Segundo Domingo do Natal
João 1,1-18

«A Palavra de Deus se fez carne»
Papa Francisco
O Evangelho da Liturgia hodierna oferece-nos uma frase muito bonita, que rezamos sempre no Angelus e que sozinha nos revela o significado do Natal: «O Verbo fez-se homem e habitou entre nós» (Jo 1, 14). Estas palavras, se pensarmos bem, contêm um paradoxo. Reúnem duas realidades opostas: o Verbo e a homem. “Verbo” indica que Jesus é a Palavra eterna do Pai, Palavra infinita, que existe desde sempre, antes de todas as coisas criadas; “homem”, por outro lado, indica precisamente a nossa realidade, realidade criada, frágil, limitada, mortal. Antes de Jesus havia dois mundos separados: o Céu oposto à terra, o infinito oposto ao finito, o espírito oposto à matéria. E há outra oposição no Prólogo do Evangelho de João, outro binómio: luz e trevas (cf. v. 5). Jesus é a luz de Deus que entrou nas trevas do mundo. Luz e trevas. Deus é luz: nele não há opacidade; em nós, ao contrário, há muita escuridão. Agora, com Jesus, Luz e trevas encontram-se: santidade e culpa, graça e pecado. Jesus, a encarnação de Jesus é precisamente o lugar do encontro, do encontro entre Deus e os homens, o encontro entre a graça e o pecado.
O que quer anunciar o Evangelho com estas polaridades? Uma coisa esplêndida: o modo de agir de Deus. Perante a nossa fragilidade, o Senhor não se desiste. Não permanece na sua eternidade tranquila e na sua luz infinita, mas aproxima-se, faz-se homem, desce às trevas, habita terras que lhe são estranhas. E por que faz isto Deus? Por que desce até nós? Fá-lo porque não se resigna ao facto de nos podermos afastar dele, afastar da eternidade e da luz. Eis a obra de Deus: vir entre nós. Se nos considerarmos indignos, isso não o impede, Ele vem. Se o rejeitarmos, Ele não se cansa de nos procurar. Se não estivermos prontos e dispostos a recebê-lo, contudo ele prefere vir. E se fecharmos a porta na sua cara, Ele espera. Ele é o Bom Pastor. E a imagem mais bela do Bom Pastor? O Verbo que se fez carne para partilhar a nossa vida. Jesus é o Bom Pastor que vem procurar-nos onde estivermos: nos nossos problemas, na nossa miséria. Ele vem ali.
Estimados irmãos e irmãs, muitas vezes mantemo-nos distantes de Deus porque pensamos que não somos dignos dele por outras razões. É verdade. Mas o Natal convida-nos a ver as coisas do seu ponto de vista. Deus deseja encarnar-se. Se o teu coração parece demasiado poluído pelo mal, se te parece desordenado, por favor não te feches, não tenhas medo: Ele vem. Pensa na manjedoura em Belém. Jesus nasceu ali, naquela pobreza, para te dizer que não tem medo de visitar o teu coração, de habitar uma vida desleixada. Esta é a palavra: habitar. Habitar é o verbo que o Evangelho usa hoje para significar esta realidade: exprime uma partilha total, uma grande intimidade. Este é o desejo de Deus: quer habitar connosco, quer habitar em nós, não ficar longe.
E pergunto-me, a mim mesmo, a vós e a todos: queremos dar-lhe espaço? Em palavras, sim; ninguém dirá: “eu não”; sim. Mas concretamente? Talvez haja aspetos da vida que conservamos para nós, exclusivos, ou lugares interiores onde temos medo que o Evangelho entre, onde não queremos colocar Deus. Hoje convido-vos a serdes concretos. Quais são as coisas interiores que eu penso que não agradam a Deus? Qual é o espaço que conservo apenas para mim e que não quero que Deus lá vá? Cada um de nós seja concreto e responda a isto. “Sim, sim, eu gostaria que Jesus viesse, mas que não toque nisto; e nisto não, e naquilo…”. Cada um tem o próprio pecado – chamemo-lo pelo nome – e Ele não tem medo dos nossos pecados: veio para nos curar. Deixemos pelo menos que Ele o veja, deixemos que Ele veja o pecado. Sejamos corajosos, digamos: “Senhor, estou nesta situação, não quero mudar. Mas tu, por favor, não te afastes muito”. Esta é uma boa oração. Sejamos sinceros hoje.
Nestes dias natalícios, far-nos-á bem receber o Senhor exatamente ali. Como? Por exemplo, parando em frente do presépio, porque ele mostra Jesus que vem habitar toda a nossa vida concreta, comum, onde as coisas não correm bem, onde há muitos problemas – alguns por nossa culpa, outros por culpa dos demais – e Jesus vem. Vemos ali pastores que trabalham arduamente, Herodes que ameaça os inocentes, uma grande pobreza… Mas no meio de tudo isto, no meio de tantos problemas – e também no meio dos nossos problemas – há Deus, há Deus que quer habitar connosco. E espera que lhe apresentemos as nossas situações, aquilo que estamos a viver. Portanto, em frente do presépio, falemos com Jesus sobre as nossas vicissitudes concretas. Convidemo-lo oficialmente para a nossa vida, sobretudo para as zonas obscuras: “Olha, Senhor, ali não há luz, a eletricidade não chega, mas por favor não toques, porque não me apetece sair desta situação”. Falar claramente, de modo concreto. As zonas obscuras, as nossas “manjedouras interiores”: cada um de nós as tem. E falemos-lhe também sem receio dos problemas sociais, dos problemas eclesiais do nosso tempo; dos problemas pessoais, até dos mais terríveis: Deus gosta de habitar na nossa manjedoura.
