Duas palavras gémeas, que andam sempre a par. Melhor dito, a primeira é a alma da segunda. E do mesmo tamanho também, porque pouca esperança significa pouca paz.

É certo, infelizmente, que a esperança se retraiu hoje em dia. A persistência de conflitos, locais ou alargados, que nunca mais se resolvem e que a acumulação mediática quase torna “normais”, ou a ameaça de destruições maciças e por isso mesmo sufocantes das boas vontades que restam, tudo isto pode fazer da paz uma quimera.

Entretanto, há sinais de que as coisas podem ser diferentes e de que a paz é realmente possível. Aqui e ali, com mais ou menos atenção mediática, há luzes que despontam. Esplendem sobretudo de pessoas que não desistem de acreditar que a paz é possível. Muitas são declaradamente crentes e todas são movidas pelo que transportam de mais profundamente humano, aí onde se toca o divino.

Para quem nasceu no pós-Segunda Guerra Mundial, a diferença é grande. A juventude dos anos sessenta, pelo menos a geralmente referida, acreditava que as causas das desgraças anteriores seriam afastadas de vez. Surgiam conflitos, por vezes agudos, mas seriam ultrapassados numa era marcada pela paz e o reencontro mundial. O habitual seria a paz e a guerra a exceção. Atualmente, prevalece o contrário, como perceção habitual: o normal é a guerra ou a iminência dela, a paz é exceção num mundo em conflito declarado ou latente.

Há mesmo uma “cultura”, enquanto sensibilidade geral, que vai nesse sentido e o alimenta constantemente. A conexão mediática também, dos “jogos de guerra” que brincam com coisas sérias à catadupa de notícias que nos deixa pesados e desconfiados de que ainda se possa fazer alguma coisa, ou confiar verdadeiramente em alguém… Os sinais de desistência e depressão entre os mais novos tornam-se alarmantes e os adultos nem sempre lhes correspondem de modo animador.

No entanto, nem tudo é realmente assim. Mesmo que pouco noticiadas, não faltam pessoas e iniciativas que vão noutro sentido e demonstram na prática que os conflitos podem ser prevenidos ou ultrapassados, tanto em curto como em largo espaço. Se por cada notícia de guerra e destruição se mostrassem exemplos de solidariedade e reconciliação, a motivação cresceria decerto.

Cresceria também a mobilização para objetivos entusiasmantes e concretos, como aconteceu entre nós com a participação de milhares de jovens na preparação e realização da Jornada Mundial da Juventude. Aliás, creio bem que o melhor fruto dessa Jornada é o que ficou no ânimo dos que nela trabalharam e dos que nela participaram, com a experiência vivida e convivida de que é possível fazer grandes coisas quando não falta a contribuição de cada um, por pequena que seja. Tal ânimo é o melhor que sobra para o que falta fazer, também na senda da paz.

Cabem aqui duas referências maiores. A primeira, da encíclica Spe salvi – Salvos na esperança de Bento XVI, datada de 30 de novembro de 2007, tão luminosa como já fora a sua anterior sobre a caridade. E tão oportuna hoje como então, explanando com profundidade e clareza o porquê das desesperanças contemporâneas e o seu remédio, só alcançado pela certeza de que Deus não nos abandona nunca, como o comprovou em Cristo.

Diz, por exemplo, que a esperança que nos vem de Deus não se fica pelo enunciado, mas realiza-se pela prática: «Em linguagem atual, dir-se-ia: a mensagem cristã não era só “informativa”, mas “performativa”. Significa isto que o Evangelho não é apenas uma comunicação de realidades que se podem saber, mas uma comunicação que gera factos e muda a vida. A porta tenebrosa do tempo, do futuro, foi aberta de par em par. Quem tem esperança vive diversamente; foi-lhe dada uma vida nova» (Spe salvi, 2). Creio bem que quantos não desistem de trabalhar pela paz, seja qual for o contexto, ainda o mais drástico, se sentem confirmados com um trecho assim.

