23° Domingo do Tempo Comum (ciclo C)
Lucas 14,25-33


Lucas 14,25-33

Referências bíblicas

  • Primeira leitura: Sb 9,13-18
  • Segunda leitura: Fm 9b-10.12-17
  • Evangelho: Lc 14,25-33

Naquele tempo, seguia Jesus uma grande multidão. Jesus voltou-Se e disse-lhes: «Se alguém vem ter comigo, e não Me preferir ao pai, à mãe, à esposa, aos filhos, aos irmãos, às irmãs e até à própria vida, não pode ser meu discípulo. Quem não toma a sua cruz para Me seguir, não pode ser meu discípulo. Quem de vós, desejando construir uma torre, não se senta primeiro a calcular a despesa, para ver se tem com que terminá-la? Não suceda que, depois de assentar os alicerces, se mostre incapaz de a concluir, e todos os que olharem comecem a fazer troça, dizendo: ‘Esse homem começou a edificar, mas não foi capaz de concluir’. E qual é o rei que parte para a guerra contra outro rei e não se senta primeiro a considerar se é capaz de se opor, com dez mil soldados, àquele que vem contra ele com vinte mil? Aliás, enquanto o outro ainda está longe, manda-lhe uma delegação a pedir as condições de paz. Assim, quem de entre vós não renunciar a todos os seus bens, não pode ser meu discípulo».


Seguir Jesus… Assumir riscos calculados
Raymond Gravel

Há muitas semanas nós nos encontramos a caminho para Jerusalém, e, há três semanas, no caminho, o Jesus do Evangelho de Lucas dá conselhos sobre a maneira de viver na Igreja: estar aberto a todos, acolher os pobres e os necessitados e estar pronto para rupturas, para escolhas dolorosas, para carregar a sua cruz! No fundo, o Evangelho nos coloca a seguinte questão: como fazer caminho com Jesus? Como querer ser seu discípulo sem preferi-lo a tudo, inclusive mais que à sua própria vida? É uma escolha cheia de consequências e de compromissos; é uma escolha crucial e, antes de escolher, precisamos sentar e calcular… De acordo com Lucas, quais são as condições para seguir o Jesus do Evangelho? Há três:

1. Um amor total

Para seguir Jesus, é preciso estar animado por um amor superior a todas as afeições familiares ou quaisquer outras: “Se alguém vem a mim e não dá preferência mais a mim que ao seu pai, à sua mãe, à mulher, aos filhos, aos irmãos, às irmãs, e até mesmo à sua própria vida, esse não pode ser meu discípulo” (Lc 14,26). Enquanto Mateus se contenta em escrever: “Quem ama seu pai ou sua mãe mais que a mim não é digno de mim” (Mt 10,37), Lucas utiliza o verbo grego misein, que é traduzido por odiar. O que isto quer dizer? Isto quer dizer que para seguir Jesus é preciso amar verdadeiramente, e isso de uma maneira livre e total. O amor que sentimos pelos parentes, pelos outros e por nós mesmos nunca deve nos impedir de nos conduzir ao Cristo, porque os nossos próximos, os outros e nós mesmos somos imagens do Cristo e mesmo o próprio Cristo.

Mas, nesse caso, por que Lucas utiliza o verbo odiar, traduzido em nossas Bíblias por preferir? Simplesmente para nos recordar a radicalidade e a urgência do nosso compromisso de amar totalmente, livremente e gratuitamente. Recordemos os três graus do Amor, segundo Santo Agostinho: 1) Amar ser amado: isso diz respeito a todos… Quem não gosta de ser amado? 2) Amar amar: é generoso e virtuoso, mas isso também é ser egoísta; ao querer amar os outros isso nos faz bem, é gratificante e podemos fazer isso exclusivamente por nós mesmos. 3) Amar (simplesmente): gratuitamente, não para se comprazer, mas amar sem esperar nada em troca. É o Amor total, o Amor do Cristo da Páscoa.

