Este texto nasce do entrelaçar destas duas visões, a certeza escondida das Escrituras e a noite luminosa do Doutor Místico, para cantar a fé como caminho, união e presença velada. Uma fé que não vê, mas sustém. Que não toca, mas transforma. Que não explica, mas inflama.

Carlos Vieira
Nov 25, 2025
Por cortesia da
Revista CLAUSTRO

“A fé é o fundamento da esperança, é uma certeza a respeito do que não se vê” (Heb 11,1). Assim se abre a grande página bíblica sobre a fé. E João da Cruz, ecoando esse mistério, escreverá: “A fé é para o entendimento o que a noite escura é para os olhos do homem” (2S 3,3).

Este texto nasce do entrelaçar destas duas visões, a certeza escondida das Escrituras e a noite luminosa do Doutor Místico, para cantar a fé como caminho, união e presença velada. Uma fé que não vê, mas sustém. Que não toca, mas transforma. Que não explica, mas inflama.

O voo sem horizonte

Há um pássaro que não desce, que não volta. Habita as alturas como quem nelas encontrou morada. Silencioso, não canta para os outros ouvirem. Canta porque dentro dele a noite se fez melodia. É o pássaro solitário, imagem da alma crente. Vive no alto, não deseja companhia, dirige o bico para o mais alto, não tem cor definida e canta suavemente, como quem crê.

João da Cruz escreveu palavras similares para o descrever (cf. C 14-15, 24), mas era de si mesmo que falava, e de todos os que se aventuram no voo da fé. Porque a fé, para ele, não era apenas uma virtude, mas uma forma de viver: um voo cego sustentado por um amor invisível. Um canto sem eco que sobe aos céus porque já não espera resposta, apenas comunhão.

A fé é o meio de união com Deus. E é o mais escuro. Não porque Deus esteja ausente, mas porque está presente de um modo tal que cega a inteligência e desarma os sentidos. A fé é noite. E é luz. É abandono. E é encontro. É pobreza absoluta de imagens, de garantias, de consolações e é riqueza inaudita de presença.

No itinerário traçado por São João da Cruz, a fé é o primeiro passo e é o último. Sem ela não se começa, sem ela não se chega. Na aridez da noite sensível e na secura da noite do espírito, é a fé que permanece quando tudo o mais se perde. Por isso é véu, é lâmpada, é ferida, é desposório. Nela se entra e nela se permanece.

Este artigo quer ser, por isso, como um voo breve em redor desta palavra que é como um abismo e uma âncora. Um voo que retoma as imagens queridas de João da Cruz – a noite, a chama, o voo, o canto, a ferida – para delinear a geografia interior da fé teologal. Para dizer que mesmo quando não vemos, voamos. E cremos.

1. A fé como noite e caminho

Para São João da Cruz, a fé é noite. Mas não qualquer noite. Não apenas a ausência de luz ou de certezas, nem uma escuridão negativa ou uma ignorância obstinada. É antes noite fecunda, purificadora, luminosa na sua própria opacidade. É o véu necessário entre a alma e a luz incompreensível de Deus. Sem esse véu, seríamos cegos de excesso e não de carência.

Com esta imagem densa e radical, João da Cruz inicia um verdadeiro processo místico que culmina na união com Deus. O itinerário não começa por ver, mas por des-ver. Não para entender, mas para render-se. Porque Deus não se dá pela lógica das formas, mas no silêncio da fé pura. Tudo aquilo que o intelecto alcança é demasiado pequeno para conter o Infinito. A fé, porque não vê, é o único modo proporcionado de tocar aquilo que não tem contorno. “A fé é como um espelho onde a alma vê Deus segundo a maneira divina” (2S 6,2).

A pedagogia da noite escura não desorienta, mas conduz. Não é perda, mas libertação. É a trilha do peregrino que caminha por confiança, sustentado por um amor maior que o seu.

A própria Subida do Monte Carmelo inscreve a fé na gramática do caminho e do cume. Subida difícil, sem mapa, apenas com bússola. E a bússola é esta fé obscura que aponta sempre para o Alto, mesmo quando o céu se esconde.

Em Noite Escura, a fé é ainda mais essencial: é o último fio a que a alma se agarra quando todas as luzes se apagam. A noite dos sentidos e a noite do espírito são degraus de purificação onde o único sustento é esta confiança desarmada num Deus que não se mostra, mas que se entrega.

Nesta via, a fé não é apenas virtude: é caminho. Caminho feito de não saber e de consentimento. A alma deixa de querer dominar Deus com os sentidos ou com a razão, e aprende a acolhê-Lo como se acolhe o vento: abrindo espaço.