É na mesma linha que assevera depois: «Isto conserva um sentido, mesmo quando, aparentemente, não temos sucesso ou parecemos impotentes face à hegemonia de forças hostis. Assim, por um lado, da nossa ação nasce esperança para nós e para os outros; mas, ao mesmo tempo, é a grande esperança apoiada nas promessas de Deus que, tantos nos momentos bons como nos maus, nos dá coragem e orienta o nosso agir» (ibidem, 35).

Não cabem aqui mais referências a esta preciosa encíclica do Papa Ratzinger. Mas será muito útil lê-la e relê-la no tempo em que vivemos, tão carente de paz e de esperança – ou de esperança para construir a paz.

A segunda referência é da bula de proclamação do presente Jubileu, Spes non confundit – A esperança não engana, que o Papa Francisco nos deu em 9 de maio de 2024. Depois de nos introduzir na esperança que a graça divina infunde e o Jubileu derrama, estimula-nos a olhar o mundo e os apelos que este nos faz, para os transformarmos em “sinais de esperança”. Elenca vários, de necessidades que não faltam, e a primeira é precisamente a da paz: «Que o primeiro sinal de esperança se traduza em paz para o mundo, mais uma vez imerso na tragédia da guerra. Esquecida dos dramas do passado, a humanidade encontra-se de novo submetida a uma difícil prova que vê muitas populações oprimidas pela brutalidade da violência» (Spes non confundit, 8).

E continua, tanto perplexo com a ineficácia internacional para pôr fim a tais conflitos, como convicto de que sempre se pode fazer alguma coisa de mais e melhor na senda da paz. Conta para isso com a graça jubilar e conta connosco para a pôr em ação: «Será excessivo sonhar que as armas se calem e deixem de difundir destruição e morte? O Jubileu recorde que “serão chamados filhos de Deus” todos aqueles que se fazem “obreiros de paz” (Mt 5, 9). A necessidade de paz interpela a todos e impõe a prossecução de projetos concretos» (ibidem).

Neste campo – e especialmente nele – valerá o desejo e a educação para tal. Desejar profundamente a paz e alimentá-la pela esperança de a manter ou restaurar. Sabemos que a paz é obra da justiça e que só dando a cada um – pessoas e povos – o que lhe é devido se pode garantir. Mas tudo isto se consegue na medida em que se realiza, passo a passo, do perto para o longe, do coração de cada um para o bem de todos.

E sem esquecer que o que devemos a cada um é o serviço da totalidade do seu ser, como o conjunto das obras de misericórdia, corporais e espirituais, sempre reclama. Educar desde a infância nesse sentido, proporcionando experiências de bem-fazer e da alegria do dar e do dar-se, é o melhor que devemos às novas gerações, rumo a um mundo de paz. Para as famílias, para as comunidades crentes, para todos os que se envolvem diretamente na educação, será este o objetivo maior a alcançar. Quem conhecer verdadeiramente a paz, nunca desistirá dela, para si e para os outros. E também a esperança crescerá no exercício.

Na tradição evangélica, tudo isto é por demais evidente e exigente. Na vida de Jesus demonstra-se como Deus quer atuar no mundo para o transformar no seu Reino. A oração que nos ensinou educa-nos o desejo, conformando-o com o desejo de Deus Pai. Tudo é nosso porque tudo é plural, o pão e o perdão, a santificação do nome divino e a libertação do mal. Na relação com Deus tudo é pessoal, mas nada é excludente. A iniciação cristã integra-nos num mundo que, esse sim, será de todos para todos. Um mundo finalmente em paz. Começá-lo onde estamos é a melhor garantia de que alastrará depois.

Card. Manuel Clemente
Patriarca Emérito de Lisboa
Este texto foi publicado no “Observatório da Cultura” n. 27 (novembro 2025)
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Publicado em 20.11.2025
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