2. Carregar sua cruz

Para seguir Jesus é preciso carregar a sua cruz, isto é, renunciar à sua própria vida esperando, às vezes, o pior. Novamente, é um compromisso radical que pode nos levar à rejeição, à condenação e à exclusão, como Jesus em sua ação e sua revolução (sua luta por justiça e liberdade). Ser discípulo de Jesus, comprometer-se a segui-lo, não é agir de maneira politicaly correct, para não desagradar as autoridades e determinadas pessoas. Comprometer-se a seguir Jesus é trabalhar pela justiça e pela liberdade, é partilhar com os mais necessitados, é recuperar a dignidade daquelas e daqueles que a perderam, por causa da sociedade ou da Igreja. Isso requer muita coragem, renúncia e determinação… E é por isso que, antes de fazer essa escolha, antes de assumir tal compromisso, é preciso sentar para calcular se somos capazes de construir uma torre ou apenas assentar os fundamentos (Lc 14,28-30) ou, saindo para guerrear, se temos condições de vencer o adversário (Lc 14,31-32). Uma coisa é certa: não devemos nos esconder atrás dos medos ou das incapacidades; devemos assumir riscos calculados…

3. Renunciar a todos os bens

Para seguir Jesus é preciso ser livre em relação a tudo o que possuímos. Renunciar a todos os bens não quer dizer não ter nada, mas que aquilo que possuímos não nos deve impedir de nos comprometer livremente com o seguimento de Jesus. O teólogo francês Marcel Metzger escreveu em 1992: “No Evangelho deste domingo, não se trata propriamente de renúncias e de medos, porque Jesus se dirige a nós de maneira categórica e radical: ele nos pede para preferi-lo a qualquer outra pessoa e ainda de renunciar a todos os nossos bens, caso quisermos ser seus discípulos. Tais renúncias podem nos parecer muito grandes, até mesmo impossíveis. E, no entanto, se nós não tomarmos a iniciativa espontaneamente e de bom grado, a existência se encarregará disso, no nosso lugar, porque à medida que avançamos na idade, nós nos tornamos progressivamente despojados, senão de riquezas, mas ao menos de saúde, dos parentes, e um dia, da vida. Podemos protestar, nos revoltar, mas nada podemos fazer. Podemos também, ao contrário, fazer desse despojamento irreversível uma caminhada para o Reino, colocar a nossa mão na mão de Jesus, esse companheiro fiel e seguro do qual nada pode nos privar, nem separar (Rm 8,35)”.

Podemos pensar que é impossível nos tornar discípulos de Jesus, podemos pensar que as condições para segui-lo são irrealistas e mesmo utópicas; e, no entanto, já no livro da Sabedoria, que temos na primeira leitura, esse livro escrito 50 anos antes da era cristã, cujo autor, um judeu de Alexandria, influenciado pelo pensamento grego, onde há dualidade entre corpo e alma, nos diz que o homem em sua materialidade é reduzido à impotência; seus sentidos limitam sua percepção ao horizonte terrestre e a Sabedoria que se encontra em Deus está fora do seu alcance: “porque o corpo corruptível torna pesada a alma e a morada terrena oprime a mente que pensa em tantas coisas. Mal podemos conhecer o que há na terra, e a muito custo compreendemos o que está ao alcance de nossas mãos; quem, portanto, rastreará o que há nos céus?” (Sb 9,15-16). Por outro lado, o Sábio reconhece que Deus mesmo nos deu sua Sabedoria, que é o Espírito Santo, e que nós somos mais que materiais, somos também espirituais; assim, somos salvos e capazes de alcançar a Deus: “Só assim se tornaram retos os caminhos dos que estão sobre a terra, os homens aprenderam o que te agrada e, pela Sabedoria, foram salvos” (Sb 9,18).

