
Na República Democrática do Congo, as minas que alimentam as baterias de lítio dos nossos telemóveis e carros eléctricos são campos da morte para muitas crianças que ali trabalham. A Além-Mar entrevistou o investigador Siddharth Kara e o advogado Terry Collingsworth, os artífices de um processo histórico contra as maiores empresas tecnológicas do mundo, acusadas de «ajudar e encorajar» a escravatura infantil.
MARGARIDA SANTOS LOPES, jornalista
James Doe 1* tinha 17 anos quando morreu, em 16 de Abril de 2018, numa mina de cobalto, perto da aldeia de Kapata, na República Democrática do Congo (RDC). Finalizado o segundo ano da escola primária, interrompeu os estudos porque os pais não conseguiam pagar as propinas equivalentes a 5 euros por mês.
Sem meios de subsistência e para escapar à fome, o pequeno James começou primeiro por extrair cobalto à superfície, vendendo-o por quantias irrisórias. Aos 15 anos, juntou-se a um grupo de outros miúdos e jovens que escavavam os túneis da mina. Um salário mensal correspondente a cerca de 15 euros era uma grande ajuda para a tia Jane Doe 1 e para outras sete crianças que vivem com ela.
Jane Doe 1 é uma de quinze queixosos que instauraram um processo judicial histórico, com a ajuda da organização International Rights Advocates, com sede nos Estados Unidos, contra as maiores empresas tecnológicas do mundo – Apple
Alphabet (dona da Google), Dell, Microsoft e Tesla. Mantêm o anonimato, por temerem represálias por parte dos que «beneficiam financeiramente da exploração infantil nas minas de cobalto da RDC, incluindo responsáveis governamentais corruptos».
As big tech são acusadas de ajudar e encorajar o uso, cruel e brutal, de crianças na extracção do principal componente das baterias de lítio que alimentam os mais modernos dispositivos, de smartphones a carros eléctricos.
Os queixosos, por seu turno, são vítimas e familiares de crianças e jovens que morreram ou ficaram mutilados enquanto trabalhavam, em condições de escravatura, nas minas detidas por duas companhias fornecedoras de cobalto: a Glencore, com sede na Suíça, e a chinesa Zhejiang Huayou.
Voltemos à história de James Doe 1. Ele trabalhava no interior de um túnel quando este ruiu e o matou. A mina era detida pela Kamoto Copper Company (KCC), propriedade do gigante Glencore, fundado por Marc Rich (Antuérpia, 1934-Lausana, 2013), um bilionário americano acusado de corrupção, evasão fiscal e abusos de direitos humanos. A opulência de Rich não podia contrastar mais com a miséria de James Doe 1. Com a alcunha de El Matador, o maior negociante mundial de metais e minerais tinha amigos na Roménia de Ceausescu, na Líbia de Kadhafi, em várias ditaduras da América Latina e no regime de apartheid da África do Sul. Coleccionava quadros de Picasso e Van Gogh. Era accionista de metade dos estúdios cinematográficos 20th Century Fox e dono de mansões em Espanha, Israel e na Suíça, onde só a sua piscina estava avaliada em 9,5 milhões de dólares. Fugido à justiça nos EUA, o Internal Revenue Service (IRS) oferecia pela sua captura uma recompensa de meio milhão de dólares e o FBI colocara-o na lista de criminosos «mais procurados», ao
lado Osama bin Laden), Rich seria perdoado em 2001 pelo presidente Bill Clinton.
A Glencore vende cobalto à Umicore, empresa belga que já explorava as riquezas do Congo durante o reinado de Leopoldo II (responsável pelo assassínio de entre 10 e 15 milhões de pessoas). O cobalto refinado pela Umicore é, por sua vez, fornecido à Apple, à Alphabet/Google, à Samsung SDI, à Microsoft e à LG Chem (que abastece a Dell e a Tesla).
«Nas províncias mineiras da RDC há dezenas de milhares de túneis, alguns com até 80 metros de profundidade, que são escavados por rapazes e adultos, munidos apenas com pás», diz à Além-Mar, em entrevista por correio electrónico, Siddharth Kara, um dos maiores especialistas em escravatura infantil, cuja investigação ajudou Terry Collingsworth, director executivo da IRAdvocates, a processar as companhias tecnológicas que lucram com este drama humano. «Eles escavam os poços das minas até encontrarem um veio. Os túneis não têm nenhum escoramento e desabam a qualquer momento.»
