30° Domingo
Tempo Comum (ciclo C)
Lucas 18,9-14


Juste regard et bonne attitude

A oração do humilde atravessa as nuvens
José Tolentino Mendonça

Queridos irmãs e irmãos,
É domingo, o Senhor ressuscitou! Como os companheiros de Emaús o Ressuscitado torna-Se companheiro da vida de cada um de nós e, ao acompanhar-nos, Ele ressuscita-nos. Nós que chegamos de tantas mortes, de tanta vida adiada, de tanta incerteza, de tanto dilema, feridos por tantos espinhos, tantas perguntas sem respostas, insatisfeitos talvez com aquilo que vivemos, com aquilo que somos ou aquilo que não somos. O Ressuscitado transforma a nossa vida enche-nos de confiança, de serenidade, de esperança e de paz; e é capaz de transformar o copo meio vazio em copo meio cheio. Isto é, é capaz de transformar a nossa sede em louvor, em ação de graças. Sintamo-nos assim reconciliados, abraçados por este abraço de Deus que Jesus representa. Cada um de nós se sinta muito tocado pela Sua presença, pela Sua palavra e pelo partir do pão.

Queridos irmãs e irmãos, na pregação de Jesus, na exposição da Sua mensagem, Jesus muitas vezes recorreu a parábolas. As parábolas não são apenas histórias simples ou histórias edificantes, as parábolas são um caso muito sério de comunicação e de eficácia de comunicação. Porque as parábolas são, não uma linguagem de reforço que vem reforçar, dizer amém, dizer que sim àquilo que nós já sabemos, à nossa visão normal, comum, das coisas. Pelo contrário, a parábola é uma linguagem de crise.

A parábola vem para destabilizar o nosso quadro de valores e de convenções, a parábola vem para colocar em crise o modo habitual de vermos o mundo, de vermos a nossa relação com Deus, de vermos aquilo que Deus nos pede. A parábola é uma linguagem de choque precisamente para criar em nós uma espécie de sismo, uma espécie de estremecimento, de abalo, que nos retire a excessiva confiança, a autossuficiência do nosso olhar, e nos coloque a apreender, nos coloque como discípulos da lógica do Reino de Deus, que tantas vezes é tão distante da nossa lógica quotidiana.

Nesta parábola Jesus começa de uma forma muito interessante. Jesus diz: “Dois homens subiram ao Templo para rezar.” Muitas vezes Jesus conta histórias de duas pessoas. Por exemplo, a história do Filho Pródigo é, no fundo, a história de dois irmãos. E assim por diante em muitas parábolas. Isso o que é que significa? Significa que Jesus quer explorar duas possibilidades, nós podemos ser uma coisa ou outra, e muitas vezes somos uma coisa e outra. “Dois homens subiram ao Templo para rezar”, e então aparece a distinção: ”um era fariseu e o outro era publicano.”

Quando nós subimos para rezar, quando nós vimos rezar, quando durante a nossa semana nós rezamos, mesmo sem querer, mesmo sem ter consciência disso, nós reproduzimos o nosso modo de ver, nós levamos para a oração aquilo que somos. E, muitas vezes, os preconceitos, os interditos, a cegueira do nosso modo habitual de viver é também o problema que afeta a nossa oração.

Este fariseu está no Templo cheio de à-vontades, como se dominasse completamente o espaço. É muito interessante o modo plástico como Jesus desenha a personagem do fariseu. O fariseu está de pé e fala e tem um longo discurso. Quer dizer, é alguém que está completamente no domínio daquela situação. Muitas vezes na nossa oração nós somos assim: nós chegamos, fazemos e vamos embora porque temos um à-vontade completo e já é quase o piloto-automático que nos leva a mandar em Deus como mandamos em tudo o resto na nossa vida. Falamos e dizemos. Este homem está um bocado assim. O fariseu faz uma oração de ação de graças e é uma oração centrada nele: “Senhor eu Te dou graças por mim. Por não ser como os outros que são ladrões, injustos, adúlteros e dou-Te graças por não ser como este publicano.”