A Mãe de Deus, na qual o Verbo se fez carne, nos ajude a cultivar uma maior intimidade com o Senhor.
Angelus, 2/1/2022
O rosto Humano de Deus
José Antonio Pagola
O quarto evangelho começa com um prólogo muito especial. É uma espécie de hino que, desde os primeiros séculos, ajudou decisivamente os cristãos a mergulharem no mistério encerrado em Jesus. Se o escutarmos com fé simples, também hoje nos pode ajudar a acreditar mais profundamente em Jesus. Só nos debruçamos em algumas declarações centrais.
«A Palavra de Deus se fez carne». Deus não é mudo. Não permaneceu calado, encerrado para sempre no seu Mistério. Deus quis se comunicar. Quis falar-nos, dizer-nos o seu amor, explicar-nos o seu projeto. Jesus é simplesmente o Projeto de Deus feito carne.
Mas Deus não se comunicou conosco através de conceitos e doutrinas sublimes que só podem ser compreendidas pelos doutos. A sua Palavra encarnou-se na vida cativante de Jesus, para que o possam entender até os mais simples, aos que sabem comover-se ante a bondade, o amor e a verdade que se encerra na sua vida.
Esta Palavra de Deus «acampou entre nós». Desapareceram as distâncias. Deus fez-se «carne». Habita entre nós. Para encontramo-nos com ele não temos que sair fora do mundo, mas sim aproximar-nos de Jesus. Para o conhecer não é preciso estudar teologia, mas sintonizar com Jesus, comungar com ele.
«Nunca ninguém viu Deus.» Os profetas, os sacerdotes, os mestres da lei falavam muito de Deus, mas ninguém tinha visto o Seu rosto. O mesmo acontece hoje entre nós: na Igreja falamos muito de Deus, mas nenhum de nós o viu. Apenas Jesus, «o Filho de Deus, que está no seio do Pai, foi quem o deu a conhecer».
Não podemos esquecer isto. Só Jesus nos contou como é Deus. Só ele é a fonte para nos aproximar do seu Mistério. Quantas ideias atrofiadas e pouco humanas de Deus temos de desaprender para nos deixarmos atrair e seduzir por esse Deus que se nos revela em Jesus.
Como tudo muda quando finalmente entendemos que Jesus é a face humana de Deus. Tudo é mais simples e claro. Agora sabemos como nos olha Deus quando sofremos, como ele nos procura quando nos perdemos, como nos entende e nos perdoa quando o negamos. Nele se nos revela «a graça e a verdade» de Deus.
Encarnou entre nós
José Tolentino Mendonça
Queridos irmãs e irmãos,
No segundo domingo de Natal temos o prólogo do Evangelho de S. João, este texto com uma densidade teológica, existencial que nos ajuda a descortinar o mistério da própria Encarnação do Senhor.
O que é isto que os nossos olhos veem? O que é isto que a nossa carne contempla? “No princípio era o Verbo, o Verbo fez-Se carne e habitou entre nós.” Este é o resumo daquilo que nós podemos olhar. E o que é que nós tocamos? Do que é que nós nos avizinhamos no mistério do Natal? Avizinhamo-nos de um Deus que Se faz carne, que toma a nossa carne, um Deus que visita a história, que a atravessa, que passa a estar entre nós, que passa a ser um de nós – a nossa carne, o nosso corpo, a nossa vida. Porque, o nosso corpo é este corpo individual que todos temos, mas é o corpo social, é a nossa história, é o corpo biográfico. O nosso corpo torna-se teomórfico. A nossa humanidade torna-se o lugar onde Deus habita, onde Deus esplende.
Então, nós temos de olhar para a nossa humanidade de outra forma, com outros olhos. No mistério da Encarnação, nós percebemos que a nossa humanidade passa a valer mais. Não apenas a minha humanidade individual, mas a humanidade passa a valer mais. Porque, Jesus vem mostrar o valor da nossa humanidade, vem dar-nos um novo olhar, uma nova compreensão daquilo que nós somos, daquilo que cada ser humano é. Vem alargar, finalmente nós podemos ver. Nós podemos ver a glória que está inscrita, que está agora tatuada na fragilidade da nossa condição humana.
