Com a Carta Apostólica “Aparuit Illis” (= Apareceu-lhes), o Santo Padre instituiu o 3° Domingo do Tempo Comum como o Domingo da Palavra de Deus. Com esta iniciativa, o Papa responde aos muitos pedidos para celebrar “o Domingo da Palavra de Deus em toda a Igreja e com unidade de intenções… Seja dedicado à celebração, reflexão e divulgação da Palavra de Deus” (n. 2-3). A carta revela uma clara intenção ecumênica ao instituir este domingo e sugere formas para chamar a atenção para a importância da proclamação da Palavra de Deus na Liturgia, como a entronização do texto sagrado, proclamação solene, valorização da homilia como serviço à Palavra, celebração do rito do Leitorado.

Neste contexto proponho-vos uma meditação do cardeal Martini sobre o capitulo IV de São Marcos sobre as parabolas da semente, a Palavra de Deus.

As parábolas da semente

Nesta meditação queremos reflectir sobre o capítulo quarto de Marcos, chamado o “capítulo das parábolas”. Ele encerra principalmente três:

1) A parábola do semeador, com a explicação que segue.

2) A parábola da semente que cresce sozinha.

3) A parábola do grão de mostarda.

Estes parecem ser os três elementos que constituem a mais antiga unidade literária a partir da qual se desenvolveu o capítulo 4. A seguir foram acrescentadas outras duas breves parábolas: a da lâmpada sob a vasilha e a da medida evidentemente para colocá-las todas juntas.

Perguntamos: ao longo do itinerário dos Doze com Jesus, a que momento corresponde o ensinamento das parábolas?

A que esquema vem de encontro? Qual o momento do caminho dos apóstolos com o Senhor que é assinalado?

Parece muito provável que os ensinamentos das parábolas do cap. 4 correspondem a um momento de crise do ministério de Jesus. Por isso é necessário:

A) antes de tudo e brevemente, analisar a crise do ministério de Jesus;

B) ver, depois, como ela se reflecte e continua a agir na crise do catecúmeno que, na Igreja primitiva, lê este Evangelho;

C) considerar como esta crise pode espelhar-se em nós;

D) enfim, ver de que maneira as parábolas querem apresentar um ensinamento e vir ao encontro de tal momento de crise, momento necessário para a formação dos Doze no seguimento de Jesus.

a) Crise do ministério galilaico de Jesus

Os exegetas estão de acordo em que, depois dos primeiros momentos de sucesso, houve no ministério de Jesus um momento de crescente dificuldade. Esta dificuldade é acenada em várias partes de Marcos. Inicialmente trata-se de uma dificuldade de relações com os seus concidadãos, anunciada em Mc 6,3ss., onde Jesus é rejeitado pelos nazarenos que se escandalizam dele. Depois a coisa amplia-se; não vale só para Nazaré. Num certo momento, Jesus é levado a reacções como esta: “gemendo no seu espírito disse: Por que esta geração pede um sinal? Em verdade vos digo que não lhe será dado nenhum sinal, e foi para o outro lado do lago” (8,12).

É claramente um momento de choque, quase de ira de Cristo que não é compreendido. A sua mensagem não é acolhida e Jesus chega a ir embora, afasta-se. De resto, nem mesmo os próprios apóstolos o compreendem a fundo e poucos versículos depois, numa passagem que já lemos, Jesus pode repetir amargamente: “Ainda não compreendeis nem entendeis? Estais ainda com o coração endurecido? Já não vos lembrais, quando reparti cinco pães para os cinco mil, de quantos cestos recolhestes cheios de pedaços? Ainda não compreendestes” (8,17-21).

Isso significa que Jesus não passa de triunfo em triunfo, mas antes, depois da primeira grande onda de entusiasmo, que é expressamente anotado em 3,7 onde se fala de “grande multidão”, de uma grande massa de gente, gradualmente este entusiasmo vai diminuindo por vários motivos.

É também claro, por diversas expressões de Jesus, que muita gente que o segue não é da qualidade que Jesus quer; é gente que vai atrás de Jesus por motivos exteriores e que não sabe ver o fundo das coisas. Isso explica a insistência de Jesus: “Quem tiver ouvidos para ouvir, ouça” (4,9); porque a gente que não sabe compreender bem, é gente que vê e não entende, ouve e não compreende e por isso não se converte e não é perdoada.

Jesus tem dificuldade para fazer entender a sua mensagem; inicialmente, o povo é atraído por sinais estrepitosos, mas depois, quando se trata de chegar ao âmago da questão, muitos voltam atrás. Temos assim outras afirmações em capítulos seguintes bastante negativas e pessimistas: “Este povo honra-me com os lábios, mas o seu coração está longe de mim” (7,6).