A oração do fariseu é uma oração autorreferencial, tudo passa por ele. É uma oração de exclusão, os outros não entram, pelo contrário, ele tem a sua oração bem blindada. “Senhor, dou-Te graças por não ser nada como este mundo corrupto e perdido e danado e enganador. Eu sou o contrário disto tudo, dou-Te graças por poder excluir todos os demais da minha oração.” Depois, ele explica o que faz. E é, de facto, excecional o que ele faz: “Jejuo duas vezes por semana” – os fariseus piedosos faziam isso. E nós sabemos que não é fácil. Atenção, este homem, objetivamente, tem muitos méritos do ponto de vista da piedade religiosa. Jejuar duas vezes por semana não é nada fácil. Ele jejua duas vezes por semana e mais: paga o dízimo de todos os seus rendimentos. Nem a Lei o obrigava a fazer isso. Quer dizer, ele, na sua devoção, no seu zelo ia além da própria lei. A Lei mandava pagar o dízimo de um certo tipo de mercadorias. Ora, ele por zelo pagava o dízimo de tudo. Quer dizer, era uma pessoa que na prática de piedade, na prática religiosa era um cumpridor, era um fiel, e tinha até um cumprimento acima da média. Mas o problema é: todo esse zelo, toda essa devoção para que é que serve? Para que é que serve? No caso dele, servia para excluir os outros. Servia para dizer aquela célebre frase de Sartre: “O inferno são os outros.”, “Porque eu sou justo, eu salvo-me sozinho, eu dou-Te graças por estar aqui diante de Ti com as mãos limpas do contacto com toda esta miséria do mundo.”

Ao lado dele, está um homem, uma personagem que é o seu oposto. Enquanto o fariseu está de pé com grande eloquência, este homem está de rastos, nem se atreve a levantar a cabeça para o alto. Quer dizer, está numa atitude completamente diferente: não é aquele excesso de confiança, aquela autorreferencialidade. Mas é precisamente o contrário, este homem sente-se o último, sente-se o mais indigno, sente-se o mais pobre, sente-se o mais pequenino, sente-se completamente dependente da graça de Deus, da misericórdia de Deus. Se não fosse a misericórdia ele nem estava ali, não está ali por direito próprio, para afirmar aquilo a que tem direito, aquilo que ele comprou com o seu zelo. Ele está ali trazendo a sua ferida, a sua lacuna, a sua miséria, a sua fragilidade, a sua vulnerabilidade, aquilo que ele não consegue ser. Então, está de rastos por terra, bate no peito e diz apenas isto: “Senhor, tem piedade de mim que sou pecador.” É interessante que no grego tem o artigo, é “o amartólos”: “Senhor, tem piedade de mim que sou o pecador.” É claro que ele não é “o” pecador, é “um” pecador, mas ele sente-se “o” pecador. Isto é, sente-se o mais pecador dos Homens. Está ali apenas num ato de arrependimento, de contrição, de abertura, de humilhação, de humildade, de humildade perante Deus e perante os seus semelhantes.

No final, Jesus lança a bomba, a bomba àqueles que O escutavam. Jesus diz: “Quem é que pensais que saiu justificado do Templo?” E Jesus não tem dúvidas: o publicano é que saiu justificado. “Porque quem se humilha será exaltado.”

Queridos irmãos, é um desafio muito grande para nós a humildade. Nós ouvíamos na leitura do livro do Ben Sira uma imagem estupenda: “A oração do humilde atravessa as nuvens.” Isto é, a humildade coloca-nos numa verdadeira comunicação com Deus, connosco, com os irmãos. É tão importante a humildade. Os monges diziam: “Como o navio se constrói com pregos, um monge, um cristão constrói-se com humildade.” e que na vida de um cristão há três coisas muito importantes: a primeira é a humildade, a segunda é a humildade, a terceira é a humildade.

