PAOLO MOIOLA, jornalista
Revista Além-Mar, Fevereiro 2018
A Amazónia é um lugar único. Durante milénios habitada somente por povos indígenas, hoje hospeda também outras populações. Uns e outros devem enfrentar muitos problemas, porque a Amazónia se transformou num lugar cobiçado por causa das suas riquezas. O Vicariato de Puerto Leguízamo–Solano convidou dezenas de pessoas dos três países confinantes – Peru, Equador e Colômbia – para debater sobre como defender a Amazónia do assalto dos exploradores. Chamou a este evento Minga Amazónica Fronteiriça.
Em direcção a Puerto Leguízamo.
No pequeníssimo aeroporto de Puerto Asís não é fácil obter informações. Não há ecrãs com indicações nem anúncios. O avião da Satena, a companhia colombiana gerida pelos militares, que nos trouxe de Bogotá até aqui está agora parado na pista. Finalmente um funcionário explica-nos que em Puerto Leguízamo, meta da viagem, está a chover copiosamente e portanto a partida é adiada até que as condições meteorológicas melhorem. Normalmente nas zonas equatoriais as chuvas são muito intensas, mas esgotam-se em pouco tempo. De qualquer modo não há quaisquer protestos dos passageiros porque ninguém deseja embarcar num voo arriscado. De repente é aberta a porta que leva à pista onde o avião está estacionado (o único avião). Subimos a escada confiantes de retomar a viagem. Sento-me ao lado da janela com a máquina fotográfica na esperança de poder imortalizar algumas imagens nas alturas. O voo decorre tranquilamente, tirando alguns solavancos normais. Nuvens negras impedem de ver bem a terra lá em baixo. Todavia, não faltam algumas abertas no céu que permitem admirar os lugares sobrevoados. É uma visão que fascina mas que ao mesmo tempo faz pensar e entristecer. Em baixo está a Amazónia e o verde domina ainda certamente, mas os espaços descoloridos ou reduzidos a pastagem são amplos. O elemento mais notório são os rios, muitos, longos e sinuosos. As suas águas não se mostram azuis ou verdes, mas castanhas como a terra que transportam.
O voo dura cerca de uma hora. Apesar da chuva, a aterragem é relativamente fácil. O aeroporto de Puerto Leguízamo é uma pista em mau estado no meio do campo e um pequeno pavilhão baixo e anónimo em direcção ao qual se encaminham os passageiros da Satena. A pista está separada por uma rede metálica através da qual se vêem alguns mototáxis, veículos de três rodas que constituem o meio de transporte mais difundido. E logo atrás um grande cartaz descolorido pelo sol e pela chuva que dá as boas-vindas a Puerto Leguízamo, pequena cidade estendida ao longo das margens do Putumayo, tendo em frente o Peru e pouco acima o Equador.
No voo encontrei o P.e Francisco Pinilla, colombiano e missionário da Consolata que trabalha nestas paragens há seis anos. Aproveito de imediato para lhe pedir uma descrição do lugar.
«Estamos – explica – mais ou menos no centro dos 6 % da Amazónia que a Colômbia possui. Contando todo o município, vivem aqui cerca de 40 mil habitantes.» De que vivem? «Em tempos produzia-se arroz, fruta, banana, iúca, mas ultimamente as pessoas preferem produzir outras coisas [o padre refere-se à coca, ndr] que dão mais rendimento. Portanto, os produtos locais foram desaparecendo.» Para chegar até aqui há duas modalidades. «Sim – confirma o missionário –, como viemos, de avião, com a companhia da Força Aérea colombiana, e através do rio a partir de Florencia ou de Puerto Asís em 8-10 horas de viagem.»
A viagem por rio, muito mais longa mas muito menos cara do que de avião, até há poucos meses não era acessível a todos por causa da presença das FARC, que podiam prender ou sequestrar as pessoas consideradas não gratas. Depois da assinatura dos acordos de paz (Novembro de 2016), a situação tornou-se mais tranquila.
Sob uma chuva ligeira subimos para um mototáxi. Para conversar é preciso falar em voz alta porque o ruído do veículo é ensurdecedor e também a estrada – estreita e em mau estado – não facilita a conversa dos dois passageiros. A povoação cresceu ao longo desta artéria. O nosso destino é a sede do recente Vicariato Apostólico de Puerto Leguízamo-Solano, que organizou um encontro internacional sobre a Amazónia: a «Minga amazónica fronteiriça». Minga é um termo quichua que em boa parte da América Latina, significa a reunião de amigos e vizinhos para fazer algum trabalho gratuito em comum.
A Amazónia, de quintal a praça central
No encontro estão inscritas 147 pessoas: 32 provenientes do Peru, 11 do Equador e 103 da Colômbia (mais uma da Itália: quem escreve), todas hospedadas nas estruturas do Vicariato. Em cada um dos três dias está prevista a exposição de um perito que falará da Amazónia à luz do lema da minga: «Somos território, somos pobladores, somos cuidadores». A minga prevê todavia a participação activa de todos. Por isso os inscritos foram divididos em 11 grupos ou mesas de trabalho: dos camponeses aos caciques e governadores, dos leigos missionários aos bispos. Cada grupo debaterá sobre as intervenções ouvidas em sala partindo das respostas a algumas perguntas. As considerações serão depois expostas por um porta-voz de cada grupo perante a assembleia reunida em plenário.
