o templo”; aí escutavam a leitura da Bíblia, recitavam os salmos e as orações, junto com os outros judeus; faziam o que se faz na liturgia da Palavra; depois se reuniam à parte, em suas casas, para “partir o pão”, isto é, para celebrar a Eucaristia (cf. At 2,46).
Bem cedo, contudo, esta praxe se tornou impossível, seja pela hostilidade da parte das autoridades hebraicas em relação a eles, seja porque as Escrituras tinham então adquirido para eles um sentido novo, orientado todo a Cristo. foi assim que também a escuta da Escritura se transferiu do templo e da sinagoga aos lugares de culto cristãos, assumindo pouco a pouco a fisionomia da atual liturgia da Palavra que precede a oração eucarística. Na descrição da celebração eucarística feita por São Justino no II século, não apenas a liturgia da Palavra é parte integrante dela, mas às leituras do Antigo Testamento se juntaram aquelas que o santo chama “as memórias dos apóstolos”, isto é, os Evangelhos e as Cartas, na prática o Novo Testamento.
Escutadas na liturgia, as leituras bíblicas assumem um sentido novo e mais forte do que quando lidas em outros contextos. Não têm tanto a finalidade de conhecer melhor a Bíblia, como quando é lida em casa ou em uma escola bíblica, quanto a de reconhecer aquele que se faz presente no partir o pão, de iluminar a cada vez um aspecto particular do mistério que está por se receber. Isto aparece, de modo quase programático, no episódio dos dois discípulos de Emaús. Foi escutando a explicação das Escrituras que o coração dos discípulos começou a se abrir, de modo que foram depois capazes de reconhece-lo “ao partir o pão” (Lc 24,1ss.). A de Jesus ressuscitado foi a primeira “liturgia da palavra” na história da Igreja!
Segunda característica: na Missa, as palavras e os episódios da Bíblia não são apenas narrados, mas revividos; a memória se torna realidade e presença. O que acontece “naquele tempo”, acontece “neste tempo”, “hoje” (hodie), como ama expressar-se a liturgia. Nós não somos apenas ouvintes da palavra, mas interlocutores e atores nela. É a nós, ali presentes, que é dirigida a palavra; somos chamados a assumir o lugar dos personagens evocados.
A Escritura proclamada durante a liturgia produz efeitos que estão acima de toda explicação humana, à maneira dos sacramentos que produzem o que significam. Os textos divinamente inspirados também têm um poder de cura. Após a leitura do trecho evangélico na Missa, a liturgia convida o ministro a beijar o livro dizendo: “Pelas palavras do santo Evangelho sejam perdoados os nossos pecados”.
A liturgia da Palavra é a melhor fonte que temos para fazer cada vez, da Missa, uma celebração nova e atraente, evitando assim o grande perigo de uma repetição monótona que, especialmente os jovens, acham entediante. Para que isto se realize, devemos investir mais tempo e oração na preparação da homilia. Os fiéis deveriam poder entender que a palavra de Deus toca as situações reais da vida e é a única a ter respostas às questões mais sérias da existência.
Há dois modos de preparar uma homilia. Alguém pode se sentar à escrivaninha e escolher o tema em base às próprias experiências e conhecimentos; assim, uma vez preparado o texto, pôr-se de joelhos e pedir a Deus para que infunda o Espírito nas próprias palavras. É algo bom, mas não é um modo profético. Para sermos proféticos, é preciso seguir a via inversa: antes, pôr-se de joelhos e perguntar a Deus qual é a palavra que ele quer fazer ressoar para seu povo.
Deus, de fato, tem uma sua palavra para cada ocasião e não deixa de revelá-la ao seu ministro que a pedir humildemente e com insistência. No início, não se tratará mais do que um pequeno movimento do coração, uma luz que se acende na mente, uma palavra da Escritura que chama a atenção e que lança luz sobre uma situação vivida. Trata-se, aparentemente, de uma pequena semente, mas contém o que o povo precisa escutar naquele momento.
Depois disso, alguém pode se sentar à escrivaninha, abrir os próprios livros, consultar anotações, reunir e organizar os próprios pensamentos, consultar os Padres da Igreja, os mestres, às vezes, os poetas; mas agora, não é mais a palavra de Deus que está à serviço da sua cultura, mas a sua cultura a serviço da palavra de Deus. Só assim a Palavra manifesta o seu poder intrínseco.
A obra do Espírito Santo
Mas é preciso acrescentar uma cosa: toda a atenção dada à palavra de Deus, por si só, não basta. Sobre ela deve descer “a força do alto”. Na Eucaristia, a ação do Espírito Santo não é limitada apenas ao momento da consagração, à epiclese que se recita antes dela. A sua presença é igualmente indispensável para a liturgia da palavra, e veremos, a seu tempo, para a comunhão.
O Espírito Santo continua, na Igreja, a ação do Ressuscitado que, após a Páscoa, “abria a inteligência dos discípulos para entenderem as Escrituras” (cf. Lc 24,45). A escritura, afirma a Dei Verbum, do Concílio Vaticano II, “deve ser lida e interpretada com o mesmo espírito com que foi escrita”. Na liturgia da palavra, a ação do Espírito Santo é exercida mediante a unção espiritual presente em quem fala e em quem escuta.
Seria um erro confiar-se apenas na unção sacramental que recebemos uma vez por todas na ordenação sacerdotal ou episcopal. Ela nos habilita a cumprir certas ações sagradas, como governar, pregar e ministrar os sacramentos. Ela nos dá, por assim dizer, a autorização para fazer certas coisas, não necessariamente algo da autoridade que as multidões percebiam quando Jesus falava; assegura a sucessão apostólica, não necessariamente o sucesso apostólico!
Mas se a unção é dada pela presença do Espírito e é seu dom, o que podemos fazer para tê-la? Primeiramente, devemos partir de uma certeza: “Nós recebemos a unção do Santo”, assegura-nos São João (1Jo 2,20). Ou seja, graças ao batismo e à crisma – e, para alguns, à ordenação presbiteral ou episcopal –, nós já possuímos a unção. Na verdade, segundo a doutrina católica, ela imprimiu em nossa alma um caráter indelével, como uma marca ou um selo: “É Deus – escreve o Apóstolo – que nos confirma juntamente convosco, em Cristo, como também é Deus que nos ungiu, nos marcou com seu selo e deu-nos, em nossos corações, a garantia Espírito” (2Cor 1,21-22).
Esta unção, porém, é como um unguento perfumado fechado em um vaso: permanece inerte e não libera nenhum perfume se não se quebrar e não se abrir o vaso. Assim acontece com o caso de alabastro quebrado pela mulher do evangelho, cujo perfume encheu a casa inteira (Mc 14,3). Aí está onde se insere a nossa parte em relação à unção. Ela não depende de nós, mas depende de nós remover os obstáculos que impedem sua irradiação. Não é difícil entender o que significa para nós quebrar o vaso de alabastro. O vaso é a nossa humanidade, o nosso eu, às vezes, o nosso árido intelectualismo. Quebrá-lo, significa pôr-se em estado de submissão a Deus e de resistência ao mundo.