Enterrados vivos
Foi o que aconteceu novamente em Setembro: mais de 50 pessoas, a maioria jovens e crianças, morreram quando chuvas torrenciais causaram o desmoronamento da mina artesanal onde laboravam no Kivu Sul, no Leste. Os seus corpos foram arrastados pela água e, apesar dos esforços, não se encontraram sobreviventes.
«Por cada derrocada que merece notícia nos jornais, há dezenas de outras que são ignoradas», critica Kara, economista e académico americano que há vários anos investiga as minas de cobalto no antigo Zaire. «Todos os que se encontram nos túneis quando se dá o desmoronamento são enterrados vivos.»
Um relatório do Banco Mundial, publicado em 2019, estima que haja cerca de dois milhões de mineiros informais na RDC, um número que será superior ao dos que laboram nas minas industriais de ouro, cobre e cobalto pertencentes a empresas como a Glencore.
«Em alguns casos, há tensões entre as concessões mineiras industriais e comunidades locais, desesperadas porque muitas delas terão sido expulsas das suas terras, arrasadas por escavadoras para dar lugar às minas industriais», refere Kara. «É justo que as pessoas mais pobres tentem obter sustento em minas artesanais e
que até se aventurem a trabalhar nas subsidiárias formais e locais [das grandes companhias estrangeiras]. Dito isto, a realidade é que muitas minas industriais permitem, tacitamente, o acesso dos mineiros artesanais às suas concessões, para poderem aumentar a produção a preços mínimos. E só quando uma tragédia ocorre, como o desmoronamento de um túnel (e só quando isso aparece na imprensa) é que as minas industriais se queixam de exploração ilegal.»
«Os mais pobres do Congo correm todos os riscos para ganhar um ou dois dólares por dia, contribuindo a sua penúria, ferimentos e morte para aumentar em biliões o valor das cadeias de fornecimento global [de cobalto]», denuncia Siddharth Kara.
Para este investigador [ver perfil na página 34], o desmoronamento dos túneis em que crianças são enterradas vivas «é a mais chocante de todas as tragédias» que ele já testemunhou. «Meninos preciosos escorregam pelos túneis, agachados na escuridão com pouco espaço para se moverem. Muitas vezes, cortam as paredes do túnel com uma barra de aço durante 18 horas seguidas, e só depois regressam a casa. Ganham poucos dólares por dia. Acabam sempre por se ferir, expor a uma atmosfera tóxica e a danos pulmonares. Ou sepultados vivos.»
Uma «mula humana»
A história de John Doe 1 é tão trágica como a de James Doe 1. Ele abandonou a escola aos 9 anos para, à superfície, apanhar e vender pedras soltas que continham cobalto numa grande mina, também nas proximidades de Kapata. Aos 15 anos, mudou-se para Lac Malo B5, concessão da Kamoto
Cooper Company (KCC), propriedade da Glencore, onde trabalhavam igualmente dois dos três irmãos, para todos poderem sustentar a família.
John Doe 1 funcionava como uma «mula humana», lê-se no processo da IRAdvocates. Subia ao topo de uma montanha íngreme de rochas instáveis, para carregar às costas um saco de pelo menos 30 kg de pedras de cobalto. Andava a pé mais de 700 metros para as depositar num ponto de recolha. Por cada viagem recebia 10-15 cêntimos de dólar. Ele fazia sete viagens por dia, num total diário de 70-95 cêntimos de dólar.
Em 15 de Setembro de 2016, quando descia a montanha com um dos sacos pesados, suspenso por uma faixa atada à cabeça, John Doe 1 escorregou de uma altura de 5-6 metros e caiu dentro de um túnel. Perdeu os sentidos e, quando os pais chegaram, o seu corpo jazia abandonado no chão sem socorro. Transportaram-no de
bicicleta até ao hospital local, onde nada lhe puderam fazer. Atravessaram então a fronteira para o internar na Zâmbia. Três médicos examinaram-no e concluíram que John Doe 1 fracturara a espinha dorsal em três lados diferentes.