Nosso compromisso cristão, hoje, se ele é verdadeiro e autêntico, poderia transformar o nosso mundo, como foi capaz de transformar o mundo ou a sociedade no começo do cristianismo. Na segunda leitura de hoje, temos um dos escritos mais curtos do Novo Testamento, onde Paulo, na sua prisão, acolheu um escravo, Onésimo, que fugiu da casa de seu senhor, Filemon. No contato com Paulo, esse escravo pagão se converteu; ele foi batizado por Paulo e eis que Paulo o reenvia a Filemon, seu senhor, dizendo-lhe para acolhê-lo não mais como escravo, mas como um irmão querido. Imaginem a situação real da época em que o escravo era totalmente desprezado. No tempo de Aristóteles, colocava-se a seguinte questão: “Qual é a diferença entre um escravo e um utensílio? A única diferença é que o escravo se move. O escravo é um instrumento vivo”. Além disso, quando um escravo fugia ou roubava seu senhor, o senhor tinha o direito de vida ou de morte sobre ele. É, pois, uma revolução que o pensamento cristão impõe à sociedade da época: “Se ele te foi retirado por algum tempo, talvez seja para que o tenhas de volta para sempre, já não como escravo, mas, muito mais do que isso, como um irmão querido, muitíssimo querido para mim quanto mais ele o for para ti, tanto como pessoa humana quanto como irmão no Senhor” (Fm 15-16).

Imaginem a grande revolução trazida por Jesus: sempre no sentido da justiça, da igualdade, da dignidade e da liberdade! Hoje, 2013, o que Paulo pediria ao seu amigo Filemon para melhor seguir o Jesus do Evangelho? Ele lhe pediria, sem dúvida, para acolher o drogado, a prostituta, o homossexual, a divorciada, como um irmão, uma irmã, porque em Cristo temos todos e todas a mesma dignidade e somos todas e todos irmãos e irmãs.

Eu termino com esta bela oração do francês Michel Hubaut, que se intitula “Sentar para ousar arriscar”: “Senhor Jesus, para revelar o mistério do Reino de Deus, tu assumiste muitos riscos! Tu arriscaste a eternidade no tempo, tu arriscaste o invisível num rosto de homem, tu arriscaste o divino num corpo humano. Tu arriscaste a Palavra na fragilidade das nossas palavras, tu arriscaste a Bondade de Deus na banalidade dos gestos cotidianos. Tu inclusive te arriscaste a ser mal interpretado e desfigurado. Senhor, desde a tua Encarnação, como te seguir sem assumir riscos? Dá-me o gosto pelo risco e a coragem de tomá-lo com toda a lucidez. Dá-me a coragem de arriscar o meu coração, minha inteligência e minha razão, arriscar meus bens, meu futuro e minha reputação, arriscar a hostilidade, a indiferença e inclusive a cruz. Mas, tantos riscos, tu o compreendes bem, pedem reflexão, tantos riscos merecem que eu tome o tempo para me sentar para acolher, no silêncio da oração, teu Espírito, fonte e força das minhas escolhas, para verificar os fundamentos! Concede-me a graça de construir a minha vida sobre a Rocha da tua Palavra, de permanecer na tua Presença, de começar e terminar a obra da minha vida Contigo”.

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A indispensável sabedoria
Marcel Domergue

Escolher o Cristo é escolher amar

Viver é abrir-se ao novo, apoiando-se no passado; um novo que pode ser desconcertante e também exigente. Quando, no evangelho de hoje, ouvimos Jesus nos convidar a preferi-lo a todos os membros de nossa família, lembramos Gênesis 2,24: «Deixará o homem seu pai e sua mãe e se unirá à sua mulher, e os dois se tornarão uma só carne.» Fazendo a transposição, veremos que esta fórmula descreve a mesma realidade deste evangelho: «O ser humano, homem ou mulher, deixará seu pai e sua mãe e se unirá ao Cristo, e os dois se tornarão uma só carne.» Em Efésios 5,21-33, Paulo põe o amor entre o homem e a mulher em paralelo com a união de Cristo com o seu corpo que é a Igreja (todos nós reunidos). Deixar tudo para tornar-se um só com Cristo (o evangelho diz «segui-lo») é apresentado no Novo Testamento como análogo ao encontro nupcial. Não se trata de simples metáfora: a união dos esposos é a imagem, o «sacramento», da nossa união com Deus. Mas o que significa preferir Cristo a tudo mais que não seja ele, mesmo em se tratando de nossos entes mais próximos? Creio que Jesus nos quer dizer que temos de preferir o amor à posse. O amor apenas sabe dar, enquanto outras formas de união sabem somente tomar. Se bem que seguir o Cristo é a melhor maneira de amarmos pai, mãe, mulher, filhos etc.…