Certamente na vida de oração a humildade é fundamental. Porque a humildade descentra-nos, a humildade relativiza-nos. A humildade introduz um dinamismo crítico em relação àquilo que nós não vemos, ao egoísmo, à afirmação excessiva de nós próprios que muitas vezes acriticamente acabamos por impor aos outros. A humildade dá a medida certa da nossa vida. Por isso, os humildes têm um entendimento de Deus que é muito autêntico, que é muito genuíno, que é muito verdadeiro. Porque eles colocam tudo do lado de Deus, colocam tudo do lado da sua graça, do lado da sua misericórdia.
A parábola de Jesus é uma parábola de crise, é uma linguagem de crise porque também nos diz isto: não há direitos adquiridos em relação a Deus, não há direitos adquiridos. Eu não posso dizer: “Ah, eu faço isto, eu faço aquilo então eu posso contar com isto.” Não, não é assim, não é desse modo. Contando esta parábola, o que é que Jesus está a afirmar: está a afirmar a reversibilidade. Quer dizer, nós não podemos achar que é irreversível. Um dos traços mais escandalosos do ministério de Jesus foi precisamente esse. Quer dizer, as pessoas piedosas do tempo de Jesus achavam que um pecador era um pecador e ponto final – é um perdido, já não tem salvação possível. Eles eram as pessoas piedosas, eles estavam a esforçar-se, mas para os outros acabou, para eles não há salvação. E Jesus vai às fronteiras buscar, Jesus vai acolher, Jesus vai mostrar que não há irreversibilidade. Não há irreversibilidade para os pecadores nem há irreversibilidade para os justos.

Nós temos de ter um sentido crítico não apenas para com o pecado, mas também para com a crença, porque às vezes a nossa crença é uma máquina de reprodução do nosso próprio egoísmo. É um clube de gente exclusiva e que exclui os outros da sua vida, do seu coração e que de muitas maneiras vai dizendo: “O inferno são os outros”.

Ora, o que esta parábola de Jesus nos ensina é que é sempre o outro que me torna justo. Nós não somos justos contra os outros, nós somos justos abraçando, incluindo, perdoando, alargando o nosso olhar, colocando as coisas em Deus para que seja Deus e não sejamos nós a tomar a palavra final, a decisão derradeira.

Humildade, humildade, humildade. “Todo aquele que se exalta será humilhado e quem se humilha será exaltado.”

José Tolentino Mendonça
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“Quem se humilha será elevado”
Marcel Domergue

Só Deus é “justo”

Não é dito que o fariseu da parábola estivesse mentindo ou incorresse em algum engano, ao enumerar os seus atos de justiça. O mesmo pode ser dito do publicano, um coletor de impostos para Roma.

Tendo de levantar uma soma fixa, muitos publicanos não hesitavam em exigir mais, para proveito próprio. Mesmo se este publicano se abstivesse de tal prática, reconhecia-se, contudo, «pecador».

Como podemos imaginar possuir algum título pelo qual merecêssemos o amor de Deus, se Deus mesmo é quem está na origem de tudo o que, em nós, pode haver de bom? À primeira vista, o fariseu não se reconhece como pecador, pois agradece a Deus pelo bem que faz.

Considera-se, no entanto, autor deste bem, o que equivale a tomar o lugar de Deus, e se acha superior aos «outros homens», em particular, ao publicano. Faz o inventário da sua observância da Lei e de suas práticas de piedade.

Por isso a sua justiça torna-se injustiça; injustiça para com Deus. Tem alguma razão em agradecer, mas erra quando se compara com os outros: é como se acusasse Deus de criá-los piores que ele, fariseu.

Reconheçamos, nesta passagem, que o que somos é em parte resultado do meio em que nascemos e das circunstâncias nas quais vivemos. Resultado, portanto, deste universo que, tendo sido confiado ao homem, é obra do próprio homem.