Felizmente, nem tudo é confiado ao esforço ascético. Muito mais, nesse caso, a fé, a oração, a humilde súplica. Pedir, assim, a unção antes de nos dirigirmos a uma pregação ou a uma ação importante a serviço do Reino. Enquanto nos preparamos à leitura do evangelho e à homilia, a liturgia nos faz pedir ao Senhor para purificar o nosso coração e os nossos lábios para poder anunciar dignamente o evangelho. Por que não dizer, vez ou outra (ou ao menos pensar para si mesmo): “Ó Deus todo-poderoso, ungi-me o coração e os lábios, para que eu anuncie com a doçura e a força do Espírito a vossa palavra”?
A unção não é necessária apenas aos pregadores para proclamar eficazmente a palavra, também o é aos ouvintes para acolhê-la. Comenta Agostinho: “Quando falta a sua inspiração [de Cristo] e a sua unção, as palavras externas fazem apenas um inútil ruído”.
2. A ORAÇÃO EUCARÍSTICA
“Tomai, comei: isto é o meu corpo”
O assunto desta nossa catequese mistagógica é a parte central da Missa, a Oração eucarística, ou Anáfora, que tem em seu cento a consagração. Sobre ela, façamos dois tipos de consideração: uma litúrgica e ritual, a outra, teológica e existencial.
Do ponto de vista ritual e litúrgico, hoje temos um novo recurso que não tinham os Padres da Igreja e os doutores medievais. O recurso novo de que dispomos hoje é a reaproximação entre cristãos e judeus. Desde os primeiríssimos dias da Igreja, diversos fatores históricos levaram a acentuar a diferença entre cristianismo e judaísmo, até a contrapô-los entre si, como o faz já Inácio de Antioquia. Distinguir-se dos judeus ‒ sobre a data da Pasqua, os dias de jejum e em várias outras coisas ‒ tonar-se uma espécie de palavra de ordem. Uma acusação frequentemente dirigida aos próprios adversários e aos hereges é a de “judaizar”.
A tragédia do povo hebreu e o novo clima de diálogo com o judaísmo, iniciado a partir do Concílio Vaticano II, tornaram possível um melhor conhecimento da matriz hebraica da Eucaristia. Como não se entende a Páscoa cristã se não é considerada como o cumprimento daquilo que a Páscoa hebraica preanunciava, assim não se entende a fundo a Eucaristia se não é vista como o cumprimento daquilo que os hebreus faziam e diziam no curso da sua refeição ritual. Um primeiro resultado importante desta retomada foi que nenhum estudioso sério, hoje, avança mais na hipótese de que a Eucaristia cristã seja explicada à luz da ceia em voga em alguns cultos mistéricos do helenismo, como se tentou fazer por mais de um século.
O primeiro nome com que a Eucaristia é designada no Novo Testamento por Paulo é o de “ceia do Senhor” (kuriakon deipnon) (1Cor 11,20), com referência evidente à ceia hebraica, da qual já se diferencia pela fé em Jesus. A Eucaristia é o sacramento da continuidade entre Antigo e Novo Testamento, entre judaísmo e cristianismo.
A Eucaristia e a Beraká hebraica
É esta a perspectiva em que se situa Bento XVI, no capítulo dedicado à instituição da Eucaristia em seu segundo volume sobre Jesus de Nazaré. Seguindo a opinião já predominante entre os estudiosos, ele aceita a cronologia joanina, segundo a qual a última ceia de Jesus não foi uma ceia pascal, mas foi uma solene refeição de despedida (a “última ceia”!) e considera que se possa “traçar o desenvolvimento da eucharistia cristã, isto é, do cânon, a partir da beraká hebraica”.
Por várias razões culturais e históricas, a partir da Escolástica em diante, buscou-se explicar a Eucaristia à luz da filosofia, particularmente, das noções aristotélicas de substância e de acidentes. Isto era também um pôr a serviço da fé os novos conhecimentos do momento e, portanto, um imitar o método dos Padres. Em nossos dias, devemos fazer o mesmo com os novos conhecimentos, desta vez, de ordens históricas e litúrgicas, mais do que filosóficas. Eles têm a vantagem de ser as categorias com que pensava e falava Jesus, que não eram, certamente, os conceitos aristotélicos de matéria e forma, substância e acidentes, mas as de sinal e realidade e de memorial.
Na linha de alguns estudos recentes, sobretudo o de L. Bouyer, gostaria de mostrar a vívida luz que é lançada sobre a Eucaristia cristã quando colocamos as narrativas evangélicas da instituição como pano de fundo do que sabemos da refeição ritual hebraica. A novidade do gesto de Jesus não parecerá diminuída, mas exaltada ao máximo.
O elo entre o antigo e o novo rito é dado pela Didaké, um escrito da era apostólica, que podemos considerar o primeiro esboço de anáfora eucarística. O rito sinagogal era composto por uma série de orações chamadas de “berakah”, que em grego é traduzido por “Eucarestia”. No início da refeição, cada um, à sua vez, tomava em mãos um cálice de vinho e, antes de levá-lo aos lábios, repetia uma bênção que a liturgia atual nos faz repetir quase literalmente no momento do ofertório: “Sê bendito, Senhor, nosso Deus, Rei dos séculos, que nos deste este fruto da videira”.
Mas a refeição começava oficialmente apenas quando o pai de família, ou o chefe da comunidade, tivesse partido o pão que devia ser distribuído entre os comensais. E, de fato, Jesus toma o pão, recita a bênção e o distribui dizendo: “Isto é o meu corpo…” E aqui, o rito ‒ que era apenas uma preparação ‒ torna-se a realidade.
Depois da bênção do pão, eram servidos os pratos de costume. Quando a refeição está prestes a terminar, os comensais estão prontos para o grande ato ritual que conclui a celebração e lhe dá o significado mais profundo. Todos lavam as mãos, como no início. Feito isto, tendo diante de si um cálice de vinho misturado com água, quem preside convida a fazer as três orações de agradecimento: a primeira a Deus criador, a segunda pela libertação do Egito, a terceira porque a sua obra continua no presente. Terminada a oração, o cálice passava de mão em mão e cada um bebia. Este, o rito antigo realizado por Jesus em vida.
Lucas afirma que, após ter ceado, Jesus tomou o cálice, dizendo: “Este cálice é a nova Aliança no meu Sangue, que é derramado por vós”. Algo de decisivo acontece no momento em que Jesus acrescenta estas palavras à fórmula das orações de agradecimentos, isto é, à beraká hebraica. Aquele rito era um banquete sagrado, no qual se celebrava e se agradecia a um Deus salvador, que tinha redimido o seu povo para estreitar com ele uma aliança de amor, concluída no sangue de um cordeiro. A refeição diária bendizia Deus por aquela Aliança, mas agora, no momento e, que Jesus decide dar a vida pelos seus como o verdadeiro cordeiro, ele declarou concluída aquela velha Aliança que todos juntos estavam celebrando liturgicamente.