No caminho para Jerusalém

O que acabamos de dizer exige uma explicação suplementar. Lucas situa estas palavras de Jesus no contexto da sua caminhada para Jerusalém, para a cruz. Ora, todo o relato que segue o versículo 51 do capítulo 9, onde vemos Jesus pôr-se a caminho para «a cidade que mata os profetas», está imerso numa atmosfera de aproximação da morte. Por isso Jesus fala em não preferirmos nem mesmo à nossa própria vida, mas a ele. Pois, segui-lo de fato significa comportar-se como ele se comportou, justamente ele que, em Jerusalém, deu preferência a todos nós, em detrimento de sua própria vida. A reciprocidade, portanto, se impõe. Daí resulta que, só podendo nos tornar imagem e semelhança de Deus fazendo-nos imagem e semelhança de Cristo, é a nossa própria criação que está em jogo. Só podemos existir no amor que nos faz ser e que deve se tornar a nossa própria substância. Estamos, então, nós também, no caminho para Jerusalém. Nem todos, com certeza, destinados a uma morte violenta, mas, todos, sofremos doenças, acidentes, envelhecimento… Cabe a nós acolher tudo isso como um dom da nossa vida e, por aí, unirmo-nos ao Cristo. Devemos compreender, contudo, que o sofrimento em si mesmo não tem valor nenhum, e temos razão de combatê-lo, tanto em nós como nos outros. O que tem valor é o dom, e este dom passa por tudo o que a vida nos traz, quer se trate de alegrias ou de penas. Encontrar e tornar a encontrar Deus em todas as coisas.

Escolher viver

Jesus nunca se impõe. Os «se queres» ou «quem quer», por exemplo, «ser meu discípulo», são marcas do relato evangélico. Em Deuteronômio 30,15 e 19 já líamos: «Eis que hoje estou colocando diante de ti a vida e a felicidade, a morte e a infelicidade (…) Escolhe, pois, a vida para que vivas…» Ora, em que consiste escolher a vida? O mesmo texto responde: amando a Deus, ou seja, amando e escolhendo o Amor. Ficamos sabendo mais tarde que amar a Deus só pode ser vivido de fato se amamos os outros (ver entre tantos outros lugares 1 João 4,20). Amar é, portanto, responder a um convite de Deus, não sob qualquer forma de coação.

Uma escolha

Devemos desconfiar disto que chamamos de amor. Uma ditadura exercida por sentimentos muito violentos significa muitas vezes somente um desejo de possuir, e não uma decisão de se entregar totalmente, para o melhor, mas também, eventualmente, para o pior. Este caráter de uma decisão livre é muito bem ilustrado pelas duas parábolas que enquadram este enunciado das condições necessárias ao seguimento de Jesus. Neste mesmo capítulo, no texto que precede este evangelho, a parábola dos convidados para as núpcias também sublinha o caráter nupcial da união com Deus (ver também em Mateus 22,1-14). Os convidados se esquivaram, porque escolheram outra prioridade em suas vidas. Logo após o convite para seguir Jesus, «carregando (cada um) a sua cruz», temos as parábolas do homem que quer construir uma torre e do rei que quer partir para a guerra. São parábolas que nos convidam a refletir bastante antes de nos decidirmos. Mas não devemos nos preocupar demais, se não temos toda a força que este empreendimento exige: Jesus, na cruz, veio nos buscar donde quer que estejamos, do mais baixo que possamos ter descido.