Na aula magna do Centro Pastoral do Vicariato, e em pano de fundo, com uma árvore sugestiva em papel prensado (obra do P.e Carlos Alberto Zuluaga), são cantados os hinos nacionais do Equador, Peru e Colômbia. É D. Joaquín Pinzón, o senhor da casa, quem dá as boas-vindas aos convidados e inaugura o congresso [ver entrevista nas páginas 45-48]. Mas são dois indígenas equatorianos, Bosco Guarusha e o filho Daniel Guarusha, quem oferece um sentido místico à inauguração da minga com uma cerimónia de purificação (a chamada «limpia») muito envolvente e participada.
A primeira intervenção é de Maurizio López, secretário executivo da Rede Eclesial Pan-Amazónica (REPAM). «Durante muitos anos – explica o relator – a Amazónia foi considerada como “quintal nas traseiras”. Falava-se de “terra sem homens para homens sem terra”, de “território de índios a domesticar”, de “inferno verde”. Hoje a Amazónia transformou-se na “praça central”. E não se sabe o que é melhor uma vez que hoje há tantos olhares e tantas opiniões sobre esta realidade. Se antes era para domesticar, civilizar, agora é vista como partição para o desenvolvimento do mundo. O que conduz a um extractivismo que se comporta como se aqui não existisse ninguém. Como se estes territórios não tivessem uma população, identidade, cultura e também uma sacralidade.»
Além disso – explica ainda – hoje a Amazónia é destruída não para repartir de maneira equitativa as suas riquezas, mas porque existe uma corrida à acumulação sem limites. «Como diz o Papa Francisco – concluiu Maurizio López –, estamos perante uma crise que é simultaneamente social e ambiental.»
Do grande vazio aos selvagens a humanizar
O antropólogo peruano Javier Gutiérrez Neira inicia a sua intervenção com a notícia de dados arqueológicos que certificam a presença humana na Amazónia pelo menos desde 12 mil anos antes de Cristo. Desmentido científico do mito do «grande vazio amazónico», sucessivamente substituído pelo das populações selvagens a humanizar. Acção que teve o seu auge com o genocídio ocorrido durante a época da borracha (1840-1915), quando mais de 30 mil indígenas – principalmente huitotos, ocainas e resígaros – foram reduzidos à escravatura ou exterminados.
Relativamente ao passado, hoje as condições gerais mudaram (às populações autóctones juntaram-se os habitantes mestiços), mas não o status de conflito.
Os governantes – explica o antropólogo – lotearam a Amazónia dando-a em concessão por muitos anos a sociedades mineiras e petrolíferas, «sem considerar os impactos sobre os territórios indígenas e sobre a própria Amazónia, a qual durante mais de 50 anos de extracção petrolífera conheceu apenas a poluição e os conflitos sociais». Nada de mais verdadeiro: no Peru, Colômbia e Equador, por exemplo, os conflitos ambientais em curso são centenas (Observatorio Latinoamericano de Conflictos Ambientales, OLCA).
Segundo o antropólogo peruano, a Amazónia deve ser pensada «desde dentro» e não «desde fora». Isto é, deveriam ser os povos amazónicos a ter a responsabilidade de formular uma política para a Amazónia e levá-la à atenção dos Estados nacionais.
A anulação do limite e a criação das necessidades
Mons. Héctor Fabio Henao, director nacional da Pastoral social da Caritas Colombiana (e desde 17 de Dezembro também do Comité do Conselho nacional para a paz, a reconciliação e a convivência) inicia o seu discurso pelo conceito do limite. «A teoria é que a gente tenha necessidades que não se saciam nunca e por isso é necessário produzir ao máximo. É o produtivismo, isto é, produzir ilimitadamente para criar consumismo. Um consumismo que, por sua vez, nos leva a um incremento patológico, que chamaremos incrementismo».
«Efectivamente, temos necessidades ilimitadas? É certo que as necessidades do ser humano não tenham limites? Na verdade, são os sonhos, os desejos que são ilimitados, ao passo que as necessidades são limitadas.» Mas como se insere em tudo isto a Amazónia? O capitalismo, que Mons. Henao define «um estado da alma», quer controlar completamente o ser humano e a Natureza. Por isso pôs os olhos na Amazónia. Concretamente: o capitalismo selvagem empurra para a extracção das matérias-primas (extractivismo) do bioma amazónico para alimentar uma produção sem limites.
Mons. Henao vê a mudança correcta nas propostas feitas pelo Papa Francisco na sua Laudato Si’. Aqui fala-se de ecologia integral e de revolução da ternura. «Temos de – conclui Henao – banir a frase “Tudo é lícito”, visto que ela não inclui o futuro, não pensa em assegurar uma vida digna a quem vier depois de nós.»