O fariseu, então, deveria ter dito: «Eu não seria o que sou, nem como sou, se tivesse nascido em outro lugar.» O que, portanto, é um privilégio, mas ele atribui a si próprio o mérito.

O publicano

Eis aí um homem que não tem nada para agradar. Teve sorte, no fundo, porque a vida que leva o conduz a reconhecer que, se para ele houver «salvação», esta salvação vem de Deus.

Como se reconhece vazio, desprovido de qualquer valor, vai se juntar ao vazio inicial, que é o espaço no qual Deus pode criar. É pura aspiração a ser. Ora, o pecado é, com efeito, a recusa a ser imagem e semelhança de Deus: é a escolha, portanto, da inexistência.

Reconhecermo-nos pecadores não é algo que se adquira: é preciso já ter ocorrido uma grande «graça», uma revelação. Mas esta revelação só se torna operativa na medida em que aceitamos acolhê-la.

A partir, então, deste «nada» que somos, Deus põe no mundo um ser novo, «justificado», justo como Deus é «justo». O publicano da parábola não dá graças como o fariseu, porque não encontra em si mesmo nada de bom, e porque está consciente de não ter acolhido o dom de Si mesmo que Deus lhe fazia. Ei-lo, pois, no caminho da justiça.

Desconfiemos de nós mesmos, pois temos a tendência de nos explicar e justificar tudo o que fazemos. As verdadeiras razões podem muitas vezes se manter escondidas de nós, especialmente se não queremos vê-las.

Temos a tendência de viver sob o regime dos pretextos. Tomar consciência disto nos coloca na situação do publicano: entreguemos isto para Deus e sairemos justificados. Mas vamos entender bem: esta justificação exige de nós uma mudança de programa.

A parábola não diz nada a propósito do publicano, talvez porque a «conversão» é a consequência, não a causa, de uma justiça que vem somente de Deus.

Não julgar

O fariseu não muda: sequer pensa ter necessidade disto, posto que se considera justo. A frase importante está aqui: «Eu não sou como os outros homens». Não temos de duvidar da sua boa conduta, que, aliás, atribui a um dom de Deus, a quem dá graças.

Tudo parece perfeito. Exceto por um detalhe: ele se permite julgar os outros. E, ao fazer isto, ocupa o lugar de Deus, que é o único juiz. Lugar de Deus? Claro, de um falso Deus, porque o julgamento de Deus não é a condenação, mas a justificação, por meio do perdão.

Isto é o que se vai verificar a respeito do publicano. O fariseu exclui-se da semelhança com Deus e subtrai-se do Seu amor, porque se considera justo e despreza todos os outros, conforme diz o texto. Ora, Deus não despreza ninguém, mas assume para Si mesmo, em Cristo, os pecados dos homens.

Existem comportamentos que, por certo, não temos de aprovar, como estes que o fariseu enumera e a respeito dos quais o Decálogo se manifesta. Mas uma coisa é criticar os comportamentos e, outra, fazer um julgamento sobre quem os pratica.

O que sabemos nós da sua vida? Em que meio cresceram eles? Não sabemos o que faríamos se estivéssemos em seu lugar. Sem contar a tendência que temos, de esquecer facilmente os nossos comportamentos defeituosos ou de sempre encontrar desculpa para eles.

Não vamos introduzir em nosso mundo o julgamento, pois senão corremos o risco de sermos nós mesmos suas primeiras vítimas. Aquele a quem rebaixamos na Cruz foi elevado acima de tudo. Voltemos, então, os olhos para Este a quem trespassamos; e para todos os que trespassamos.

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A parábola que a liturgia deste domingo nos faz escutar é colocada por Lucas no capítulo 18, ainda em relação à oração. Quando rezar? Sempre e com intensidade, responde a parábola do juiz iníquo e da viúva insistente (cf. Lc 18,1-8), escutada no domingo passado.

