Dois livros publicados recentemente oferecem a ocasião para lançar um olhar sobre dois momentos da história do cristianismo das origens. O primeiro texto conduz-nos aos alvores da nova religião e da sua apresentação na ribalta pública. Trata-se da célebre carta (catalogada X, 96) que Plínio o Jovem, neto do naturalista Plínio o Velho (de quem descreverá o trágico fim, na erupção do Vesúvio de agosto de 79), dirige ao imperador Trajano, sublinhando o perigo representado pelo surgimento de uma seita que se referia a Cristo, e que ele qualificava como «uma superstição perversa e desenfreada».
Do interior da denúncia deveras articulada e do conselho pedido ao imperador sobre a práxis judiciária a adotar (Plínio tinha iniciado então – estamos em torno de 110-111 – a tarefa de governador do Ponto e da Bitínia), escolhemos um parágrafo interessante, recorrendo à edição antológica do epistolário de Plínio, que Giulio Vannini publicou mediante a seleção de 50 das mais de 350 cartas que chegaram até nós, oferecendo-as no original latino.
Era-lhes «habitual reunir-se antes da aurora de um dia estabelecido [o domingo], recitar alternadamente um hino a Cristo como se fosse um deus, e comprometer-se com um juramento para não realizar qualquer delito, bem como para não cometer nem furtos, nem extorsão, nem adultério, a não trair a palavra dada e a não negar a restituição de um depósito se lhes tivesse sido pedido. No termo destas cerimónias, iam-se embora e reencontravam-se para consumar uma refeição, usual e inócua».
Já estava, portanto, consolidada uma prática litúrgica cristã específica que compreendia uma hinologia, diversamente interpretada pelos investigadores (antifonária, responsorial, batismal?), e sobretudo um banquete comunitário, a “ágape” eucarística. À dimensão cultual, Plínio acrescenta a ética, que torna a primitiva comunidade cristã exemplar aos próprios olhos de um pagão. A atestação é particularmente relevante também por uma razão histórica: é o primeiro testemunho externo da existência do cristianismo estruturado. Ela precede uma dezena de anos os famoso passo dos “Anais de Tácito” (XV, 44), em que no historiador romano evoca o incêndio de Roma, por obra de Nero, em 64, assinalando que o imperador «declarou culpados e votou aos tormentos mais atrozes aqueles que o vulgo chama cristianos … os quais tomavam o nome a partir de Cresto, condenado à morte pelo procurador Pôncio Pilatos sob o império de Tibério». Pouco depois, será Suetónio, no seu perfil do imperador Cláudio, a repropor a figura de «Cresto», considerado um personagem sedicioso através da sua comunidade de origem judaica.
Passamos agora a outro acontecimento cronologicamente posterior, que, todavia, se coloca no mesmo século II. Entre em cena um personagem enigmático, o armador Marcião, originário do Ponto, chegado a Roma em torno de 140, imperando então Antonino Pio. Temos, neste caso, o emergir de um fenómeno que repetidamente sacudirá a Igreja das origens, classificado como heresia, conceito muito complexo e polivalente. Acolhido pela comunidade cristã romana, Marcião depressa se revela um protagonista do dissenso da ortodoxia dominante, ao ponto de criar uma fratura que o impele a deixar Roma, para pregar o seu verbo na região mediterrânica.
O famoso estudioso alemão Adolf von Harnack (1851-1930) chegou ao ponto de escrever no seu ensaio dedicado a Marcião que «ele foi a figura mais significativa entre Paulo e Agostinho»
A tese central da sua doutrina pode ser rubricada, de maneira simplificada, como um dualismo. Por um lado, há o Deus da Bíblia judaica, um criador opressivo, moralmente arbitrário e tutor rígido da sua justiça; por outro, eis o Deus do amor anunciado por Jesus, que oferece uma salvação universal pela graça, atuando-a através do sacrifício do seu Filho, que liberta a humanidade da condenação infligifa pelo Deus do Antigo Testamento. É óbvia, nesta conceção, a radicalização da teologia paulina sobre a lei e sobre a graça. Marcião é, talvez, o primeiro a delinear um cânone das Sagradas Escrituras autênticas, naturalmente só do Novo Testamento, em que o coração é colocado no Evangelho e no epistolário paulino.
Ora, nesta operação, que envolverá ao longo de percursos múltiplos toda a Igreja das origens, o nosso personagem introduz uma espécie de eixo evangélico estrutural: aquele que vem a ser definido como o “Evangelho de Marcião”; modulado e modelado sobre o de Lucas. Temos a possibilidade de o ler através da reconstrução do texto grego feita por Andrea Nicolotti, que junta uma versão comentada na qual se evidencia a filigrana textual originária. O evangelho marcionita é recomposto criticamente de maneira conjuntural sobre a base das citações e excertos que chegaram até nós através de alguns escritores cristãos antigos, entre os quais avulta Tertuliano, com o seu tratado “Contra Marcionem”.
Trata-se de uma operação muito sofisticada que permite fazer a leitura de um texto fluido, mas muito sugestivo. Esta tessitura revela a presença do Evangelho de Lucas, adotado e adaptado de acordo com a finalidade do heresiarca, ainda que seja difícil definir-lhe as conexões. Estamos, por isso, num terreno movediço, mas fascinante para quem quer entrar num horizonte tão criativo que depois se alargou à imponente reflexão dos sucessivos Padres da Igreja. O famoso estudioso alemão Adolf von Harnack (1851-1930) chegou ao ponto de escrever no seu ensaio dedicado a Marcião que «ele foi a figura mais significativa entre Paulo e Agostinho». Para além do juízo excessivo, é indubitável que este personagem criou uma tempestade na Igreja com o seu dualismo teológico, um conceito ainda hoje encrustado na mente de alguns cristãos, suspeitosos em relação ao Antigo Testamento.
“Jesus cura mulher como hemorragia” | C. 300-350
Card. Gianfranco Ravasi
Presidente do Conselho Pontifício da Cultura
In Cortile dei Gentili
Trad.: Rui Jorge Martins
Imagem: “Jesus cura mulher como hemorragia” (det.) | C. 300-350
Publicado em 05.02.2020
http://www.snpcultura.org