Por isso, o tempo de Natal, estes dias de Natal são dias para contemplarmos. Contemplarmos a cena do presépio mas contemplarmos os presépios vivos. Uma rua da nossa cidade é um presépio vivo, as nossas casas, a nossa família é um presépio vivo. As pessoas que passam, conhecidos e desconhecidos, é um presépio vivo. Nós somos chamados a olhar para aquela humanidade que muitas vezes nos é indiferente, muitas vezes até nos agride, muitas vezes damos por desvalorizada. Somos chamados a reolhar, a rever a humanidade, agora com olhos novos, porque ela é o lugar onde está Deus.
Neste tempo do Advento e do Natal nós fizemos tantas coisas e chegamos a este dia muitas vezes até com o sentido: valeu a pena, não valeu a pena. Sentimos que investimos demasiada esperança, que caímos outra vez na armadilha do Natal. Voltei a acreditar e, de repente, este dia vai chegar ao fim. Há mais uma tarde e acaba tudo. E parece: pronto, lá caí outra vez. Porque, talvez possamos temer que o investimento de esperança, de afeto, de dádiva, de serviço, de cuidado que oferecemos nós não recebemos a troca, não vemos para que é que isto serve. Para que é que tudo isto existe, qual é o real valor de tudo isto. Será que não somos uns zombies que se contagiam uns aos outros com este espírito e que depois, no fundo, percebemos que nada disto valeu a pena. Eu penso que as palavras do prólogo de S. João nos ajudam a perceber porque é que vale a pena. Porque é que vale a pena? Porque é que vale a pena sermos dom, porque é que vale a pena até o nosso cansaço, a nossa fadiga? Porque é que vale a pena toda esta mobilização, porque é que vale a pena hoje a cidade estar vazia, porque é que vale a pena tudo isto que se cria? Porque é que vale a pena?
Vale a pena porque na nossa carne nós experimentamos uma diferença. O amor deixa-nos talvez mais cansados, talvez sem forças. O amor traz-nos a fadiga, o cuidado dos outros, a solidariedade. O pensamento dos outros mobiliza-nos, enche-nos de ocupações, muda a nossa agenda, transforma-nos. E esta modificação que cada um de nós experimenta, num custo de fadiga, de cansaço, de cuidado, de dádiva, de prestação de serviço, este custo que o Natal tem na nossa carne é a vinda de Deus. É Deus a vir ao nosso próprio corpo, à nossa própria vida. Esta espécie de desvitalização é o cavar a manjedoura dentro de nós, cavar o berço onde Deus vai nascer. Porque nós precisamos de fazer o caminho de Jesus, o caminho que Ele depois vai fazer na sua vida, porque esta história não acaba em Belém, esta história começa em Belém. E o que Ele nos ensina é a fazermos da nossa vida dom, é a darmo-nos por inteiro, é a sairmos de nós, é a não pensarmos em nós-próprios, em vivermos na alegria, na alegria do dar. Há uma infinita alegria que está no dar e não no receber, há uma infinita alegria que está no servir e não no ser servido, há uma infinita alegria em fazer-se o último, em esquecer-se de si. Há uma perfeita e infinita alegria em sermos pequeninos e ajudarmos a construir sorrisos, a sermos cúmplices dos sonhos dos outros, a realizar a alegria que os outros têm adiada. E nós dizemos: olha, hoje é o dia dessa alegria, é hoje que vais sorrir, é hoje que vais ter aquilo que sonhaste. Seja um brinquedo ingénuo, seja o que for, é a vida que está a ser partilhada, estamos a construí-la uns com os outros. Quando somos capazes de fazer isso, claro que há um custo. Mas, esse custo, que está até na nossa carne e no nosso corpo, é a forma de Deus, é a forma de Deus.
Queridos irmãs e irmãos, por isso o Natal é a festa do brilho e da abundância. Mas o Natal é a festa dos famintos, é a festa dos esfomeados, dos sedentos, daqueles que querem mais, querem mais da vida, querem outra coisa da vida, daqueles que não se conformam apenas com a rotina, com o dia-a-dia, que sentem que tem de haver um suplemento, tem de haver um plus, tem de haver alguma coisa que vá além da medida, que não seja apenas o normal, alguma coisa que nos traga o excesso, o excedente do brilho do próprio Deus, da glória do próprio Deus. Por isso, o Natal é este tempo assim desconforme, exagerado, é o tempo do desejo de Deus, é o tempo para dar espaço a essa fome e a essa sede que temos no nosso coração. Famintos de estrelas, nós que andamos colados ao chão. É tempo para sentir isso e para dar voz, dar corpo, dar lugar à expressão de tudo isso que está no nosso coração. E é assim que a nossa carne ganha a forma de Deus.
“O Verbo fez-se carne e encarnou entre nós e viveu entre nós.” É a isto, irmãos e irmãs, que temos de nos agarrar, traduzindo na nossa carne, na nossa vida, nas nossas relações, nas nossas construções a presença de Deus. Dando ao mundo a forma de Deus. Este é o programa do Natal, procuremos vivê-lo à nossa medida, à nossa dimensão com aqueles que encontrarmos, partilhando, vivendo este milagre que é este dia, mas ao mesmo tempo, tendo a capacidade de o multiplicar, de o expandir, de fazer do Natal uma surpresa que chega a quem pensava ou já não pensava que ele pudesse existir.