Como rezar? Como o publicano, e não como o fariseu, responde a parábola deste domingo. Mas algo mais está em jogo nesse texto. Ou, melhor, Jesus trata, sim, de duas atitudes diferentes na oração, mas, na realidade, através delas, amplia o horizonte: ensina-nos que a oração revela algo que vai além de si mesma, diz respeito ao nosso modo de vida, à nossa relação com Deus, com nós mesmos e com os outros.

Tudo isso já está contido no incipit: “Jesus contou esta parábola para alguns que confiavam na sua própria justiça e desprezavam os outros”. O pecado desses homens religiosos não é a presunção de serem justos, mas sim o fato de colocarem fé-confiança em si mesmos e não em Deus. A sua observância das leis e a sua escrupulosa prática religiosa os convencem de que podem confiar em si mesmos, sem esperar mais nada de Deus.

Tal atitude tem como óbvia consequência o fato de considerar os outros como nada, de desprezá-los. Jesus sabe, precisamente porque também é uma pessoa religiosa e conhece bem os riscos da religião, que não basta ser filho de Abraão para ser um verdadeiro crente. O Batista já havia dito: “Não comecem a pensar: ‘Abraão é nosso pai’. Porque eu lhes digo: até destas pedras Deus pode fazer nascer filhos de Abraão” (Lc 3,8).

Jesus sabe que existem barreiras criadas pelos humanos que não o são para Deus. Jesus sabe que existem pessoas religiosas que, na realidade, são incrédulos, habitados pela idolatria, que ostentam a sua fé, mas, depois, não realizam a vontade de Deus…

Eis, então, o relato da parábola: “Dois homens subiram ao Templo para rezar: um era fariseu, o outro, cobrador de impostos”. O templo é o lugar onde se adora o Deus vivo, o lugar do encontro com ele, através do culto estabelecido pela Torá. Ambos estão no espaço reservado aos filhos de Israel, na frente do Santo, reservado aos sacerdotes. Ambos invocam o Deus de Abraão, de Isaac e de Jacó, o Deus que se revelou como Senhor a Moisés, o Deus que estabeleceu sua morada no templo de Jerusalém. Mas as semelhanças terminam aí.

Um deles é um militante do movimento dos fariseus, o outro, um cobrador de impostos, alguém que exerce um ofício desprezado, pertencente a uma categoria de corruptos. Além disso, o cobrador de impostos é chamado de “publicano” por ser “publicamente pecador”, “corrupto manifesto”, por isso, amaldiçoado por Deus e pelos homens.

O fariseu, considerando-se em conformidade com as expectativas de Deus, está de pé, na posição habitual do orante judeu, e faz em seu coração uma oração que deveria ser um agradecimento a Deus. Mas, na realidade, ele está concentrado em si mesmo e, enquanto se orgulha dos seus méritos, se autocompraz, faz a comparação entre si e os outros, julgando-os. Não há nenhuma dúvida nele, mas sim o fato de estar de pé, certo de que está diante de Deus, de cabeça erguida, alheio ao fato de que só pode estar de pé por graça, por ter sido feito filho de Deus.

O seu monólogo declara distância dos outros homens, mas também distância de Deus, não conhecimento dele, do qual espera apenas um “amém” às suas palavras. Agostinho anota com firmeza: “Ele subiu para rezar; mas não quis rezar a Deus, mas sim louvar a si mesmo”. É evidente que em tal oração toda a relação com Deus é pervertida: o chamado à fé é um privilégio, a observância da Lei é uma garantia, o fato de estar em uma condição moral reta é um pretexto para se sentir superior aos outros.

Mas preste atenção: o que Jesus estigmatiza no fariseu não é o fato de ele fazer obras boas, mas o fato de que ele, na sua confiança em si mesmo, não espera nada de Deus. O problema é que ele se sente saudável e não precisa de um médico, sente-se justo e não precisa da santidade de Deus (cf. Lc 5,31-32): esqueceu que a Escritura afirma que o justo peca sete vezes por dia (cf. Pr 24,16), isto é, infinitas vezes!