Naquele momento, com poucas e simples palavras, ele estreita com os seus a nova e eterna Aliança no seu Sangue. Acrescentando as palavras “fazei isto em memória de mim”, Jesus confere um alcance duradouro ao seu dom. Do passado, o olhar se projeta ao futuro. Tudo quanto ele fez até agora na ceia é posto em nossas mãos. Repetindo aquilo que ele fez, renova-se aquele ato central da história humana, que é a sua morte pelo mundo. A figura do cordeiro pascal que, na cruz, torna-se evento, na ceia nos é dado como sacramento, isto é, como memorial perene do evento.
Sacerdote e vítima
Isto, dizia eu, no que se refere ao aspecto litúrgico e ritual. Passemos agora à outra consideração, àquela de tipo pessoal e existencial, em outras palavras, ao papel que desempenhamos nós, sacerdotes e fiéis, em tal momento da Missa. Para compreender o papel do sacerdote na consagração, é de vital importância conhecer a natureza do sacrifício e do sacerdócio de Cristo, pois é deles que deriva o sacerdócio cristão, seja o batismal comum a todos, seja o dos ministros ordenados.
Nós não somos mais, na realidade, “sacerdotes segundo a ordem de Melquisedec”; somos sacerdotes “segundo a ordem de Jesus Cristo”; sobre o altar, agimos “in persona Christi”, isto é, representamos Sumo Sacerdote que é Cristo.
A Carta aos Hebreus explica em que consiste a novidade e a unicidade do sacerdócio de Cristo: “Ele entrou no Santuário, não com o sangue de bodes e bezerros, mas com seu próprio sangue, e isto, uma vez por todas, obtendo uma redenção eterna” (Hb 9,12). Todo sacerdote oferece algo de exterior a si mesmo, Cristo ofereceu a si mesmo; todo outro sacerdote oferece vítimas, Cristo se ofereceu vítima!
Santo Agostinho encerrou em poucas palavras a natureza deste novo gênero de sacerdócio, em que sacerdote e vítima são a mesma pessoa: “Ideo sacerdos quia sacrificium”, sacerdote porque vítima. Um notável estudioso definiu esta novidade do sacrifício de Cristo como “o fato central na história religiosa da humanidade”, que pôs fim para sempre à intrínseca aliança entre o sacro e a violência [René Girard].
Em Cristo, é Deus quem se faz vítima. Não são mais os seres humanos que oferecem sacrifícios a Deus para aplacá-lo e torná-lo favorável; é Deus quem sacrifica a si mesmo pela humanidade, entregando à morte por nós o seu Filho unigênito (cf. Jo 3,16). Jesus não veio com o sangue alheio, mas com o próprio sangue; não pôs os seus pecados sobre as costas de outros – animais ou criaturas humanas –, mas pôs os pecados dos outros sobre as suas costas: “Carregou nossos pecados em seu próprio corpo, sobre o lenho da cruz” (1Pd 2,24). Tudo isso significa que, na Missa, nós devemos ser ao mesmo tempo sacerdotes e vítimas.
À luz disso, reflitamos sobre as palavras da consagração: “Tomai, comei: isto é o meu corpo, que será entregue por vós”. Aquele Jesus do Cenáculo não existe mais! Existe o Cristo ressuscitado: o Cristo, para sermos exatos, que morreu, mas agora vive para sempre (cf. Ap 1,18). Mas estes Jesus é o “Cristo total”, Cabeça e corpo inseparavelmente unidos. Portanto, se é este Cristo total que pronuncia as palavras da consagração, eu também as pronuncio com ele. Eu as pronuncio, sim, “in persona Christi”, em nome de Cristo, mas também “em primeira pessoa”, isto é, em meu nome. E digo com Jesus: “Tomai, todos, e comei: isto é o meu corpo, que quero dar por vós… Tomai, todos, e bebei: isto é o meu sangue, que quero derramar por vós”.
Santo Agostinho afirma: “Naquilo que oferece, a Igreja oferece a si mesma”. Mais perto de nós, a mística mexicana Concepción Cabrera de Armida, familiarmente chamada Conchita, falecida em 1937 e beatificada pelo Papa Francisco em 2019, ao filho jesuíta, prestes a ser ordenado sacerdote, escreveu estas palavras: “Lembre-se, meu filho, quando tiver na mão a Hóstia Sagrada, não dirá: ‘Aqui está o corpo de Jesus, aqui está o seu sangue’, mas dirá: ‘Isto é o meu corpo, este é o meu sangue’: isto é, um a transformação deve ocorrer em você total, você deve se perder nele, ser outro Jesus”.
Tudo isso não se aplica apenas aos bispos e sacerdotes ordenados, mas a todos os batizados. Um famoso texto do Concílio assim se expressa:
“Os fiéis, por sua parte, concorrem para oblação da Eucaristia em virtude do seu sacerdócio real… Pela participação no sacrifício eucarístico de Cristo, fonte e centro de toda a vida cristã, oferecem a Deus a vítima divina e a si mesmos juntamente com ela; assim, quer pela oblação quer pela sagrada comunhão, não indiscriminadamente, mas cada um a seu modo, todos tomam parte na ação litúrgica”[Lumen gentium, 10-11].
Há dois corpos de Cristo sobre o altar: há o seu corpo real (o corpo “nascido da Virgem Maria”, morto, ressuscitado e subido ao céu) e há o seu corpo místico, que é a Igreja. Contudo, sobre o altar, está presente realmente o seu corpo real e está presente misticamente o seu corpo místico, em que “misticamente” significa: por força da sua inseparável união com a Cabeça. Nenhuma confusão entra as duas presenças, que são distintas, mas inseparáveis.
Dado que há duas “ofertas” e dois “dons” sobre o altar – o que deve se tornar o corpo e o sangue de Cristo (o pão e o vinho) e o que deve se tornar o corpo místico de Cristo –, assim há também duas “epicleses” na Missa, isto é, duas invocações do Espírito Santo. Na primeira, reza-se: “Por isso, nós vos suplicamos: santificai pelo Espírito Santo as oferendas que vos apresentamos para serem consagradas, a fim de que se tornem o Corpo e o Sangue de Jesus Cristo”; na segunda, que se recita após a consagração, reza-se: “sejamos repletos do Espírito Santo e nos tornemos em Cristo um só corpo e um só espírito. Que ele faça de nós uma oferenda perfeita”.
Eis como a Eucaristia faz a Igreja: a Eucaristia faz a Igreja, fazendo da Igreja uma Eucaristia! A Eucaristia não é apenas, genericamente, a fonte ou a causa da santidade da Igreja; é também a sua “forma”, isto é, o modelo. A santidade do cristão deve se realizar segundo a “forma” da Eucaristia; deve ser uma santidade eucarística. O cristão não pode se limitar a celebrar a Eucaristia, deve ser Eucaristia com Jesus.