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Depois do almoço na casa de um dos chefes dos fariseus (cf. Lc 14,1-24), Jesus retoma o seu caminho para Jerusalém, seguido por uma multidão numerosa. A sua pregação tem sucesso, os ouvintes prontos para acompanhá-lo ao longo da estrada são muitos, mas Jesus, que quer discípulos ao seu lado, e não militantes, volta-se para trás para olhar aquela multidão no rosto e para lhe dirigir algumas palavras capazes de deixar as coisas claras e não permitir ilusões ou até mentiras. Palavras duras, que nos ferem e nos desagradam, porque nos pedem para combater contra nós mesmos, contra os nossos sentimentos naturais, e nos convidam a um desapego radical de nós mesmos.

De fato, Jesus adverte: “Se alguém vem a mim, isto é, quer estar comigo, mas não odeia seu pai e sua mãe, sua mulher e seus filhos, seus irmãos e suas irmãs e até sua própria vida, não pode ser meu discípulo”. Jesus contrasta o fato de estar com ele e amor familiar, filial, conjugal e fraterno, além do amor pela própria vida.

Por que tanta radicalidade? Simplesmente porque ele conhece o coração humano, conhece o poder dos laços de sangue, conhece a possibilidade de que a família seja uma jaula, uma prisão. A intenção das palavras de Jesus consiste na libertação, que ele quer trazer para cada homem e para cada mulher, de todas as presenças idólatras, de todos os laços que possam impedir a liberdade e a vida plena, entre os quais é possível incluir também laços e afetos de sangue e de família.

Quanto à paradoxal expressão “Se alguém não odeia…”, ela certamente tem um pano de fundo semítico, mas deve ser bem entendida. De fato, ela é traduzida corretamente assim: “Se alguém não me ama mais do que ama seu pai, sua mãe…”. Nos afetos, é uma questão de ordem. Amar o pai e a mãe é um mandamento da Torá (cf. Ex 20,12; Dt 5,16), e Jesus o confirma (cf. Mc 7,9-13; Mt 15,3-6), mas pode acontecer que esse amor impeça a adesão ao Senhor, a prática da sua vontade, o seguimento material de Jesus. Nesse caso, os laços com a família que retêm, que contradizem a adesão à boa notícia, devem até ser odiados! Para o Reino, Jesus convidou a abandonar os pais, os irmãos, as irmãs, os filhos, a casa e os campos (cf. Lc 18,29).

A história das vocações cristãs conhece bem a verificação de conflitos e de sofrimentos nas famílias, que às vezes se rebelam contra a vocação do filho ou da filha, e conhece bem também as vocações abortadas porque o laço com a família permaneceu, mesmo no seguimento: mais forte do que o laço com o Senhor que a vocação requer.

Certamente, hoje a mundanidade que também entrou na vida eclesial, religiosa e monástica banaliza as relações entre o chamado e a família, de modo que não se põe mais um “aut-aut” que indique uma renúncia, uma separação necessária para seguir o Senhor com coração unido. O resultado, então, é o de chamados que têm uma vida astênica, que são “atraídos aqui e ali” (cf. Lc 10,40), nunca verdadeiramente decididos a fazer um caminho assumido com todo o coração: chamados que, depois de um pouco de caminho atrás de Jesus, sentem a prepotente nostalgia da família e, portanto, abandonam a estrada empreendida. Míseras vocações! Na verdade, não podemos amar todos ao mesmo tempo e do mesmo modo, mas é apenas dando aos nossos amores uma ordem clara que sabemos onde está o nosso tesouro e, portanto, o nosso coração (cf. Lc 12,34).

Por outro lado, as dez palavras (cf. Ex 20,1-17; Dt 5,6-22) também requerem como prioritário o amor a Deus, e quando Jesus recorda a Torá ao jovem chamado, é significativo que ele retroceda do quarto para o último lugar o mandamento “Honra teu pai e tua mãe” (cf. Lc 18,20). Os levitas também deviam abandonar a família para serem assíduos ao Senhor, e a comunidade de Qumran exigia aos seus membros um celibato que também previa a separação da família para serem vigilantes, com um coração unificado, à espera do dia do Senhor (cf. 4QTestimonia 14-20, cf. Dt 33.8-11).

