34° Domingo do Tempo Comum (ciclo C)
FESTA DE CRISTO REI
Lucas 23,35-43

1ª leitura: “E eles o ungiram Rei de Israel” (2 Samuel 5,1-3).
Salmo: Sl. 121(122) – R/ Quanta alegria e felicidade: vamos a casa do Senhor!
2ª leitura: “Ele nos libertou do poder das trevas e nos recebeu no Reino de seu Filho amado” (Col 1,12-20).
Evangelho: “Jesus, lembra-te de mim quando entrares no teu Reinado” (Lucas 23,35-43).
Cristo, imagem de Deus invisível
José Tolentino Mendonça
Queridos irmãs e irmãos,
Nesta Festa de Cristo Rei nós temos como Carta de Paulo esta página da Carta aos Colossenses. É um texto curioso. A comunidade de Colossos era uma comunidade fundamentalmente constituída por pagãos, por cristãos que vinham de outra cultura, de cultura helénica, e que no fundo achavam que a salvação acontecia de muitas maneiras e que havia muitos mediadores da salvação. E Paulo escreve esta Carta aos Colossenses, que é uma carta que arranca precisamente com o chamado Hino Cristológico que nós ouvimos hoje nesta festa. É um hino que começa por dar graças a Deus, criar um ambiente de louvor mas depois tem dois núcleos fundamentais. O primeiro, dizer aquilo que Cristo é: dizer que Ele é imagem de Deus invisível, que Nele nós podemos ver aquele Deus que os nossos olhos de carne não veem, que Ele é verdadeiramente o mediador da salvação que o nosso coração espera. E depois, na segunda parte específica, conta o papel de Jesus Cristo na História da Salvação: dizendo que é por Ele que obtemos a paz, que é por Ele que obtemos a reconciliação, que é por Ele que obtemos a consciência de que somos filhos amados e que somos verdadeiramente irmãos, capazes de construir um mundo substancialmente, qualitativamente melhor.
É interessante esta confissão de fé, este credo que S. Paulo assina na Carta aos Colossenses. Porque, quem é este Cristo? Quem é Jesus? Como é que Ele emerge na nossa vida? S. Paulo no Hino Cristológico usa a metáfora da realeza. Cristo é o Rei, Cristo é o rosto, Cristo é o Senhor, é o Kyrios. Mas, como é que nós O vimos, como é que nós O reconhecemos assim? E reconhecemo-Lo assim nesta página escandalosa do Evangelho de Mateus, em que nós assistimos ao escândalo dos judeus, ao escândalo dos romanos que olham para Aquele pretenso Messias, suspenso numa cruz, na mais completa impotência, na mais absoluta inanidade. Incapaz de tudo, incapaz de um gesto, porque tem os braços presos na cruz, Este Cristo amarrado àquela morte terrível. Eles olham para Ele e troçam, e dizem: “Mas como é que é? Salvaste os outros, salva-Te a Ti mesmo. Se és Tu o Messias desce da cruz para nós acreditarmos em Ti.”
Essa impossibilidade radical de descer da cruz, esse absoluto despojamento, essa pobreza radical, esse quase absurdo de vazio, de sofrimento, de não afirmação é o único lugar que nós temos para perceber como Ele é o Rei, como Ele é o Senhor. Isto é, temos de converter o nosso olhar, temos de converter a nossa visão, a nossa perspetiva sobre o que é um reino e sobre o que é uma realeza para chamar a Cristo, Rei. Porque Ele é Rei mas pela vulnerabilidade, Ele é Rei pela impotência, Ele é o Rei pelo dom radical de si, Ele é Rei porque não pode salvar-Se a Si mesmo. Porque caminhou de olhos abertos para aquele momento da Sua vida em que não podia salvar-Se a Si mesmo. Não podia porque não queria, porque a Sua decisão fundamental foi de viver em amor até ao fim.