O corpo e o sangue
Agora podemos tirar as consequências práticas desta doutrina para a nossa vida diária. Se, na consagração, também somos nós que dizemos, voltados aos irmãos: “Tomai, comei: isto é o meu corpo. Tomai, comei: isto é o meu sangue”, devemos saber o que significam “corpo” e “sangue”, para saber o que oferecemos.
A palavra “corpo” não indica, na Bíblia, um componente, ou uma parte, do homem que, unido aos outros componentes que são a alma e o espírito, forma o homem completo. Na linguagem bíblica e, portanto, na de Jesus e de Paulo, “corpo” indica o homem inteiro, na medida em que vive a sua vida em um corpo, em uma condição corpórea e mortal. “Corpo”, portanto, indica toda a vida. Ao instituir a Eucaristia, Jesus nos deixou toda a sua vida como um dom, desde o primeiro momento da encarnação até o último momento, com tudo o que preenchia concretamente aquela vida: silêncio, suor, fadigas, oração, lutas, humilhações…
Em seguida, Jesus diz: “Isto é o meu sangue”. O que acrescenta com a palavra “sangue”, se já nos deu toda a sua vida em seu corpo? Acrescenta a morte! Depois de nos ter dado a vida, ele também nos dá a parte mais preciosa dela, a sua morte. De fato, o termo “sangue”, na Bíblia, não indica uma parte do corpo, isto é, uma parte de uma parte do homem; indica um evento: a morte. Se o sangue é a sede da vida (assim se pensava então), seu “derramamento” é o sinal plástico da morte. A Eucaristia é o mistério do corpo e do sangue do Senhor, isto é, da vida e da morte do Senhor!
Agora, vindo a nós, o que oferecemos, oferecendo nosso corpo e nosso sangue, junto com Jesus, na Missa? Nós também oferecemos o que Jesus ofereceu: a vida e a morte. Com a palavra “corpo”, damos tudo o que constitui concretamente a vida que levamos neste mundo, a nossa experiência: tempo, saúde, energias, capacidades, afeto, talvez apenas um sorriso. O sorriso é algo que só um espírito que vive em um corpo pode fazer e é, às vezes, algo tão precioso. Com a palavra “sangue”, também nós expressamos a oferta da nossa morte. Não necessariamente a morte definitiva, o martírio por Cristo ou pelos irmãos. É morte tudo o que em nós, a partir de agora, prepara e antecipa a morte: humilhações, fracassos, doenças que imobilizam, limitações causadas pela idade, pela saúde, tudo isso, em uma palavra, que nos “mortifica”.
Tudo isso exige, contudo, que nós, assim que saímos da Missa, empenhemo-nos em cumprir o que dissemos; que realmente nos esforcemos, com todas as nossas limitações, para oferecer aos irmãos o nosso “corpo”, isto é, o tempo, as energias, a atenção; em uma palavra, a nossa vida. É preciso, portanto, que, depois de ter dito aos irmãos: “Tomai, comei”, nós nos deixemos realmente “comer”, e nos deixemos comer sobretudo por quem não o faz com toda a delicadeza e cortesia que esperaríamos. Santo Inácio de Antioquia, a caminho de Roma para aí morrer mártir, escrevia: “Sou trigo de Deus, serei triturado pelos dentes das feras para tornar-me o puro pão de Cristo”. Cada um de nós, se olhar bem ao redor, verá esses dentes afiados de feras que ameaçam: são críticas, contrastes, oposições ocultas ou às claras, divergências de opiniões com quem está ao nosso lado, diversidades de caráter.
Um grande mestre espiritual francês, Pierre Olivaint (1816-1871), dizia: “De manhã, na Missa, eu sou sacerdote e Jesus é vítima; ao longo do dia, Jesus é sacerdote e eu, vítima”. Assim um sacerdote imita o “bom Pastor”, porque dá realmente a vida pelas suas ovelhas.
A nossa assinatura sobre o dom
Gostaria de resumir, com a ajuda de um exemplo humano, o que acontece na celebração eucarística. Pensemos em uma numerosa família na qual há um filho, o primogênito, que admira e ama sem medidas o próprio pai. Pelo seu aniversário, que dar-lhe um presente precioso. Antes de presenteá-lo, porém, pede secretamente a todos os seus irmãos e irmãs para pôr sua assinatura sobre o presente. Este chega às mãos do pai, portanto, como sinal de amor de todos os seus filhos, indistintamente, mesmo se, na realidade, apenas um pagou o preço dele.
A nossa assinatura são as poucas gotas de água que são misturadas ao vinho no cálice. Não são mais do que água, mas, misturadas no cálice, tornam-se uma única bebida. A assinatura de todos é o solene Amém que a assembleia pronuncia, ou canta, ao término da doxologia: “Por Cristo, com Cristo, em Cristo, a vós, Deus Pai todo-poderoso, na unidade do Espírito Santo, toda a honra e toda a glória, agora e para sempre… AMÉM!”.
Sabemos que quem assinou um compromisso, tem o dever de honrar a própria assinatura. Isto quer dizer que, saindo da Missa, devemos fazer também nós da nossa vida um dom de amor ao Pai e aos irmãos. Nós, repito, não somos chamados apenas a celebrar a Eucaristia, mas também a nos fazer eucaristia. Que Deus nos ajude nisto!
3. A COMUNHÃO COM O CORPO E O SANGUE DE CRISTO
Em nossa catequese mistagógica sobre a Eucaristia ‒ após a Liturgia da Palavra e a Consagração ‒, chegamos ao terceiro momento, o da comunhão. Este é o momento da Missa que mais claramente expressa a unidade e a igualdade fundamental de todos os membros do povo de Deus, abaixo de qualquer distinção de posição e ministério. Até então, a distinção dos ministérios é visível: na liturgia da Palavra, a distinção entre a Igreja que ensina e a Igreja que aprende; na consagração, a distinção entre o sacerdócio ministerial e o sacerdócio universal. Na comunhão não há distinção. A comunhão recebida pelo simples batizado é idêntica à recebida pelo sacerdote ou pelo bispo. A comunhão eucarística é a proclamação sacramental de que a koinonia vem em primeiro lugar na Igreja e é mais importante que a hierarquia.
Reflitamos sobre a comunhão eucarística a partir de um texto de São Paulo:
O cálice da bênção, que abençoamos, não é comunhão com o sangue de Cristo? E o pão que partimos, não é comunhão com o corpo de Cristo? Porque há um só pão, nós, embora muitos, somos um só corpo, pois todos participamos desse único pão (1Cor 10,16-17).
A palavra “corpo” recorre duas vezes nos dois versículos, mas com um significado diverso. No primeiro caso (“o pão que partimos, não é comunhão com o corpo de Cristo?”), indica o corpo real de Cristo, nascido de Maria, morto e ressuscitado; no segundo (“somos um só corpo”), indica o corpo místico, a Igreja. Não se podia dizer de maneira mais sucinta e mais clara que a comunhão eucarística é sempre comunhão com Deus e comunhão com os irmãos; que nela há uma dimensão, por assim dizer, vertical uma dimensão horizontal. Partamos da primeira.