«Que compreendemos, que queremos fazer»
Depois de três dias de relatórios, debates e encontros conviviais, chegou o momento de tirar as conclusões. Todos os grupos participam na redacção de um manifesto dirigido aos habitantes da Amazónia e a todos aqueles que têm a peito a sua causa. A declaração toma nota dos grandes problemas que envolvem o bioma amazónico: da exploração petrolífera à mineira e florestal, das monoculturas à criação de gado, do narcotráfico à insuficiente presença do Estado.
Depois, chama as autoridades nacionais, internacionais e locais a comportamentos adequados para com as necessidades particulares da Amazónia: adoptar planos de desenvolvimento que sejam realmente amazónicos; garantir a consulta preventiva dos povos indígenas para qualquer projecto; educar as comunidades locais para um tratamento adequado dos resíduos; incentivar as autoridades académicas a empreender o estudo científico da realidade da Amazónia, bem como a formação e divulgação dos conhecimentos maturados; impelir os agentes pastorais a ter uma palavra mais profética e firme em defesa da Amazónia.
Por fim, o manifesto afirma a vontade dos redactores de participar activamente na realização do sínodo amazónico de 2019, acompanhar as comunidades amazónicas na ideação e execução de projectos sustentáveis e de contrariar com determinação tudo o que atenta contra a vida na Amazónia.
Um manifesto – pela sua intrínseca natureza – contém indicações gerais e por vezes genéricas, sobretudo sobre uma matéria complexa como é a realidade da Amazónia. Todavia, isso é importante como ponto de partida conceptual, para produzir uma radiografia do problema e propor soluções, modalidades de acção, comportamentos.
Vista a partir do rio Putumayo
A minga terminou. No dia seguinte, sigo o P.e Fernando Flórez, um dos organizadores mais empenhados, enquanto ele acompanha ao porto de Puerto Leguízamo o grupo dos participantes – parecem todos felizes – que regressam ao Equador e ao Peru. Os primeiros sobem para uma embarcação a motor para passageiros que deixa de imediato o cais e começa a sulcar as águas calmas do rio Putumayo em direcção ao Norte. Os segundos têm de contentar-se com um velho barco de madeira sem janelas e com tarimbas em vez de assentos. O motor, contudo, parece estar a postos. Dado que a viagem em direcção a San Antonio del Estrecho demorará dois dias e não há postos de fornecimento ao longo do trajecto em direcção ao Sul, é preciso atestar o depósito de combustível. O distribuidor encontra-se uns metros mais acima relativamente à margem. O comandante liga então o seu barco à bomba de gasolina através de uma longa mangueira de borracha. É preciso mais de uma hora para concluir o fornecimento. Por fim, o barco faz-se ao largo suavemente com a puída bandeira peruana que se agita ao vento, por entre os acenos de saudação de quem ficou na proa e o ruído repetitivo dos peke pekes – as pequenas embarcações a motor – que passam ao lado. A Amazónia é (também) isto.
AMAZÓNIA: Números, riquezas, ameaças | |
definição | A Amazónia é a região da América do Sul que constitui a maior floresta tropical húmida do planeta e a maior reserva de água fresca do mundo. |
dados geográficos | SUPERFÍCIE: 7 989 004 km2 divididos em 9 países;
PAÍSES: Brasil (64 %), Peru (9,7 %), Bolívia (7 %), Colômbia (6,6 %), Venezuela (5,9 %), Guiana (2,1 %)*, Suriname (1,9 %)*, Equador (1,6 %), Guiana Francesa (0,8 %)*; RIOS: Rio Amazonas (6992 km, o mais extenso do mundo), com milhares de afluentes entre eles o rio Negro (2000 km), o rio Madeira (3240 km), o rio Putumayo (1813 km), o rio Napo (1130 km), o rio Maranhão (1600 km). (*) Países com território amazónico fora da bacia hidrográfica do rio Amazonas. Fonte: Gutierrez-Acosta-Salazar, Instituto Sinchi, Colômbia 2004. |
dados demográficos | POPULAÇÃO: 38 milhões dos quais 25 milhões no Brasil e 3,7 milhões no Peru;
CIDADES PRINCIPAIS: Manaus (Brasil), Belém (Brasil), Iquitos(Peru), Santarém (Brasil); POVOS INDÍGENAS: Cerca de 420 povos indígenas (60 em isolamento) que totalizam aproximadamente de 1,5 milhões de pessoas; são 433 mil (240 povos) na Amazónia brasileira e 333 mil (52 povos) na Amazónia peruana. |
riquezas | Florestas, água, fauna, flora, biodiversidade, recursos do subsolo, povos indígenas. |
ameaças antrópicas | Actividades de petrolíferas, extracção de minérios (ouro, sobretudo), criação de gado bovino extensivamente, monoculturas (soja, em primeiro lugar), indústrias madeireiras, cultivo de coca, exploração das águas de rios (centrais hidroeléctricas), biopirataria. |