Sim, Jesus pede um ato que ele mesmo fez em relação à sua família (cf. Lc 8,19-21), pede uma ruptura que permita um amor diferente, estendido, universal, um amor no qual Deus tem o primado, e a família tem o seu lugar, mas sem o poder de ligar e de obstaculizar o cumprimento da dinâmica do Reino.

Ao mesmo tempo, gosto de lembrar que o nosso Deus, e, portanto, Cristo, não é totalitário: o amor que ele exige não exclui outros amores, como o conjugal ou o da amizade, mas estes devem ser vividos sabendo que o amor por Cristo é primário, hegemônico, e os outros amores não podem colocar obstáculos, atrasos, muito menos contradições ao amor pelo Senhor.

Esse regime dos afetos é duro, custa esforço, mas é “carregar a própria cruz”, isto é, carregar o instrumento de execução do próprio “eu” philautico, egoísta. Cada um tem uma cruz própria para carregar, ninguém está isento disso, mas não se deve fazer comparações. Jesus, de fato, sabe que aqueles que o seguem fielmente também estarão envolvidos na sua paixão e morte, quando ele carregar a cruz. É uma questão de aprender com Jesus, quando ele fala, age, mas também quando for condenado, torturado e morto na ignomínia da cruz. Ser discípulo de Jesus não é a experiência de um momento (cf. Mc 4,12-13; Mt 13,20-21), não é um provar para verificar, mas é a decisão de responder a um chamado, é um “amém”, que deve ser dito com ponderação, com discernimento, sem obedecer às emoções do momento.

Por isso, Jesus anuncia duas parábolas que soam como uma advertência, um aviso: ele não faz propaganda para as vocações, mas, ao contrário, dissuade… Teríamos muito a aprender com essa atitude de Jesus, sobretudo quando a escassez de vocações nos angustia e nos dá medo: este último é um mau conselheiro, que nos exorta a acolher a todos com muita superficialidade e a não reconhecer e comunicar as dificuldades objetivas do seguimento de Jesus.

Com a primeira parábola, Jesus adverte: “Qual de vós, querendo construir uma torre, não se senta primeiro e calcula os gastos, para ver se tem o suficiente para terminar”. Seguir Jesus – e preste-se atenção a uma leitura pouco inteligente dos relatos vocacionais do Evangelho! –requer não o fogo de um momento, nem o entusiasmo, nem só o “enamoramento”, mas também um tempo de calma, de silêncio, de exame de si mesmo. É a ação do discernimento, difícil, mas absolutamente necessária para perceber a voz do Senhor não fora de nós, não apenas nas eventuais palavras de um outro, mas também no nosso coração mais profundo, lá onde Deus nos fala pessoalmente.

Escutando o profundo, a própria intimidade, discernindo a palavra de Deus das outras palavras que nos habitam, olhando com realismo para aquilo que somos e para as nossas possibilidades, nós podemos chegar a uma escolha; talvez nos deixando ajudar por aqueles que estão na nossa frente na vida segundo o Espírito, mas sempre conscientes de que o amém só pode ser nosso, muito pessoal, e um amém para sempre, não temporário ou com prazo de validade!

Da mesma forma, a segunda parábola adverte que é preciso medir bem as próprias forças, para vencer aquele que é um combate espiritual sem trégua, até o final. Porque o seguimento de Jesus exige a capacidade de fazer guerra contra o inimigo, o diabo que nos tenta e gostaria de  nos fazer cair, levando-nos a abandonar o próprio seguimento.

Portanto, a pessoa chamada sabe: tendo escutado a palavra de convite, deve, acima de tudo, “ficar firme”, permanecer em solidão e em silêncio (cf. Lm 3,28) para discernir bem aquilo que escutou e o que o coração lhe diz; depois, deve se aconselhar (como diz literalmente o verbo bouleúomai); por fim, deve chegar à decisão muito pessoal, confiando apenas na graça do Senhor. Em suma, deve saber que a vida cristã é uma luta, uma batalha dura e cansativa contra as tentações do demônio: uma luta que deverá ser perseverança, coragem e invocação da fortaleza, essa virtude que é dom do Espírito Santo. À pessoa chamada, não cabe apenas iniciar, mas também levar a termo, com a ajuda da graça, que nunca é negada àqueles que a invocam e a buscam com coração sincero.