A Eucaristia comunhão com Cristo
Busquemos aprofundar qual gênero de comunhão se estabelece entre nós e Cristo na Eucaristia. Em João 6,57, Jesus diz: “Como o Pai, que vive, me enviou e eu vivo pelo Pai, também o que comer de mim viverá por mim”. A preposição “por” (em grego, dià) tem aqui valor causal e final; indica tanto um movimento de proveniência e um movimento de destinação. Significa que quem come o corpo de Cristo vive “dele”, isto é, por causa dele, em virtude da vida que provém dele, e vive “em vista dele”, isto é, para sua glória, seu amor, seu Reino. Como Jesus vive do Pai e para o Pai, assim, comungando do santo mistério do seu corpo e do seu sangue, nós vivemos de Jesus e para Jesus.
É, de fato, o princípio vital mais forte que assimila a si o menos forte, não vice-versa. É o vegetal que assimila o mineral, não vice-versa; é o animal que assimila tanto o vegetal quanto o mineral, não vice-versa. Assim, agora, no nível espiritual, é o divino que assimila a si o humano, e não vice-versa. Enquanto que, em todos os outros casos, é aquele que come quem assimila a si o que come, aqui, aquele que é comido é quem assimila a si quem o come. A quem se aproxima para recebê-lo, Jesus repete o que dizia a Agostinho: “Não me transformarás em ti, mas te transformarás em mim”.
Um filósofo ateu afirmou: “O homem é o que come” (F. Feuerbach), querendo dizer que no homem não existe uma diferença qualitativa entre matéria e espírito, mas que tudo se reduz ao componente orgânico e material. Um ateu, sem saber, deu a melhor formulação de um mistério cristão. Graças à Eucaristia, o cristão é realmente o que come! Já escrevia, há muito tempo, São Leão Magno: “A nossa participação no corpo e no sangue de Cristo não tende a outra coisa senão a fazer com que nos tornemos o que comemos”.
Na Eucaristia, não há, portanto, apenas comunhão entre Cristo e nós, mas também assimilação, a comunhão não é apenas união de dois corpos, de duas mentes, de duas vontades, mas é assimilação ao único corpo, à única mente e vontade de Cristo. “Quem se une ao Senhor, torna-se com ele um só espírito” (1Cor 6,17).
A Carta aos Efésios diz que o matrimônio humano é um símbolo da união entre Cristo e a Igreja: “Por isso, o homem deixará seu pai e sua mãe e se unirá à sua mulher, e os dois serão uma só carne. Este mistério é grande – eu digo isto com referência a Cristo e à Chiesa!” (Ef 5,31-33). A Eucaristia ‒ para usar uma imagem audaz, mas verdadeira ‒ é a consumação do matrimônio entre Cristo e a Igreja, e uma vida cristã sem a Eucaristia é um matrimônio ratificado, mas não consumado. No momento da comunhão, o celebrante exclama: ” Felizes os convidados para a Ceia do Senhor.” e o Apocalipse – do qual a frase é tirada – diz ainda mais explicitamente: “Felizes os convidados para a ceia das bodas do Cordeiro” (Ap 19,9).
Agora ‒ sempre segundo São Paulo ‒ a consequência imediata do matrimônio é que o corpo (isto é, a pessoa toda) do marido se torna da esposa, e vice-versa, o corpo da esposa se torna do marido (cf. 1Cor 7,4). Isto significa que a carne incorruptível e doadora de vida do Verbo encarnado se torna “minha”, mas também a minha carne, a minha humanidade, torna-se de Cristo, é apropriada por ele. Na Eucaristia, nós recebemos o corpo e o sangue de Cristo, mas também Cristo “recebe” o nosso corpo e o nosso sangue! Jesus, escreve Santo Hilário de Poitiers, assume a carne daquele que assume a sua. Ele nos diz: “Toma, isto é o meu corpo”, mas também podemos dizer-lhe: “Toma, isto é o meu corpo”.
Busquemos entender as consequências de tudo isso. Em sua vida terrena, Jesus não fez todas as experiências humanas possíveis e imagináveis. Para começar, foi um homem, não uma mulher: não viveu a condição de metade da humanidade; não era casado, não experimentou o que significa estar unido por toda a vida a uma outra criatura, ter filhos, ou, pior, perder filhos; morreu jovem, não conheceu a velhice…
Mas agora, graças à Eucaristia, ele faz todas essas experiências. Vive na mulher a condição feminina, no enfermo, a enfermidade, no idoso, a velhice, no emigrante a precariedade, no bombardeado o terror… Não há nada em minha vida que não pertença a Cristo. Ninguém pode dizer: “Ah, Jesus não sabe o que significa ser casado, ser mulher, ter perdido um filho, estar doente, ser idoso, ser uma pessoa de cor!”. O que Cristo não pôde viver “segundo a carne”, vive e “experimenta” agora como ressuscitado “segundo o Espírito”, graças à comunhão esponsal da Missa. Tinha compreendido o motivo profundo disso Santa Isabel da Trindade, quando escrevia para sua mãe: “A esposa pertence ao esposo. O meu (Esposo) me tomou. Quer que eu seja para ele um acréscimo de humanidade”.
Que inesgotável motivo de estupor e consolação, pensar que a nossa humanidade se torna a humanidade de Cristo! Mas também, que responsabilidade tudo isso! Se os meus olhos se tornaram os olhos de Cristo, a minha boca, a de Cristo, eis o motivo para não permitir ao meu olhar se deter em imagens lascivas, à minha língua, não falar contra o irmão, ao meu corpo, não servir como instrumento de pecado. “Poderia eu fazer dos membros de Cristo membros de uma prostituta?”, escrevia aterrorizado São Paulo aos Coríntios (1Cor 6,15).
Todavia, ainda não é tudo; falta a parte mais bonita. O corpo da esposa pertence ao esposo; mas também o corpo do esposo pertence à esposa. Do dar, deve-se passar imediatamente, na comunhão, ao receber. Receber nada menos do que a santidade de Cristo! Onde se atuará, concretamente, na vida do fiel, aquela “maravilhosa troca” (admirabile commercium) de que fala a liturgia, se não se atua no momento da comunhão?
Aí temos a possibilidade de dar a Jesus os nossos farrapos e receber dele o “manto da justiça” (Is 61,10). De fato, está escrito que ele “se tornou para nós, da parte de Deus, sabedoria, justiça, santificação e redenção” (cf. 1Cor 1,30). O que ele se tornou “por nós” nos é destinado, pertence-nos. “Pois – escreve Cabasilas – como não pertencemos mais a nós mesmos, mas a Cristo que nos readquiriu a um alto preço (cf. 1Cor 6,20), daí segue-se que o que é de Cristo nos pertence, é mais nosso do que aquilo que provém de nós”. Só precisamos lembrar de uma coisa: nós pertencemos a Cristo por direito, ele nos pertence pela graça!