E quem vive em amor perde o pé. Quem vive no amor radical, no amor verdadeiro tarde ou cedo acaba por não ser dono de si mesmo, tarde ou cedo acaba por viver com os braços atados a uma cruz, tarde ou cedo acaba por viver nessa pobreza de não impor a sua vontade, de não impor a sua força, de não manifestar o seu poder. Mas, pelo contrário, de calar, de calar, de calar, de morrer, de esvaziar-se, de dar espaço, de oferecer-se no silêncio absoluto com que Jesus ofereceu a Sua vida.
E é assim que nós O contemplamos, neste silêncio, neste esvaziamento de Si que continua a ser para nós o grande sinal, continua a ser para nós o grande caminho, a grande lição. Uma vida de amor, uma vida feliz é assim, e não é de outra maneira. Cristo é uma sabedoria, a Cruz é uma sabedoria, é uma forma de conhecimento, “é uma nova ciência” como escreveu Sta. Edith Stein. É uma nova ciência a ciência da Cruz, é uma nova filosofia, é uma nova proposta de vida que Jesus faz, e que passa exatamente por isso: levar o amor até ao seu extremo. Levar o amor até àquele ponto sem retorno, sem retorno. E nós só somos príncipes do amor se estivermos disponíveis para dar a vida pelo amor. É aí que o amor nos coroa como seus príncipes, como suas princesas, como seus reis, como suas rainhas, como seus apóstolos, como seus símbolos. O símbolo do amor é aquele que se deixa destruir pelo amor, habitar a um ponto tal que o amor torna-se o lugar da consumação, o lugar da chama, o lugar onde a vida inteira é ali colocada. E não dividimos, não calculamos, não pomos nada para o lado mas concentramos tudo no amor.
É interessante o que nós liamos na primeira leitura. Israel era um conjunto de tribos, eles eram os clãs, as famílias, depois aquelas doze tribos cada uma da sua parte com a sua história, as suas divisões, as suas guerras, os seus ódios. E, a um dado momento, eles dizem: “Não, nós temos de superar estas divisões e temos de fazer uma confederação de tribos.” E a confederação é um gesto político mas também um gesto religioso que acontece como nós ouvimos em Hébron: as doze tribos vão ter com David e dizem-lhe esta coisa muito bela: “Tu és ossos dos nossos ossos, és carne da nossa carne, representa-nos, sê para nós um rei.”
Queridos irmãs e irmãos, neste dia da Festa de Cristo Rei é isto que nós dizemos, olhamos para a cruz e dizemos: “Tu, Cristo, és ossos dos nossos ossos e carne da nossa carne, representa-nos, representa-nos. Sê para nós um Rei, sê para nós um farol, sê para nós uma estrela, sê para nós um guia, sê para nós um pastor, sê para nós Aquele que nos conduz.” Ele está sempre pronto a estabelecer esta aliança connosco.
É muito bela a história do ladrão arrependido que, no cimo da cruz, naquele instante derradeiro volta-se para Jesus com este pedido: “Senhor, quando vieres na Tua realeza lembra-Te de mim, lembra-Te de mim.” É uma das mais belas orações que o Novo Testamento tem. “Senhor, quando vieres na Tua realeza lembra-Te de mim.” E Cristo responde-lhe imediatamente: “Hoje mesmo estarás comigo.” A nossa súplica é uma súplica atendida – as nossas orações, os nossos desejos, nem que seja pedir ao Senhor assim de uma maneira vaga, pouco expressa: “Senhor recorda-Te de mim, lembra-Te de mim.” E Ele lembra-se e garante que se lembra, e diz-nos: “Hoje mesmo estarás comigo.”
Esta força de Se tornar próximo da vida daqueles que O procuram só acontece pelo amor, pela radicalidade de amor que levou Jesus à impotência, à dádiva radical, à impossibilidade de salvar-Se a Si próprio. Porque, acima de tudo, Ele queria salvar o outro, Ele queria salvar-nos a nós. Jesus viveu assim uma vida de entrega.