Sim, quantos, sendo observantes e, portanto, justos, confiam em si mesmos, agradecem a Deus pelo que são e não acham que precisam pedir misericórdia a Deus, que precisam mudar algo na própria vida, mas são arrastados pela satisfação própria a desprezar os outros! Por isso, o fariseu, no seu agradecimento, enumera os pecados alheios, dos quais se sente isento: “São ladrões, desonestos, adúlteros”, para não falar do publicano que está com ele no templo…

Mas eis, diante dessa oração, a do pecador público. No começo do evangelho, Jesus havia chamado um publicano, Levi, para ser seu discípulo, e ele havia se dirigido a um banquete na sua casa, escandalizando escribas e fariseus (cf. Lc 5,27-32); no fim, pouco antes da sua entrada em Jerusalém, seria outro publicano, Zaqueu, que acolheria Jesus na sua casa, provocando ainda a reprovação dos homens religiosos (cf. Lc 19,1-10).

Desse modo, o anúncio do Batista segundo o qual “até destas pedras Deus pode fazer nascer filhos de Abraão” (Lc 3,8) torna-se evento em Jesus; não é quem diz que tem Abraão por pai que é seu filho (cf. ibid.), mas sim alguém como Zaqueu, publicano, que é declarado por Jesus como “filho de Abraão”, alcançado na própria casa pela salvação (cf. Lc 19,9).

Mas por que Jesus escolhia preferencialmente a companhia dos pecadores públicos, a ponto de dizer aos homens religiosos: “Os publicanos e as prostitutas vão entrar antes de vocês no reino de Deus” (Mt 21,31)? Não para surpreender ou escandalizar, mas sim para mostrar, paradoxalmente, que essas pessoas marginalizadas e condenadas são o sinal manifesto da condição de todo ser humano.

Todos somos pecadores – e pecamos, sempre que possível, de modo oculto! –, mas Jesus havia entendido uma coisa simples: os pecadores públicos estão expostos à desaprovação alheia e, por isso, são mais facilmente induzidos ao desejo de mudar a sua condição; isto é, eles podem viver a humildade como fruto das humilhações sofridas e, consequentemente, podem ter em si mesmos aquele “coração contrito e esmagado” (Sl 51,19) capaz de levá-los a mudar de vida.

O publicano é um homem não garantido pelo que faz; ao contrário, os seus pecados manifestos o tornam objeto de desprezo por todos. Ele sobe ao templo na consciência, sempre renovada por causa do julgamento alheio, de ser um pecador, mendicante do perdão de Deus. Por isso, Lucas descreve com precisão o seu comportamento, oposto ao do fariseu. Ele “ficou à distância”, não ousa se aproximar do Santo dos Santos, onde mora a presença de Deus; “nem se atrevia a levantar os olhos para o céu”, mas os mantém abaixados, envergonhando-se da própria condição; “batia no peito”, gesto típico de quem quer manifestar o seu arrependimento, como as multidões diante do “espetáculo” (Lc 23,48) da morte em cruz de Jesus.

As suas palavras são muito breves: “Meu Deus, tem piedade de mim que sou pecador”. É a invocação que retorna várias vezes nos Salmos (cf. Sl 25,11; 51,13 etc.). É pedir a Deus que continue sempre tendo muita piedade de nós, pecadores: como precisamos dela! É “a oração do humilde que penetra as nuvens” (Eclo 35,17), que não desperdiça palavras, mas que vive da relação com Deus, da relação consigo mesmo, da relação com os outros: pede perdão a Deus, confessa o próprio pecado e a solidariedade com os outros homens e mulheres.

O publicano se apresenta a Deus sem máscaras, os seus pecados manifestos o tornam objeto de escárnio: não tem nada para se vangloriar, mas sabe que só pode implorar piedade do Deus três vezes Santo. Ele sente o mesmo sentimento de Pedro, perdoado desde o momento da sua vocação, quando, diante da santidade de Jesus, grita: “Senhor, afasta-te de mim, porque sou pecador” (Lc 5,8; cf. Is 6,5).