Jesus, depois, acrescenta uma palavra não presente no trecho litúrgico, mas conectada com o que o precede. Ele diz que, para uma história de vocação, ocorre aquilo que acontece com o sal: “O sal é bom, mas se perde a capacidade de salgar, de que serve? É jogado fora!” (cf. Lc 14,34-35). Do mesmo modo, uma vocação pode ser boa, mas na vida pode ser contradita, abandonada, e, então, aquela vida permanece como uma vida desperdiçada.

Dizia o meu pai espiritual: “Quando alguém pensa em aumentar o número de vocações na Igreja e impõe a vocação aos outros, não cria santos, mas apenas pessoas miseráveis!”.

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Pai, mãe, esposo, esposa, filhos, filhas, irmãos, irmãs; todo o ambiente natural, as nossas raízes, tudo o que temos nesta vida para nos situar, nos identificar e reconhecer; tudo o que nos traz, ou que pode nos trazer, tranqüilidade e segurança. Jesus mantém esta mesma linguagem com respeito às riquezas. Notemos os possessivos: “seu” pai, “sua” mãe, “sua” mulher… Podemos perguntar se Jesus não nos convida simplesmente a que renunciemos às nossas atitudes possessivas, ligadas justamente à nossa obsessão com uma segurança que se assenta, não no Amor que nos faz existir, mas sim naquilo que possuímos. Como diz Paulo em 1 Coríntios 7,29-31, trata-se de possuir como se não possuíssemos. No fundo, vamos encontrar a experiência dos pais de Jesus, em Lucas 2,29-35, quando Simeão os destituiu de alguma forma da posse de seu filho, para destiná-lo a ser “a luz das nações e a glória de Israel”. O cenário é o mesmo de Lucas 2,41-50, quando vemos Jesus lhes escapar para ir dedicar-se aos assuntos de seu Pai. O que não o impede, contudo, de voltar com eles para Nazaré, permanecendo-lhes submisso; em suma, sem pertencer a eles, leva, no entanto, com eles uma vida normal, numa relação verdadeira, mas despossuída. É inútil tentar adquirir tais atitudes por meio de esforços da vontade: há um caminho apenas para se chegar até aí: olhar para o Cristo e escolher segui-lo ou, mais exatamente: viver o que a vida nos traz e as privações, por vezes cruéis, que ela nos impõe, fazendo nossas as atitudes do Cristo.

Do amor para o amor; da vida para a vida

Preferir o Cristo a todos os nossos próximos ganha um sentido novo, de fato, quando se compreende que esta preferência consiste em fazer nossa a sua escolha: dar a sua vida “por seus amigos”, por estes que ele ama. Segundo um paradoxo que é freqüente nos evangelhos, renunciando ao que chamamos de “amor” é que alcançamos o amor autêntico. Nunca amamos tanto os que nos são próximos como quando colocamos o Cristo acima de tudo. Notemos bem, acima da nossa própria vida. Assim como alcançamos o verdadeiro amor aos nossos próximos renunciando a um amor possessivo, somos também convidados a nos libertar de certo modo de conceber a vida para alcançarmos a vida verdadeira, a que supera a morte. A mesma morte para a qual caminha o Cristo, “dando a sua vida”: é dando a própria vida que ela é salva. Somos, enfim, convocados a preferir o Cristo a tudo e a todos, para encontrá-lo e amá-lo em todos, a começar pelos nossos próximos. Nosso amor encontrará, então, a sua verdade, impregnando-se de respeito, deste “temor de Deus” de que falam as Escrituras. Caminhar em seguimento ao Cristo nos obriga a deixar as seguranças do que “já está aí”, do que é bem conhecido, que não nos reserva mais surpresas e que dominamos, este ambiente humano que acreditamos possuir,  mas que pode nos aprisionar. Abrindo-nos ao futuro do Cristo, libertamos também os nossos próximos para que também eles possam acolher Aquele que vem

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