Hoje ouvi uma definição de esperança muito bela que diz: “A esperança é o milagre de uma vida sem milagres.” Na vida de Jesus não houve milagres, Ele não foi poupado a nada, não houve milagres, a vida Dele foi um não-milagre. Mas foi também o grande milagre da esperança, o grande milagre da confiança e o grande milagre do amor: acreditar que a vida pode ser dada, a vida pode ser entregue e multiplicada, como acontece em cada Eucaristia.
Cristo, Tu que és ossos dos nossos ossos e carne da nossa carne sê para nós um Rei.
Um Rei de amor
Marcel Domergue, s.j.
Um Rei, mas não como os outros
A Bíblia quer nos dizer o que é indizível. Recorre para isso a diversos gêneros literários: o mito, a poesia, textos legislativos, narrativas… Como o centro visado por esta ciranda de escritos sempre nos escapa, as palavras usadas não guardam mais o seu sentido habitual; nem mesmo a palavra «deus».
Tomemos como exemplo a palavra «pastor». Foi por causa de Davi, a quem Deus havia tirado de trás da fila de ovelhas para fazer dele o pastor de seu povo, Israel, que “pastor” quer muitas vezes designar o rei. Mas que estranho pastor é este!
Todo pastor vive do seu rebanho, mesmo sendo somente um empregado. São as ovelhas que o alimentam e sustentam com sua carne e sua lã. Mas não é o que acontece com o pastor bíblico, cuja figura mais acabada iremos encontrar no capítulo 10 de João: o verdadeiro pastor é “aquele que dá a sua vida por suas ovelhas”, ao invés de viver delas.
O mesmo tipo de constatação se faz necessário para todas as palavras que designam o Messias e a sua atuação, inclusive a palavra «redenção» ou «resgate». O mesmo vale para «Rei» e o seu «trono».
Corremos o risco de ver neste personagem um ser à parte, distante de nós por sua competência e seu poder. Ora, todo o relato bíblico nos encaminha para a figura de um «soberano» sem nenhum poder sobre os seus súditos. E o vemos até mesmo submetido às decisões destes, ainda que elas o conduzam à morte.
Este Rei, que imaginaríamos uma espécie de autocrata cheio de vontades misteriosas, imprevisíveis e desconcertantes, revela-se finalmente como o Servidor. O primeiro se fez o último e o Todo-poderoso veio até nós sob a forma do Todo-fraqueza.
A realeza de Deus, uma metáfora
Sem precisar ater-nos ao fato de a expressão «Cristo-Rei» ser um pleonasmo, devemos notar que a palavra Cristo já designa aquele que recebeu a unção real, a que o final da primeira leitura se refere. Inúmeros são os textos que nos falam da realeza de Deus; por exemplo, o salmo 95 diz que Deus é «o grande rei sobre todos os deuses», ou o salmo 97, do qual as primeiras palavras são: «Iahweh é rei».
É que, então, entre todos os personagens da terra, não se conhecia ninguém com poder maior do que o rei. Era o único cuja vontade se impunha sem discussão possível.
Tem-se ido muito longe com esta metáfora: representa-se Deus sentado em seu trono e sendo servido por uma multidão de subalternos celestes. Ele está «acima de tudo» e de todos.
Temos dificuldade em ir além desta metáfora, e aceitar o quão importante é reconhecer que a «lei» divina, a lei do amor, seja preferível a qualquer decisão dos poderes humanos.
Esta «realeza» de Deus se exprime e toma forma em Cristo, o «Verbo de Deus», esta Palavra criadora que, em obra desde sempre, ganha corpo ou, por assim dizer, superfície, na pessoa de Jesus.
Com Ele, a realeza de Deus, o seu Reino, está entre nós, está em nós. Secretamente, Ela trabalha a humanidade até que esta chegue à sua plenitude no final dos tempos, para além do tempo, para além da história.
Enquanto esperamos, Ele está em trabalho, em nós e entre nós. Em gestação. Estamos longe daquele soberano sentado em seu trono. Deus é Espírito e o Cristo, que se tornou «corpo espiritual», não exerce nenhuma autoridade comparável à dos soberanos deste mundo.