A humildade desse homem não consiste em fazer um esforço para se humilhar: a sua posição moral é exatamente a que ele confessa e da qual é humilhado! Não tem nada a reivindicar, por isso conta com Deus, não consigo mesmo. E isso também vale para nós: o nosso nada é o espaço livre em que Deus pode agir, é o vazio aberto à sua ação; naqueles que são muito “cheios de si”, Deus é impossibilitado de agir…

E note-se: Jesus não elogia a vida do publicano, assim como não condena as ações justas do fariseu, mas a sua condenação vai ao modo pelo qual o fariseu olha para as suas ações e, através delas, ao próprio Deus.

Terminada a parábola, eis o julgamento de Jesus: “Eu vos digo: este último voltou para casa justificado (por Deus), o outro não. Pois quem se eleva será humilhado, e quem se humilha será elevado”. Esta última frase proverbial, já presente no término da parábola sobre a escolha dos lugares à mesa pelos convidados em um banquete (cf. Lc 14,11), ecoa as palavras do Magnificat: “O Senhor eleva os humildes” (Lc 1,52).

Mas como entender essa elevação e esse abaixamento? E, acima de tudo, como entender a humildade, virtude ambígua e suspeita? A humildade não é falsa modéstia, não equivale a um “eu mínimo”: não é quem se faz orgulhosamente humilde que é elevado por Deus, porque isso equivaleria a replicar a atitude do fariseu, seria orgulho mascarado por falsa humildade.

Não, é elevado por Deus quem reconhece o próprio pecado, que, aderindo à própria realidade, reconhece o próprio pecado, acolhe as humilhações dos outros como remédio salutar e, sofrendo tudo isso, persevera no reconhecimento da graça e da compaixão de Deus, ou seja, na confiança em Deus, contando com a sua misericórdia que pode transfigurar a nossa fraqueza.

Através da figura do publicano, Jesus nos exorta a nos humilharmos no sentido de nos deixar acolher e perdoar por Deus, que, com a sua força, pode nos cuidar e nos curar; a não perdermos tempo olhando para fora de nós, perscrutando os outros com olho malvado e espiando os seus pecados; a aceitarmos reconhecer a nossa condição de pessoas que “não fazem o bem que querem, mas o mal que não querem” (cf. Rm 7,19).

O publicano não construiu nem se orgulhou da sua justiça diante de Deus e dos outros, mas deixou a Deus a liberdade de julgar; confiou-se a Deus, invocando a sua misericórdia como único dom de que verdadeiramente precisava. Com uma oração tão breve e simples, ele entrou em comunhão com Deus sem se separar dos outros e, agora, perdoado, retorna à vida cotidiana na companhia dos homens.

A palavra conclusiva de Jesus, solene e autorizadamente introduzida pelo “Eu vos digo”, faz de um justo um pecador, e de um pecador um justo. O julgamento de Deus, narrado por Jesus, subverte os julgamentos humanos: quem se acreditava distante e perdido é acolhido e salvo, enquanto quem se acreditava aprovado, ao lado de Deus, é humilhado e distanciado.

Isso pode parecer escandaloso, pode parecer uma pedra de tropeço na vida de fé para os homens religiosos, mas é uma boa notícia, é Evangelho para quem se reconhece pecador e necessitado da misericórdia de Deus como do ar que respira.

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O Evangelho da Liturgia de hoje apresenta-nos uma parábola que tem dois protagonistas, um fariseu e um publicano (cf. Lc 18, 9-14), ou seja, um homem religioso e um pecador confesso. Ambos sobem ao templo para rezar, mas só o publicano se eleva verdadeiramente a Deus, porque humildemente desce à verdade de si mesmo e se apresenta como é, sem máscaras, com a sua pobreza. Poderíamos então dizer que a parábola se situa entre dois movimentos, expressos por dois verbos: subir descer.