2. A fé como união transformante e linguagem do Espírito

A fé não é só começo, mas também fim. João da Cruz afirma que a fé é o meio mais próximo e proporcionado para a união com Deus. Não apenas prepara a alma para a luz, mas mergulha-a já nela.

Na linguagem do místico, esta união é ferida, é fogo, é transformação. Na Chama de Amor Viva, o Espírito Santo fere a alma no seu mais profundo centro e transforma-a naquilo que ama. A fé torna-se então linguagem da transformação. Não fala, mas consente. Não exige, mas escuta. É um “sim” obscuro e incondicional, como o de Maria. Uma escuta sem figura, um repouso sem forma. Uma advertência amorosa.

A fé, aqui, é a nova forma de habitar a presença. Presença silenciosa, não lógica, mas viva, fecunda, transformante. Não se vê, mas sabe-se. Não se toca, mas inflama. Deus comunica-se à alma por esta via secreta, e a alma responde com docilidade. É a fé que abre o coração ao Esposo, e que o deixa entrar sem resistências.

Nesta gramática do amor, a fé é já amor. Amor que não sente, mas quer. Amor que não frui, mas permanece. Amor fiel.

3. A fé diante da ausência: o silêncio de Deus como espaço de fidelidade

A fé, para João da Cruz, encontra a sua maior pureza na ausência. Não é ausência de sentido, mas de sinais. A alma crente não se apoia em consolações nem em visões, mas persevera no escuro. É aqui que o amor amadurece e se torna fidelidade.

Crer é permanecer quando tudo se cala. É amar quando não se sente. É esperar quando não se vê.

Na noite do espírito, a alma não consegue levantar afetos, nem orar, nem sentir presença. Mas se permanece, ama: silenciosamente, fielmente, inteiramente. E esse amor é fé. Fé despojada, fé pura, fé nua.

Aqui a imagem do pássaro solitário ganha plenitude: já não voa por desejo, mas por fidelidade. Já não canta por consolo, mas por fidelidade. Já não vive da presença, mas da promessa.

Na ausência, a alma é formada, porque aprende a amar sem ver, a permanecer sem sentir, a confiar sem provas. Como diz o Cântico Espiritual, “Descobre a tua presença, e mate-me a tua vista e formosura […] pois a dor de amor não se cura senão com a presença e a figura” (CB 11). Deus retira os sinais para purificar o amor. Para ensinar a amar como Ele ama: sem retribuição, sem garantia, sem retorno. Crer torna-se então o maior dos atos. É o sim do véu. O sim da noite.

4. A fé como visão escondida: antecipar a glória

João da Cruz descreve a fé como um espelho: nela não vemos claramente, mas já resplandecem os traços do Amado. É uma antecipação velada da visão futura, uma aurora que anuncia a plenitude. “Só lhe resta à alma mais uma coisa para desejar: gozar totalmente d’Ele na vida eterna” (CB 36,2).

Se a fé não vê, ela pressente. Se não toca, ela espera. Mas essa espera é fecunda, porque carrega em si a própria glória. Para João da Cruz, a fé é já participação na visão futura. É espelho da luz divina, ainda que encoberta.

Quem crê já vive na presença. Já ama com amor divino. Já canta com voz do Esposo. A alma que se abandona na fé torna-se mística antes da glória. Porque ama no escuro.

E como quem já ressuscitou, a alma canta na Chama Viva. A fé, embora escura, ilumina. Conduz à confiança plena e prepara o coração para o dom definitivo. Já não caminha por certezas, mas por amor, e esse amor é já luz. Vive da chama do Espírito, que a transforma em forno de amor. Aqui a fé não é apenas caminho: é fogo. É luz sem figura. É união sem forma.

5. A fé como canto na noite

Crer é cantar. Mesmo sem melodia. Mesmo sem eco. Mesmo na noite.

João da Cruz ensinou que a fé não é um saber que tranquiliza, mas um fogo que transforma. Que não é resposta a todas as perguntas, mas comunhão com um Deus escondido. E por isso mesmo, mais real.

O pássaro solitário encarna essa sabedoria. Vive no alto, sem sinais, sem garantias. Não voa por prazer, mas por fidelidade. Não canta porque sente, mas porque ama.

Crer como quem canta na noite é isso: habitar a ausência com confiança, com docilidade e com esperança. Não forçar a luz, mas abrir espaço para ela. Aceitar ser ferido por uma Chama que não consome, mas dá forma nova ao coração.

E assim, mesmo que seja de noite, cantamos. Cantamos como canta o pássaro solitário: não por ter chegado, mas por saber-se chamado. Não por ver, mas por permanecer fiel. E é esse canto – sem melodia, sem eco – que atravessa a noite e sobe como oração.

Carlos Vieira
Carmelita Descalço, responsável pela pastoral juvenil da Ordem