Aliás, nos evangelhos, não vemos Jesus, visibilidade do Deus invisível, forçar a mão sobre o que quer que seja; jamais. Ao contrário, não faltam os «se queres…» e os «quem quiser…».
A “Onipotência”
O tema da realeza de Deus, e por consequência do Cristo, está ligado ao da onipotência. O problema é que muitos cristãos imaginam que tudo o que acontece no mundo e em suas vidas seja resultado de uma intervenção divina.
O tema da «divina providência» não escapa nunca desta confusão. Claro que Deus está aqui, conosco, em tudo o que temos de viver, mas o mundo foi confiado ao homem.
Deus se despojou, de qualquer forma, do exercício da sua onipotência e responde às nossas preces dando-nos o Espírito, para que possamos gerir da melhor forma tudo o que se impõe a nós (ver Lucas 11,9-13). É assim que se estabelece o Reino do Cristo.
Um Reino que, conforme Jesus disse a Pilatos no evangelho de João, “não é deste mundo”, um mundo que funciona segundo a sua própria lógica, ao sabor das liberdades humanas. Para o melhor ou para o pior. Não é deste mundo nem é neste mundo.
Esta impotência do Cristo tornou-se evidente nas zombarias que teve de suportar quando sofreu e morreu na Cruz. Aí se produziu a inversão fundamental que governa as nossas existências: porque Jesus, acolhendo com toda a liberdade estes sofrimentos e esta morte, agora domina, e a Cruz se torna o trono da sua onipotência.
Por ela, conforme repete o Evangelho de João, ele foi «levantado da terra» e, daí em diante, os olhares de todos os que o trespassaram se voltarão para ele. Aprofundemos mais o que acaba de ser dito: por meio de Jesus e de sua existência histórica, Deus interveio de fato no mundo. E com toda a sua onipotência, afinal de contas.
Onipotência esta que é exercida bem aí, onde ela mais é desmentida: em sua morte foi que o Cristo a exerceu em plena luz. E que se fez revelar por sua vitória sobre o que há de pior, a sua vitória sobre a morte, o «último inimigo» (1 Cor 15,25-26). A Ressurreição já está aí.
Cristo, centro da criação, do povo e da história
Papa Francisco
As Leituras bíblicas que foram proclamadas têm como fio condutor a centralidade de Cristo: Cristo está no centro, Cristo é o centro. Cristo, centro da criação, do povo e da história.
1. O Apóstolo Paulo, na segunda Leitura tirada da Carta aos Colossenses, dá-nos uma visão muito profunda da centralidade de Jesus. Apresenta-O como o Primogénito de toda a criação: n’Ele, por Ele e para Ele foram criadas todas as coisas. Ele é o centro de todas as coisas, é o princípio: Jesus Cristo, o Senhor. Deus deu-Lhe a plenitude, a totalidade, para que n’Ele fossem reconciliadas todas as coisas (cf. 1, 12-20). Senhor da criação, Senhor da reconciliação.
Esta imagem faz-nos compreender que Jesus é o centro da criação; e, portanto, a atitude que se requer do crente – se o quer ser de verdade – é reconhecer e aceitar na vida esta centralidade de Jesus Cristo, nos pensamentos, nas palavras e nas obras. E, assim, os nossos pensamentos serão pensamentos cristãos, pensamentos de Cristo. As nossas obras serão obras cristãs, obras de Cristo, as nossas palavras serão palavras cristãs, palavras de Cristo. Diversamente, quando se perde este centro, substituindo-o por outra coisa qualquer, disso só derivam danos para o meio ambiente que nos rodeia e para o próprio homem.
2. Além de ser centro da criação e centro da reconciliação, Cristo é centro do povo de Deus. E hoje mesmo Ele está aqui, no centro da nossa assembleia. Está aqui agora na Palavra e estará aqui no altar, vivo, presente, no meio de nós, seu povo. Assim no-lo mostra a primeira Leitura, que narra o dia em que as tribos de Israel vieram procurar David e ungiram-no rei sobre Israel diante do Senhor (cf. 2 Sam 5, 1-3). Na busca da figura ideal do rei, aqueles homens procuravam o próprio Deus: um Deus que Se tornasse vizinho, que aceitasse caminhar com o homem, que Se fizesse seu irmão.