O primeiro movimento é subir. Na verdade, o texto começa dizendo: «Dois homens subiram ao templo para rezar» (v. 10). Este aspeto recorda muitos episódios da Bíblia, nos quais para encontrar o Senhor se sobe à montanha da sua presença: Abraão sobe a montanha para oferecer o sacrifício; Moisés sobe ao Sinai para receber os mandamentos; Jesus sobe à montanha, onde é transfigurado. Portanto, subir exprime a necessidade do coração de se desligar de uma vida monótona para ir ao encontro do Senhor; de se erguer das planícies do nosso ego para ascender até Deus – livrar-se do próprio eu; de recolher o que vivemos no vale para o levar perante o Senhor. Isto é “subir”, e quando rezamos, ascendemos.

Mas para vivermos o encontro com Ele e sermos transformados pela oração, para nos elevarmos a Deus, precisamos do segundo movimento: descer. Porquê? O que significa isto? Para ascender até Ele devemos descer dentro de nós: cultivar a sinceridade e a humildade de coração, que nos dão um olhar honesto sobre as nossas fragilidades e as nossas pobrezas interiores. Com efeito, na humildade tornamo-nos capazes de levar a Deus, sem fingimento, o que realmente somos, as limitações e feridas, os pecados, as misérias que pesam sobre o nosso coração, e de invocar a sua misericórdia para que nos cure, nos sare, nos levante. É Ele quem nos ergue, não nós. Quanto mais descermos com humildade, mais Deus nos elevará.

De facto, o publicano na parábola pára humildemente à distância (cf. v. 13) – não se aproxima, envergonha-se -, pede perdão, e o Senhor eleva-o. Ao contrário, o fariseu exalta-se, seguro de si, convencido de que está bem: ali parado, começa a falar apenas de si mesmo ao Senhor, elogiando-se, enumerando todas as boas obras religiosas que pratica, e despreza os outros: “Não sou como aquele ali…”. Porque a soberba espiritual isso faz – “Mas padre, por que nos fala de soberba espiritual?”. Porque todos nós corremos o risco de cair nisto. Ela leva-nos a pensar que somos bons e a julgar os outros. Esta é a soberba espiritual: “Estou bem, sou melhor que os outros: isto é a tal coisa, aquele é a outra…”. E assim, sem nos darmos conta, adoramos o nosso eu e cancelamos o nosso Deus. É rodar em volta de si mesmo. É a oração sem humildade.

Irmãos, irmãs, o fariseu e o publicano dizem-nos respeito de perto. Pensando neles, olhemos para nós mesmos: verifiquemos se em nós, como no fariseu, existe «a íntima presunção de ser justo» (v. 9) que nos leva a desprezar os outros. Acontece, por exemplo, quando procuramos elogios e enumeramos sempre os nossos méritos e boas obras, quando nos preocupamos em aparecer em vez de ser, quando nos deixamos apanhar pelo narcisismo e pelo exibicionismo. Vigiemos sobre o narcisismo e o exibicionismo, fundados na vanglória, que também nos leva a nós cristãos, nós sacerdotes, nós bispos a ter sempre uma palavra nos lábios, qual palavra? “Eu”: “eu fiz isto, eu escrevi aquilo, eu disse, eu compreendi-o antes de vós”, e assim por diante. Onde há muito eu, há pouco Deus. Na minha terra estas pessoas são chamadas “eu-comigo para-mim só-eu”, este é o nome dessas pessoas. E uma vez falava-se de um sacerdote que era assim, centrado em si mesmo, e as pessoas brincavam, dizendo: “Ele quando faz a incensação, fá-la em volta de si, incensa-se”. Assim, faz com que caias até no ridículo.

Peçamos a intercessão de Maria Santíssima, a humilde serva do Senhor, imagem viva do que o Senhor gosta de realizar, derrubando os poderosos dos tronos e elevando os humildes (cf. Lc 1, 52).

Angelus, 23/10/2022