É uma descoberta capaz de dar asas à nossa vida espiritual. Este é o golpe de audácia da fé, e deveríamos rezar a Deus que não nos permita morrer sem antes tê-lo realizado.
A Eucaristia, comunhão com a Trindade
Refletir sobre a Eucaristia é como ver escancarar-se diante de nós, à medida que avançamos, horizontes sempre mais vastos que se abrem um sobre o outro, a perder de vista. O horizonte cristológico da comunhão que contemplamos até aqui se abre, de fato, sobre um horizonte trinitário. Em outras palavras, por meio da comunhão com Cristo, nós entramos em comunhão com toda a Trindade. Em sua “oração sacerdotal”, Jesus diz ao Pai: “Que eles sejam um, como nós somos um. Eu neles e tu em mim” (Jo 17,23). Aquelas palavras: “Eu neles e tu em mim”, significam que Jesus está em nós e que em Jesus há o Pai. Por isso, não se pode receber o Filho sem receber, com ele, também o Pai. A palavra de Cristo: “Quem me vê, vê o Pai” (Jo 14,9), significa também “quem me recebe, recebe o Pai”.
O motivo último disso é que Pai, Filho e Espírito Santo são uma única e inseparável natureza divina, são “um”. O que se diz do Pai vale também para o Espírito Santo.
Na comunhão, Jesus vem a nós como aquele que doa o Espírito. Não como aquele que um dia, há muito tempo, deu o Espírito, mas como aqueles que agora, consumado o seu sacrifício incruento sobre o altar, de novo, “entrega o Espírito” (cf. Jo 19, 30). A Eucaristia não é apenas a Páscoa diária; é também Pentecostes diário!
A comunhão uns com os outros
Destas alturas vertiginosas, voltemos agora à terra e passemos à segunda dimensão da comunhão eucarística: a comunhão com o corpo de Cristo que é a Igreja. Recordemos a palavra do Apóstolo: “Porque há um só pão, nós, embora muitos, somos um só corpo, pois todos participamos desse único pão”.
Desenvolvendo um pensamento já esboçado na Didaké, Santo Agostinho vê uma analogia no modo em que se formam os dois corpos de Cristo: o eucarístico e o eclesial. No caso da Eucaristia, temos o grão de trigo primeiramente lançado nas colinas que, debulhado, moído, misturado na água e cozido ao fogo, torna-se o pão que chega sobre o altar; no caso da Igreja, temos a multidão das pessoas que, reunidas pela pregação evangélica, moídas pelos jejuns e pela penitência, misturadas na água do batismo e cozidas ao fogo do Espírito, formam o corpo que é a Igreja.
Comunhão com os pobres
Isto vale, de modo especial, em relação aos pobres, aos aflitos e marginalizados. Aquele que disse sobre o pão: “Isto é o meu corpo”, disse também sobre o pobre. Disse-o quando, falando do que tiver sido feito para o faminto, o sedento, o preso e o nu, declarou solenemente: “Foi a mim que o fizestes!”. É como dizer: “Estava com fome, com sede, eu era o forasteiro, o doente, o prisioneiro” (cf. Mt 25,35ss).
A irmã do grande filósofo cristão Blaise Pascal relata o seguinte fato sobre seu irmão. Em sua última enfermidade, não conseguia reter nada do que comia e, por isso, não lhe permitiram receber o viático, que pedia insistentemente. Então disse: “Se não podem me dar a Eucaristia, deixem pelo menos que entre um pobre em meu quarto. Se não posso comungar a Cabeça, quero ao menos comungar com o seu corpo”.
O único impedimento para receber a comunhão que São Paulo menciona explicitamente é o fato de que, na assembleia, “um passa fome e outro se embriaga”: “De fato, quando vos reunis, não é para comer a ceia do Senhor, pois cada um se apressa em comer a sua própria ceia e, enquanto um passa fome, o outro se embriaga” (1Cor 11,20-21). Dizer “isto não é comer a ceia do Senhor” é como dizer: a sua não é mais uma verdadeira Eucaristia! É uma afirmação forte, também de um ponto de vista teológico, à qual talvez não prestemos bastante atenção.
Hoje em dia, a situação em que alguém passa fome e outro desperdiça comida não é mais um problema local, mas mundial. Não pode haver nada em comum entre a ceia do Senhor e o almoço do homem rico, onde o patrão tem um abundante banquete, ignorando o pobre que está fora da porta (cf. Lc 16,19ss). A preocupação de compartilhar o que se tem com quem necessita, próximos e distantes, deve ser parte integrante de nossa vida eucarística.
Jesus disse: “Os pobres sempre tendes convosco, mas a mim não tereis sempre” (Mt 26,11). Isto é verdade também no sentido de que nem sempre podemos receber o corpo de Cristo na Eucaristia e, mesmo quando o recebemos, isto dura apenas alguns minutos, enquanto podemos sempre recebê-lo nos pobres. Aqui, não há limites, é necessário apenas que o queiramos. Os pobres estão sempre ao nosso alcance. Cada vez que encontramos alguém que sofre, especialmente se se trata de certas formas extremas de sofrimento, se estivermos atentos, ouviremos, com os ouvidos da fé, a palavra de Cristo: “Isto é o meu corpo!”.
4. A EUCARISTIA, PRESENÇA REAL DO SENHOR
Depois das catequeses mistagógicas sobre as três partes da Missa ‒ liturgia da palavra, consagração e comunhão ‒ meditemos hoje a Eucaristia como presença real de Cristo na Igreja.
Como enfrentar um mistério tão alto e tão inacessível? Vêm-nos logo à memória as variadíssimas teorias e discussões existentes acerca disso, as divergências entre católicos e protestantes, entre latinos e ortodoxos…
Mas esta é precisamente a obra maravilhosa que o Espírito Santo vai realizando nos nossos dias entre todos os cristãos. Ele impele-nos a reconhecer quanta parte tinham, nas nossas disputas eucarísticas, a presunção humana de poder encerrar o mistério numa teoria ou, até, numa palavra, como também a vontade de prevalecer sobre o adversário. Impele-nos a arrependermo-nos por termos reduzido o supremo penhor de amor e de unidade, que o Senhor nos deixou, a um objeto privilegiado das nossas altercações.
A via do ecumenismo eucarístico é a via do reconhecimento recíproco, a via cristã da ágape, da partilha e das diferenças reconciliadas de que fala nosso Santo Padre. Não se trata de passar por cima das divergências reais, ou de renunciar a alguma coisa da doutrina católica autêntica. Trata-se, antes, de reunir todos os aspectos positivos e os valores autênticos que existem em cada uma das tradições, de modo a constituir um “montão” de verdades comuns que comece a atrair-nos para a unidade.