Cristo, descendente do rei David, é precisamente o «irmão» ao redor do qual se constitui o povo, que cuida do seu povo, de todos nós, a preço da sua vida. N’Ele, nós somos um só; um só povo unido a Ele, partilhamos um só caminho, um único destino. Somente n’Ele, n’Ele por centro, temos a identidade como povo.
3. E, por último, Cristo é o centro da história da humanidade e também o centro da história de cada homem. A Ele podemos referir as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias de que está tecida a nossa vida. Quando Jesus está no centro, até os momentos mais sombrios da nossa existência se iluminam: Ele dá-nos esperança, como fez com o bom ladrão no Evangelho de hoje.
Enquanto todos os outros se dirigem a Jesus com desprezo – «Se és o Cristo, o Rei Messias, salva-Te a Ti mesmo, descendo do patíbulo!» –, aquele homem, que errou na vida, no fim agarra-se arrependido a Jesus crucificado suplicando: «Lembra-Te de mim, quando entrares no teu Reino» (Lc 23, 42). E Jesus promete-lhe: «Hoje mesmo estarás comigo no Paraíso» (23, 43): o seu Reino. Jesus pronuncia apenas a palavra do perdão, não a da condenação; e quando o homem encontra a coragem de pedir este perdão, o Senhor nunca deixa sem resposta um tal pedido. Hoje todos nós podemos pensar na nossa história, no nosso caminho. Cada um de nós tem a sua história; cada um de nós tem também os seus erros, os seus pecados, os seus momentos felizes e os seus momentos sombrios. Neste dia, far-nos-á bem pensar na nossa história, olhar para Jesus e, do fundo do coração, repetir-lhe muitas vezes – mas com o coração, em silêncio – cada um de nós: «Lembra-Te de mim, Senhor, agora que estás no teu Reino! Jesus, lembra-Te de mim, porque eu tenho vontade de me tornar bom, mas não tenho força, não posso: sou pecador, sou pecadora. Mas lembra-Te de mim, Jesus! Tu podes lembrar-Te de mim, porque Tu estás no centro, Tu estás precisamente no teu Reino!». Que bom! Façamo-lo hoje todos, cada um no seu coração, muitas vezes: «Lembra-Te de mim, Senhor, Tu que estás no centro, Tu que estás no teu Reino!»
A promessa de Jesus ao bom ladrão dá-nos uma grande esperança: diz-nos que a graça de Deus é sempre mais abundante de quanto pedira a oração. O Senhor dá sempre mais – Ele é tão generoso! –, dá sempre mais do que se Lhe pede: pedes-Lhe que Se lembre de ti, e Ele leva-te para o seu Reino! Jesus é precisamente o centro dos nossos desejos de alegria e de salvação. Caminhemos todos juntos por esta estrada!
24/11/2013
Anúncio missionário de um Rei que reina na Cruz
Romeo Ballan, mccj
Fala-se das “Sete palavras de Jesus na cruz”. Mas também existem as “sete palavras ditas a Jesus na cruz”. As primeiras são tema de muitas pregações e retiros espirituais. Mas também se podem usar as segundas para reflexões fecundas. No Evangelho de Lucas de hoje, encontramos quatro palavras ditas a Jesus: pelos chefes (v. 35), pelos soldados (v. 36-37) e pelos malfeitores crucificados ao lado de Jesus (v.39-42). Estas quatro palavras têm em comum, mesmo se com acentuações diversas, um mesmo desafio dirigido a Jesus: “mostra quem és (o Cristo, o rei…), salva-te a ti mesmo, desce da cruz… As palavras dos chefes, dos soldados e de um dos malfeitores são um insultuosas, de desprezo, sem piedade. O lugar comum repete-se segundo uma lógica humana de incompreensão total e de desfiguração da identidade de Cristo.