Apesar de um ano de tratamento no país vizinho, o jovem ficou totalmente paralisado do peito para baixo, e mal consegue mexer os braços. Os pais, sem dinheiro para mais assistência médica, são agora os únicos cuidadores. John Doe 1 nunca mais conseguirá andar e as dores jamais o abandonam.
Todos os queixosos no processo sem precedentes desencadeado, em Dezembro de 2019, por Terry Collingsworth, o intrépido director da IRAdvocates [ver perfil na página 35], invocam o Trafficking Protection Reauthorization Act (TVPRA), lei de protecção contra o tráfico e o trabalho forçado de crianças, para exigir indemnizações por «enriquecimento injusto, supervisão negligente e inflicção voluntária de angústia emocional».
Neste processo, vítimas e seus familiares representam as crianças mineiras, do presente e do passado, algumas com 6 anos de idade, que a pobreza e a fome obrigaram a interromper os estudos para, em condições desumanas, extraírem cobalto nas áreas mineiras de Kolwezi, Fungurume, Likasi, Kambove, Kipushi e Lubumbashi, nas províncias de Alto-Catanga e Lualaba.
Escravatura infantil
«Qualquer criança que trabalhe na perigosa mineração do cobalto é escravizada»,
sublinha Siddharth Kara. «Nem sequer podemos admitir aqui o conceito de consentimento. Algumas delas são activamente recrutadas por milicianos e soldados, traficadas para escavarem as minas. Outras são atraídas para as minas porque não têm meios de sustento alternativos. Num e noutro caso, este é um trabalho coercivo. E por a extracção de cobalto ser perigosa e prejudicial ao bem-estar, desenvolvimento e sobrevivência, não interessa sequer se as crianças consentiram. Estas crianças são escravas!»
O trabalho de campo de Kara na RDC, conduzido desde há vários anos, também não tem sido fácil. «Há muitos obstáculos: a obtenção de vistos para entrada no país, circular por zonas remotas e inacessíveis, conseguir chegar às minas fortemente guardadas por militares e outros agentes de segurança, conquistar a confiança das comunidades locais, entrevistar pessoas pobres e vulneráveis sobre as condições do trabalho artesanal.»
O processo instaurado pela IRAdvocates deve-se muito a ele. «Senti que uma litigação estratégica seria uma maneira de conseguir mais rapidamente mudanças e de dar às pessoas na RDC uma oportunidade para as suas vozes serem ouvidas pelas companhias tecnológicas que se dizem preocupadas com os consumidores, mas ganham biliões graças ao cobalto que os congoleses extraem para elas.»
Foi Kara quem contactou Collingsworth, para que iniciasse o caso em nome dos queixosos que ele e a sua equipa identificaram durante a sua segunda investigação na RDC. Agora, revela, «porque estes procedimentos são lentos», está a tentar contratar ajuda legal extra e angariar fundos para uma campanha de relações públicas que ajude a «despertar a consciência do público».
Da equipa de Siddharth Kara fazia parte Auguste Mutombo, activista da associação congolesa Alternatives Plus. «Era uma excelente pessoa no terreno que correu os maiores riscos», salienta Collingsworth, em entrevista à Além-Mar, também por correio electrónico. «Assim que apresentámos o processo judicial, Mutombo e a família receberam ameaças graves, e tiveram de se refugiar na Zâmbia durante dois meses. Agora estão bem.»
Collingsworth, consciente de que este é, provavelmente, o mais importante de todos os processos em que se envolveu em três décadas de carreira, também tem enfrentado adversidades. Porque, explica ele, «há uns bons esquadrões de militares e forças de segurança corruptos com muitos interesses na mineração de cobalto».
Apelo aos consumidores
Siddharth Kara defende que os consumidores «deveriam recusar-se a comprar mais dispositivos que contenham cobalto até que as companhias tecnológicas globais
garantam a segurança e a dignidade» dos jovens mineiros congoleses. Mas vários analistas consideram praticamente impossível um boicote ao cobalto da RDC, porque isso seria um golpe duro para um país e uma região que dependem das receitas deste minério. Será esta uma batalha perdida?