É incrível como algumas posições católicas, ortodoxas e protestantes, acerca da presença real, se tornam divergentes entre si e destrutivas, quando contrapostas e vistas em alternativa entre si, ao passo que se mostram maravilhosamente convergentes, se mantidas juntas em equilíbrio. É a síntese que devemos começar a fazer; devemos passar, como por um crivo, as grandes tradições cristãs, para colher de cada uma, como nos exorta o Apóstolo, “aquilo que é bom” (cf. 1Ts 5,21). Esta é a única maneira pela qual podemos esperar um dia sentar à mesma mesa.
Uma presença real, mas escondida: a tradição latina
Vamos agora examinar, com este espírito, as três principais tradições eucarísticas – a latina, a ortodoxa e a protestante – para nos edificarmos com as riquezas de cada uma e reunir a todas no tesouro comum da Igreja. A ideia que, no final, iremos ter do mistério da presença real ficará mais rica e mais viva. Na visão da teoria latina, o centro indiscutível da ação eucarística, da qual deriva a presença real de Cristo, é o momento da consagração. Nele, Jesus age e fala em primeira pessoa. A teologia latina recolhe, nisto, todo um filão da tradição patrística. Santo Ambrósio escreve:
Este pão é pão antes das palavras sacramentais; mas, ao intervir a consagração, o pão torna-se carne de Cristo… Com que palavras se fez a consagração, e de quem são essas palavras? Do Senhor Jesus! Todas as coisas que se dizem antes desse momento são ditas pelo sacerdote que louva a Deus, reza pelo povo, pelos reis e pelos outros; mas quando se chega ao momento de realizar o venerável sacramento, o sacerdote já não utiliza palavras suas, mas de Cristo. É, pois, a palavra que opera (conficit) o sacramento… Vês quanto é eficaz (operatorius) a fala de Cristo? Antes da consagração não havia corpo de Cristo, mas depois da consagração, eu digo-te que já existe o corpo de Cristo. Ele diz e a coisa acontece, Ele ordena e a coisa se afirma” (Sl 33,9).
Podemos falar, na visão latina, de um realismo cristológico. “Cristológico”, porque toda a atenção aqui se volta para Cristo, visto quer na sua existência histórica e encarnada, quer na de Ressuscitado; Cristo é tanto o objeto como o sujeito da Eucaristia, isto é, Aquele que é realizado na Eucaristia e Aquele que realiza a Eucaristia. “Realismo”, porque este Jesus não é visto presente no altar simplesmente num sinal ou num símbolo, mas em verdade e com a sua realidade. Esse realismo cristológico é visível, para darmos um exemplo, no cântico Ave verum: “Salve, corpo verdadeiro, nascido de Maria Virgem, que realmente sofreste e foste imolado na cruz pelos homens, e de cujo Lado aberto brotou sangue e água…”.
Seguidamente, o Concílio de Trento definiu melhor este modo de conceber a presença real, usando três advérbios: vere, realiter, substantialiter. Jesus está presente verdadeiramente, não só em imagem, ou em figura; está presente realmente, não só subjetivamente, para a fé dos crentes; está presente substancialmente, ou seja, segundo a sua realidade profunda que é invisível aos sentidos, e não segundo as aparências que continuam a ser as do pão e do vinho.
Poderia haver o perigo, é verdade, de se cair num “cru” realismo, ou num realismo exagerado, mas existe na Igreja o remédio para este perigo. Santo Agostinho esclareceu, de uma vez para sempre, que a presença de Jesus acontece “in sacramento”. Não é, por outras palavras, uma presença física, mas sacramental, mediada por sinais que são, precisamente, o pão e o vinho. Neste caso, porém, o sinal não exclui a realidade, mas torna-a presente, no único modo com que Cristo ressuscitado que “vive no Espírito” (1Pd 3,18) pode tornar-Se presente entre nós, enquanto vivemos ainda no corpo.
Cristo está, por isso, presente na Eucaristia num modo único que não tem correspondente noutro lugar. Nenhum adjetivo, por si só, é suficiente para descrever essa presença; nem sequer o adjetivo “real”. Real vem de res (coisa) e significa como uma coisa ou objeto. Ora, Jesus não está presente na Eucaristia como uma “coisa” ou um objeto, mas como uma pessoa. Se se quer atribuir um nome a esta presença, seria melhor chamar-lhe presença “eucarística”, porque se realiza somente na Eucaristia.
A ação do Espírito Santo: a tradição ortodoxa
A teologia latina apresenta muitas riquezas, mas não esgota – nem poderia fazê-lo – o mistério. Faltou-lhe, pelo menos no passado, o devido relevo ao Espírito Santo, que também é essencial para compreender a Eucaristia. Eis então que nos voltamos para o Oriente, para interrogar a tradição ortodoxa, com uma disposição, todavia, bem diferente da de outrora: já não preocupados com as diferenças, mas felizes pelo complemento que ela traz à nossa visão latina.
Com efeito, na tradição ortodoxa é posta no devido relevo a ação do Espírito Santo na celebração eucarística. De resto, este cotejo já produziu os seus frutos, depois do Concílio Vaticano II. Até então, no Cânon Romano da Missa, a única menção do Espírito Santo, incidentalmente, era a da doxologia final: “Por Cristo, com Cristo, em Cristo… na unidade do Espírito Santo…”. Pelo contrário, agora todos os novos cânones trazem uma dupla invocação do Espírito Santo: uma sobre os dons, antes da consagração, e outra sobre a Igreja, depois da consagração.
As liturgias orientais atribuíram sempre a realização da presença real de Cristo no altar a uma operação especial do Espírito Santo. O Espírito Santo que na Páscoa irrompeu no sepulcro e “tocando” no corpo inanimado de Jesus, O fez reviver, repete na Eucaristia este prodígio. Ele vem no sangue e no vinho que estão mortos e dá-lhes a vida, faz deles o corpo e o sangue vivos do Redentor. Verdadeiramente – como disse o próprio Jesus, falando da Eucaristia – “é o Espírito que dá a vida” (Jo 6,63).
É importante, no entanto, levar em conta uma coisa ‒ e aqui vemos como até a tradição latina tem algo a oferecer aos irmãos ortodoxos. O Espírito Santo não age separadamente de Jesus, mas dentro da palavra de Jesus. D’ele disse Jesus: “Não falará em seu nome, mas dirá o que escutou… O Espírito da Verdade manifestará a minha glória porque vai receber daquilo que é meu e vo-lo interpretará” (Jo 16,13-14). É por isso que não se deve separar as palavras de Jesus (“Isto é o meu corpo”) das palavras da epiclese (“O Espírito Santo santifique estes dons para que se convertam no corpo e e sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo”).
O apelo à unidade, para os católicos e os irmãos ortodoxos, vem da própria profundidade do mistério eucarístico. Mesmo que, pela natureza das coisas, a recordação da instituição e a invocação do Espírito Santo aconteçam em momentos distintos (o homem não pode exprimir o mistério num só instante), a sua ação, porém, está ligada. A eficácia vem certamente do Espírito (não do sacerdote, nem da Igreja), mas essa eficácia exerce-se dentro da palavra de Cristo e através dela. A eficácia que torna presente Jesus sobre o altar não vem – já o disse – da Igreja, mas – acrescento – não acontece sem a Igreja. Ela é o instrumento vivo, através do qual e juntamente com o qual o Espírito opera. Acontece, para a vinda de Jesus sobre o Altar, como para a vinda final na glória: “O Espírito e a Esposa (a Igreja) ‘dizem’ a Jesus: ‘Vem!’” (Ap 22,17). E ele vem!