A escrita sobre a cabeça de Jesus fala por si mesma: “Este é o rei dos Judeus” (v.38). Exprime com clareza a sua condenação. Mas como se há-de decifrá-la, quem conseguirá compreender a sua verdade? Para os chefes religiosos e políticos é um desdém; mas para Deus e para o cristão de coração sincero são palavras verdadeiras, que apontam precisamente para a identidade daquele misterioso condenado! Aquela placa é um desafio que atravessa os séculos: Ou é aceite ou é recusada. Com as respectivas consequências opostas! “O Povo estava a observar” (v. 35): mudos e perplexos, entre curiosidade e impotência, não entendem o que se está a passar, não sabem o que fazer… Pouco depois, porém, quando o espectáculo se conclui em tragédia horrenda, aquelas multidões “ regressavam batendo no peito” (v. 48).
Podemos colher o significado daquela morte através das palavras do segundo malfeitor, o famoso ‘bom ladrão’, o único que reconhece o verdadeiro sentido daquela placa e da identidade de Jesus. Não lhe pede uma libertação clamorosa, mas simplesmente de poder estar ao seu lado na última fase da vida: “Recorda-te de mim…”(v. 42). Súplica concedida de imediato: “Hoje mesmo estarás comigo no paraíso” (v. 43). É a primeira sentença do novo Rei!. Jesus só tem palavras de salvação completa: hoje, no paraíso! O silêncio de Jesus, o seu gesto de perdão, as poucas palavras (dirigidas ao Pai, à mãe, aos amigos…) revelam o mistério de um rei esplêndido e poderoso, que acaba sobre uma cruz. A sua é uma realeza estranha: mandou em tilt a Herodes, Pilatos, Tibério, os chefes, o povo… Uma realeza difícil de compreender e ainda mais difícil de aceitar e de partilhar. Uma realeza muitas vezes incompreendida e desfigurada! Mas, para quem a aceita, é uma realeza plena, verdadeira, que dá sentido à vida.
O mistério daquela morte encontra-se na resposta às perguntas ‘lógicas’ de todos: “Porque não desces da cruz? Porque não esclareces tudo com um milagre? Fizeste tantos, clamorosos, para os outros… Se tu descesses da cruz, todos acreditariam em ti” Mas em que acreditariam? “No Deus forte e poderoso, no Deus de derrota e humilha os inimigos, que responde sempre às provocações dos ímpios, que incute temor e respeito, que não está para brincadeiras… Este não é o Deus de Jesus. Se descesse da cruz, atraiçoaria a sua missão: confirmaria a falsa ideia de Deus que os guias espirituais do povo tinham em mente. Confirmaria que o verdadeiro Deus é o Deus que os poderosos deste mundo sempre adoraram porque é semelhante a eles: forte, arrogante, opressor, vingativo, humano. Este Deus forte é incompatível com aquilo que Jesus revela na sua cruz: o Deus que ama a todos, mesmo a quem combate contra ele, que perdoa sempre, que salva, que se deixa derrotar por amor” (F. Armellini).
Esta reflexão tem implicações imediatas sobre o terreno da missão: Qual é o Deus que anunciamos? Que rosto de Deus revela a missão que levamos por diante?: um Deus da pobreza e da fragilidade ou um deus em busca de fama e de poder? Seria em sintonia com a lógica humana, e com os reis deste mundo. Na nossa maneira de realizar a missão, por vezes há concessões, há medo de anunciar, com palavras e com gestos concretos, um Deus que perde, que perdoa, sofre, é derrotado… A abundância de meios humanos corre o risco de tirar a transparência ao anúncio. É mais evangélica uma missão realizada com meios frágeis, que anuncia Deus na pobreza, na humildade, expulsão, perseguição, destruição… Porque segue a lógica do Rei que vence e reina nas cruz! E um rei como este perturba os nossos planos, porque exige uma mudança de vida, capacidade de perdão, acolhimento a quem quer que seja, tempos mais prolongados, perspectivas que incomodam… As condições são exigentes, mas com Ele o êxito da missão está assegurado.