Temos afirmações mais amplas, que se referem a muitos outros ouvintes em 9,19: “ó geração incrédula! Até quando estarei convosco? Até quando tenho de vos suportar?” Elas indicam que Jesus, no seu ministério, nem sempre tinha consolações. Ou a dura repreensão de 8,38: “Se alguém se envergonhar de mim e das minhas palavras no meio desta geração adúltera e pecadora, o Filho do homem também se envergonhará dele”.

Portanto, a partir do fim do cap. 3 de Marcos, assistimos a um declínio do prestígio pessoal de Jesus. Ele é gradualmente contestado e rejeitado e já em 3,6 se começa a querer eliminá-lo. A oposição parte dos Fariseus, mas depois estende-se à gente simples até tornar-se oposição completa. Na parábola dos vinhateiros Marcos, 12,10, Jesus já fala de si como da pedra que é rejeitada pelos construtores. Ele sente que a sua vida se encaminha em direcção ao fracasso, que ela é rejeitada. A rejeição será gritada em 15,14, quando Pilatos perguntar o que fez ele de mal, e o povo gritar sempre mais forte: «crucifica-o!»

Portanto, o Evangelho de Marcos não cala de forma alguma que o caminho de Jesus, depois de um primeiro momento de entusiasmo e de êxito, teve que entrar em choque com uma desconfiança crescente, com o afastamento de muitos, sempre mais numerosos, até ser completamente rejeitado pela maioria do seu povo.

Os Doze participam desta experiência a partir do dia em que, com entusiasmo e de maneira solene, foram chamados do meio da multidão para seguir Jesus. Ela repercute no Evangelho: também eles participam de maneira dolorosa da crise do ministério de Jesus. Quando Pedro, por exemplo, em 8,32 começa a censurar o Senhor, mostra sofrer verdadeiramente porque não pode, não consegue compreender o sentido das coisas que acontecem, e faz isso apresentando-se a si mesmo e aos outros apóstolos como se dissessem: Mas assim não dá, não te seguimos para isso, era outra a realidade que parecias prometer. O mesmo desânimo encontra-se em 9,32, quando Jesus fala da sua próxima paixão e eles nada compreendem daquele discurso e têm medo de interrogá-lo. Da mesma forma em 10,32, quando Jesus, precedendo-os vai a Jerusalém. Eles “admiravam-se disso e tinham medo”. Portanto, parece claro que também os apóstolos são vítimas de um sentimento de desânimo e mal-estar; ainda estão com Ele, mas perguntam-se por que as coisas caminham nesse rumo; não esperavam isso.

b) A crise do catecúmeno na Igreja primitiva

O catecúmeno que lê este Evangelho e nele encontra descrito o caminho que o espera no seguimento do Senhor, como sente repercutir em si a crise que se verificou no ministério galilaico de Jesus?

Digamos logo que também o catecúmeno, na Igreja primitiva, depois de ter respondido generosamente ao primeiro chamamento, análogo ao chamamento junto ao lago, atravessa a sua crise; crise necessária.

Quais são as causas que criam a crise do catecúmeno, depois do primeiro momento de entusiasmo? Podemos imaginá-lo facilmente pensando na situação do catecúmeno que do mundo pagão, rico de toda uma tradição, de uma cultura, de uma estrutura social bem organizada, entra no pequeno rebanho dos crentes em Cristo e se pergunta: Por que tão poucos crêem e se convertem? Por que esta palavra de Deus se é verdadeiramente palavra de Deus não leva o mundo de roldão, não o transforma num instante?

Além disso, uma pergunta era feita com mais dor, amargura e abatimento pelos judeus convertidos: por que é que o povo não aceitou a palavra? Por que não há uma conversão em massa como se esperava pelas promessas? É um problema que angustiava também a Paulo, que era continuamente tentado e agitado por este pensamento: mas por que a palavra de Deus se é palavra de Deus não muda, não converte o coração de todo o povo?

E tanto para os judeus como para os pagãos, outros problemas que afloram nas cartas de Paulo: Por que um Messias crucificado? Por que uma mensagem tão obscura, tão dolorosa, tão diferente daquela oferecida pelo nosso ambiente?