«As condições não podem ser piores do que já são para os mais pobres do Congo, explorados até à morte, e isto sem mencionar a destruição do seu ambiente causada pelos lixos tóxicos despejados pelas empresas de mineração e desflorestação», responde-nos Kara.
«Os consumidores têm o poder de exigir mudanças, e podem exercer esse poder não actualizando os seus dispositivos nem comprando outros novos até que as empresas exijam as mudanças necessárias para resolver, para sempre, as condições mortíferas que estão na base das suas cadeias de abastecimento», recomenda Kara.
Terry Collingsworth também exorta «os jovens, os activistas e outros a organizar uma campanha para encorajar a que não se compre os dispositivos mais caros», como os telemóveis iPhone, por exemplo, até que os fabricantes «usem uma pequena parte da sua imensa riqueza para cuidar das famílias das crianças assassinadas e mutiladas» na RDC.
A União Europeia aprovou regulamentação para entrar em vigor em 2021, que impõe obrigações mais rígidas às empresas. Por outro lado, a tecnologia Blockchain tem sido promovida como instrumento que permitirá rastrear com mais transparência a origem dos componentes. Mas Collingsworth mostra-se céptico a este respeito. «A Tesla até pode admitir que há crianças nas minas a fornecer-lhes o cobalto, mas nunca será castigada. A Blockchain também dá a ilusão de transparência, mas se ninguém monitorizar verdadeiramente quem está a minerar o cobalto que é posto em sacos, quem segue o seu rasto?»
À semelhança de Siddharth Kara, Terry Collingsworth está convencido de que «só a pressão dos consumidores conseguirá forçar as companhias a empreender mudanças. Porque empresas como a Apple ou a Tesla não podem dar
-se ao luxo de perder a aura de serem novas, limpas, verdes e fixes».
* Os nomes das vítimas citados neste artigo e no processo instaurado em sua defesa são fictícios, devido ao receio de retaliação contra as suas famílias.
Os números da exploração
A República Democrática do Congo, o quarto maior país de África, deveria ser um dos mais prósperos graças à imensidão das suas riquezas (abundância de água, clima benigno, solo fértil, abundantes reservas de cobre, ouro, diamantes, cobalto, urânio, coltan e petróleo). Mas a ganância e a corrupção desde os tempos coloniais transformaram-no numa das nações mais sofridas.
⚫ 200 000 é o número estimado de trabalhadores informais nas minas de cobalto e cobre na RDC.
⚫ 30% do cobalto da RDC foi extraído por mineiros artesanais em 2018.
⚫ 72% do cobalto vendido em 2019 proveio da RDC.
⚫ 40 000 meninas e meninos trabalham como mineiros artesanais no Sul da RDC (estimativas de 2014), muitos dos quais na extracção de cobalto.
⚫ 66% do cobalto extraído na RDC foi refinado pela China em 2019, em particular pela companhia Zhejiang Huayou.
⚫ 0,81 dólares por dia é, ao que parece, o salário diário de um mineiro com menos de 14 anos nas províncias do Sul da RDC, segundo uma investigação de Siddharth Kara (ver texto principal e perfil). Por dia, mulheres adultas ganharão em média 1,02 dólares e os homens adultos 2,04.
⚫ 10-12 horas por dia é o trabalho frequentemente exigido a crianças e jovens nas minas, antes e depois das aulas, aos fins-de-semana e nas férias escolares, tendo de carregar sacos de pedras de cobalto entre 20 kg e 40 kg.
⚫ 2025 é o prazo estabelecido pelo Governo de Kinshasa para pôr fim ao trabalho infantil nas minas – uma exploração que as autoridades congolesas só reconheceram em Agosto de 2017.
Fontes: The Financial Times (citando dados da multinacional Trafigura, da Darton Commodities Ltd. e da companhia estatal congolesa Gecamines); UNICEF, Amnistia Internacional e Africa Resources Watch/Afrewatch (Relatório This Is What We Die For [“É por isto que morremos”], 2016); www12.senado.leg.br; BBC.
Revista Além-Mar, Novembro 2020