A importância da fé: a espiritualidade protestante
A tradição latina colocou em evidência “quem” está presente na Eucaristia, Cristo; a tradição ortodoxa colocou em evidência “por quem” é operada a sua presença, pelo Espírito Santo; a teologia protestante coloca em evidência “sobre quem” opera essa presença; por outras palavras, sob que condições o sacramento opera, de fato, em quem o recebe, o que significa. Estas condições são diversas, mas resumem-se numa só palavra: a fé.
Não vamos deter-nos já nas consequências negativas, derivadas, em certos períodos, do princípio protestante segundo o qual os sacramentos não são senão “sinais da fé”. Ultrapassando os mal-entendidos e a polêmica, consideramos que este enérgico chamado à fé é salutar precisamente para salvar o sacramento e não deixá-lo cair ao nível das “boas obras”, ou a algo que age um pouco mecânica e magicamente, quase sem o homem saber. Trata-se, no fundo, de descobrir o significado profundo daquela exclamação que a liturgia faz ressoar no final da consagração e, outrora, recordemo-lo, estava inserida inclusive no centro da fórmula da consagração, como que a sublinhar que a fé é parte essencial do mistério: Mysterium fidei, mistério da fé!
A fé não “faz”, apenas “recebe” o sacramento. Só a palavra de Cristo repetida pela Igreja e tornada eficaz pelo Espírito Santo “faz” o sacramento. Mas que aproveitaria um sacramento “feito”, mas não “recebido”? A propósito da Encarnação, homens como Orígenes, Santo Agostinho, São Bernardo, disseram: “Que me aproveita a mim que Cristo tenha nascido uma vez de Maria em Belém, se não nasce também, pela fé, no meu coração?”. A mesma coisa se deve dizer também da Eucaristia: que me aproveita a mim que Cristo esteja realmente presente sobre o altar, se Ele não está presente para mim? Já no tempo em que Jesus estava presente sobre a terra, a fé era precisa; caso contrário – como Ele próprio tantas vezes repetiu no Evangelho –, a sua presença não serviria para nada, senão para condenação: “Ai de ti, Corazim, ai de ti, Cafarnaum!”.
A fé é necessária para que a presença de Jesus na Eucaristia seja, não só “real”, mas também “pessoal”, isto é, de pessoa para pessoa. Uma coisa é “estar”, e outra “estar presente”. A presença supõe alguém que está presente e alguém diante do qual está presente; supõe comunicação recíproca, diálogo entre duas pessoas livres, que tomam conhecimento uma da outra. Por conseguinte, é muito mais do que a simples presença num certo lugar. Esta dimensão subjetiva e existencial da presença eucarística não anula a presença objetiva que precede a fé do homem, antes a supõe e valoriza. Lutero, que exaltou tanto o papel da fé, é também um daqueles que sustentou com grande vigor a doutrina da presença real de Cristo no sacramento do altar. No decurso de um debate com outros Reformadores acerca deste tema, ele afirmou:
Não posso entender as palavras “Isto é o meu corpo”, diferentemente de como soam. Toca então aos outros demonstrar que onde a palavra diz: “Isto é o meu corpo”, o corpo de Deus não está lá. Não quero ouvir explicações baseadas na razão. Perante palavras tão claras, não admito perguntas; rejeito o raciocínio e a sã razão humana. Demonstrações materiais, argumentações geométricas: tudo rejeito completamente. Deus está acima de qualquer matemática e é preciso adorar com espanto a Palavra de Deus.
O rápido olhar que lançamos sobre a riqueza das diversas tradições cristãs foi suficiente para nos fazer entrever que dom imenso se perspectiva na Igreja, quando as várias confissões cristãs decidem colocar em comum os seus bens espirituais, como faziam os primeiros cristãos, dos quais se dizia que “colocavam em comum todas as coisas” (At 2,44). É esta a ágape maior, a dimensão de toda a Igreja, que o Senhor coloca no nosso coração para desejarmos ver, para a alegria do Pai comum e o fortalecimento da sua Igreja.
Sentimento de presença
Chegamos ao final da nossa breve peregrinação eucarística através das várias confissões cristãs. Recolhemos também nós alguns cestos de fragmentos que sobraram da grande multiplicação dos pães da Igreja. Mas não podemos terminar aqui a nossa meditação sobre o mistério da presença real. Seria como ter recolhido os fragmentos e não comê-los. A fé na presença real é uma grande coisa, mas não nos basta; pelo menos a fé entendida numa certa maneira. Não basta ter uma ideia exata, profunda, teologicamente perfeita da presença real de Jesus na Eucaristia. Quantos, entre os teólogos, sabem tudo sobre este mistério, mas não conhecem a presença real! Porque só “conhece”, em sentido bíblico, uma coisa, quem faz a experiência dessa mesma coisa. Conhece verdadeiramente o fogo só quem, pelo menos uma vez, foi atingido por uma chama e teve de se afastar velozmente para não se queimar.
São Gregório de Nissa deixou-nos uma expressão estupenda para indicar este mais alto nível de fé; fala de “um sentimento de presença” que se tem quando alguém é atingido pela presença de Deus, quando tem uma certa percepção (não só uma ideia) de que Ele está presente. Não se trata de uma percepção natural; é fruto de uma graça que opera como que uma ruptura de nível, um salto de qualidade.
Existe uma analogia muito grande com aquilo que acontecia quando, depois da Ressurreição, Jesus se deixava conhecer por alguém. Era algo de improviso que, de repente, mudava completamente o estado de uma pessoa. Poucos dias depois da Ressurreição, os apóstolos encontram-se no lago a pescar; na margem aparece um homem. Instala-se um diálogo à distância: “Filinhos, tendes alguma coisa para comer?”; respondem: “Não!”. Mas eis que brilha uma luz no coração de João, e ele lança um grito: “É o Senhor!”, e logo tudo muda e remam para terra (cf. Jo 21,4ss). O mesmo acontece, embora duma forma mais serena, com os discípulos de Emaús; Jesus caminhava com eles, “mas os olhos deles estavam como cegos e não o reconheceram “; finalmente, no momento de partir o pão, eis que “os olhos dos discípulos se abriram e eles reconheceram Jesus” (Lc 24,13ss). Algo de semelhante acontece no dia em que um cristão, depois de receber tantas e tantas vezes Jesus na Eucaristia, finalmente, por um dom da graça, o “reconhece”.
Da fé e do “sentimento” da presença real, deve brotar espontaneamente a reverência e, até, a ternura para com Jesus sacramentado. Este é um sentimento tão delicado e pessoal, que só falando dele nos arriscamos a estragá-lo.