Vemos como, na Igreja primitiva, o catecúmeno depois de ter consentido no seguimento de Jesus passa também ele através de uma prova de fé, análoga àquela pela qual passou o próprio Jesus e passaram os apóstolos. Ela consiste fundamentalmente em perguntar-se: mas por que a palavra de Deus não transforma imediatamente o mundo?

c) a nossa crise

Eis, então, que nesta luz podemos reflectir sobre as provações da nossa fé, aquelas pelas quais devem necessariamente passar todos aqueles que junto ao lago ou no monte ouviram o chamamento e lhe deram ouvidos. Cremos que as provações que a nossa fé atravessa são análogas às de Jesus, dos seus, daqueles que estavam com Jesus, dos cristãos primitivos e de todos os que o seguem.

As perguntas que podemos fazer do ponto de vista pessoal são: por que Deus não me faz melhor? Por que depois de tantos anos de vida ascética, de empenho, de oração, de meditação, somos sempre os mesmos, com os mesmos pequenos defeitos, com as mesmas pequenas dificuldades, como se estivéssemos no início da vida espiritual? Por que a palavra de Deus não nos transformou?

Além disso, olhando em torno de nós, podemos perguntar-nos: por que O Evangelho não muda o mundo? Por que é que o meu apostolado produz tão pouco fruto? Por que a nossa mensagem não é atraente, não tem uma resposta imediata do povo, de modo a ser logo compreendida, assimilada e posta em prática? Por que não há correspondência imediata entre a palavra pastoral bem anunciada e a resposta do povo? Por que pastoralmente não é possível programar de modo a ver logo uma resposta que nos permita fazer um ulterior programa com novas respostas sempre melhores?

Outras perguntas surgem em momentos particulares da vida, nos momentos dramáticos: por que o sofrimento? Por que esta morte, a interrupção de um apostolado que produzia tantos frutos? Por que Deus parece não ter necessidade de pessoas no ápice da actividade e do rendimento?

Todas situações nas quais podemos repetir: Por que o Reino de Deus caminha assim? Por que não há uma imediata correspondência entre o poder da Palavra e a sua realização?

Eis algumas repercussões desta perene purificação da fé que se realiza nos Doze, na Igreja primitiva e em cada um de nós.

d) A resposta em parábolas

Vejamos agora de que maneira o capítulo das parábolas responde a esta situação de crise.

As três parábolas que têm como protagonista comum a semente dão-nos, cada qual com uma mensagem diferente, a resposta à pergunta fundamental: por que a palavra de Deus não dá fruto logo e não transforma o mundo, não transforma os outros, não me transforma etc.?

A primeira parábola, a do semeador, é portadora, em substância, deste ensinamento: a palavra de Deus não produz fruto automaticamente.

A palavra de Deus é em si mesma boa e, se bem apresentada, produziria fruto; mas isso não depende só da palavra; depende também das diversas situações do terreno, das diversas respostas. Este é um ponto essencial do mistério do Reino de Deus, que não é um mistério a ser interpretado segundo categorias de eficiência. Em outras palavras, põe-se em acção certo número de meios e obtêm-se resultados adequados. Este é um mistério de diálogo em que é feita uma proposta que pode ser aceite ou negligenciada, apenas considerada ou rejeitada. Um mistério que os apóstolos são chamados a viver estando com o Senhor. Verificar, dia após dia, que o Reino de Deus vai avante através desta humilde proposta que, precisamente porque é proposta, contém em si todo o risco da negligência, descaso, não aceitação, oposição. E os apóstolos devem viver com Jesus este mistério da humildade da semente do Reino que, embora sendo Palavra de Deus e portanto a coisa mais perfeita, mais santa e mais poderosa que possa existir, aceita ser acolhida entre as pedras, entre os espinhos, em terreno impróprio e aceita situações tais em que não pode produzir fruto.

Talvez poderíamos perguntar-nos, com a Igreja primitiva, na explicação mais ampla da parábola do semeador, quais são as situações que impedem produzir fruto.

A parábola enumera três: a semente que é comida pelos pássaros, aquela que cai entre as pedras e não tem raízes, aquela que cai entre os espinhos e é sufocada. São anotadas as três grandes dificuldades nas quais incorre continuamente a pregação evangélica que, embora sendo santa, boa e apresentada pastoralmente bem, com frequência não produz fruto.

a) A primeira dificuldade: a semente devorada pelos pássaros é explicada com a menção de satanás: “Logo vem satanás e tira a palavra semeada neles”. Que significa esta vinda de satanás? Se nos referimos à figura de satanás, em outras passagens de Marcos, por exemplo, quando Pedro em 8,33 é censurado por Jesus, vemos que satanás traz no coração a incompreensão dos caminhos de Deus. A incapacidade de compreender os caminhos da cruz e, por isso, o desejo do crescente êxito. O catecúmeno que aceita o cristianismo como um modo de ser mais, de valer mais, de ter mais prestígio, mais autoridade, é como a semente comida pelos pássaros. Deverá dar-se conta de que o caminho não é aquele, que errou o caminho e que deve voltar atrás.

b) A segunda dificuldade: a semente sem raízes descreve a situação na qual a palavra foi aceite só externamente. Foi acolhida por um certo gosto estético da própria palavra, por certa forma de snobismo, não foi acolhida com aquela profundidade de adesão a Cristo, com aquele amor pessoal por ele que é o único a permitir conservá-la, sem escandalizar-se dele. Este enraizar-se em Cristo (de que fala São Paulo em Col 2,7) poderia ser a maneira pela qual a Igreja primitiva explicava as suas raízes: é preciso estar profundamente enraizados nele e no amor dele para poder fazer da busca dele não a moda do momento, mas algo de permanente e profundo, que não tema o escândalo.

c) A terceira dificuldade: a semente sufocada é de muitíssimos. As preocupações da vida presente, a atracção exercida pelo ter, pelo poder, pelo possuir. Para muitíssimos a preocupação em ganhar é obstáculo para a própria palavra. Tais preocupações da vida presente têm, aliás, uma aplicação muito vasta, se pensarmos que na censura feita a Marta, embora estivesse ocupada com a refeição de Jesus, volta a mesma palavra: “Marta, tu te preocupas com muitas coisas” (Lc 10,41). O juízo, pois, sobre o influxo negativo das preocupações excessivas, se realmente quisermos dar sentido e valor às palavras usadas por Cristo, é muito severo.

Para concluir, a palavra não produz fruto automaticamente, mas humildemente e, embora sendo divina, adapta-se às condições do terreno, ou melhor, aceita as respostas que o terreno dá e que com frequência são negativas. Assim Jesus explica aos apóstolos por que ele prega e a sua palavra não é eficaz. Na realidade, a palavra não é ineficaz, mas falta o acolhimento. Esta palavra quer ser a justificação de Jesus diante dos seus, que gostariam de um sucesso maior e quase automático.

A segunda parábola, a semente que cresce sozinha é, como com frequência acontece no Evangelho, de certa forma o inverso da precedente. A primeira nos disse que a palavra não dá fruto sozinha; aqui, pelo contrário, afirma-se: “espontaneamente” sozinha (4,28).

Quer dizer aos apóstolos, que temem porque a palavra é rejeitada, que a palavra produz o seu fruto quando chegar o seu tempo. É preciso ter confiança, porque a palavra semeada vai avante sozinha. Portanto, lançai-a com coragem, não vos omitais dizendo que o terreno não é bom e é preciso esperar condições melhores; não julgueis serdes vós os senhores da palavra. Vós deveis espalhá-la, e depois podereis até ir dormir; não fiqueis mais pensando nisso, pois ela produzirá o seu fruto.

Enquanto a primeira exprime um ensinamento de realismo, esta apresenta-nos um ensinamento de confiança absoluta que a palavra, sozinha, frutificará. Basta semeá-la com coragem, com paciência e perseverança.

Quinta Meditação

JESUS EM ACÇÃO

A terceira parábola, a do grão de mostarda, também é apropriada a esta situação.

Os apóstolos que estão em torno de Jesus vêem, num determinado momento, que o seu grupo continua muito pequeno, não se desenvolve, muita gente não leva o Mestre a sério. E ele responde às suas mudas interrogações com a parábola do grão de mostarda, da pequena semente. Não tenhais medo diz, o Reino de Deus começa aos poucos. Não queirais pretender grandes resultados; deixai que as coisas se desenvolvam gradualmente: de pequenas sementes, de invisíveis inícios, nascerá o grande sucesso do Reino de Deus.

Em substância, Jesus pede aos apóstolos carta branca; pede confiança absoluta nele: vinde atrás de mim! Vós vedes que as coisas não vão bem e ficais imaginando que tendes um Mestre que arrasta as multidões, mas na realidade eu não sou bem isso. Isso não depende de mim, depende do facto que o Reino de Deus é poder de Deus e portanto se desenvolve com toda a certeza. De pouco, Deus produzirá o muito; do pouquíssimo, desenvolver-se-ão coisas imensas.

Jesus educa os seus e a Igreja primitiva repete este ensinamento aos seus catecúmenos a fecharem os olhos ao que parece realidade porque se vê, e abri-los ao que é; ou seja, à realidade misteriosa do Reino de Deus que está frutificando silenciosamente, enquanto nós não percebemos, e dará o fruto no tempo devido.