20° Domingo do Tempo Comum (C)
Lucas  12,49-53


Vim trazer o fogo

FALSAS SEGURANÇAS
Marcel Domergue sj

Guerra e paz

Esta é uma das passagens mais desconcertantes do evangelho. Em outros lugares, Jesus diz para irmos primeiro reconciliar-nos com o nosso irmão, se alguma coisa ele tem contra nós, antes de, no altar, apresentarmos a nossa oferta (Mateus 5,23-24) ou para amar os nossos inimigos (Mateus 5,44).

Justamente antes da sua morte, diz aos discípulos que lhes deixa a sua paz, que lhes dá a sua paz (João 14,27). E não se acabaria mais de citar os textos todos que nos convidam à reconciliação, à renúncia da vingança e à unidade. Eis que, agora, diz que veio trazer o fogo, a divisão, a hostilidade ao seio mesmo das famílias! Penso ser preciso considerar estas palavras de Jesus como uma previsão e não como uma intenção da parte dele.

Falava do que irá de fato acontecer e não do que veio trazer. Podemos constatar, com efeito, que todos os que buscam trazer a paz e promover o amor desencadeiam hostilidade contra si mesmos. Lembro-me de como se censurava um homem empenhado em apaziguar dois de seus companheiros de estrada que estavam prestes a brigar. Ele era um padre.

Logo os dois antagonistas se olharam, pondo-se imediatamente de acordo, para dizer que sabiam muito bem o que ele iria lhes dizer, passar «uma lição de moral», e que nada tinham a fazer com as suas pieguices. Que fique bem entendido, este padre não estava falando de Deus, mas apenas de razão e tolerância. É necessário nos rendermos à evidência: pregar o amor pode provocar o ódio entre aqueles que escolheram odiar.

Esperando o batismo

Bem no meio deste discurso, em que Jesus nos fala das divisões que se haverão de produzir com respeito a ele, encontramos uma espécie de incisão, ou de parêntesis que, à primeira vista, está fora deste contexto: «Devo receber um batismo e como estou ansioso até que isso se cumpra!»

Por que, inesperadamente, esta alusão à cruz que está por vir? Notemos antes de tudo que esta junção de guerra e de cruz encontra-se em João 18,10-11: para defender Jesus, Simão Pedro tira a sua espada e corta a orelha do servo do Sumo Sacerdote. É a guerra, portanto. Quando, então, Jesus diz a Pedro: «Embainha a tua espada. Deixarei eu de beber o cálice que o Pai me deu?» O batismo, o cálice, todos eles são símbolos que falam da cruz.

Coincidem na cruz o paroxismo da violência e a vitória da paz. O paroxismo da violência, porque esta se exerce contra o único justo; este a quem só se pode odiar sem se ter razão alguma.Vitória da paz, porque o Cristo perdoa os que o conduzem à morte. Nenhuma violência divina, em resposta à violência humana; a violência é estancada, é desarmada.

No entanto, dum certo ponto de vista, a humanidade ainda está muito aquém da sua Páscoa. Temos de seguir o Cristo no caminho percorrido por ele, mas a hora da vitória da paz ainda está por vir. Enquanto esperamos, vivemos sob o regime dos irmãos inimigos, ou seja, da violência a ser incessantemente superada.

O lugar do combate

Esta passagem do evangelho pode ser compreendida de modo atravessado. Alguns poderiam usá-la para justificar o emprego da violência a fim de se defender ou promover «a religião». Está em moda atualmente dizer que as religiões provocam a violência. Podemos antes dizer que não é impossível que os homens assumam a religião como vetor de sua própria violência instintiva. Nesta mesma linha se poderia dizer que «liberdade, igualdade, fraternidade» são responsáveis pelas violências do Terror, na Revolução Francesa. Lembremos que, na Bíblia, não vemos jamais os Hebreus baterem-se por Deus.

Ao contrário, era Deus quem combatia por seu povo. No Novo Testamento, os discípulos que foram rejeitados em certa cidade recebem do Cristo a ordem de se contentarem com ir propor a paz – sim, a paz – em outras cidades. Nada de chamar o fogo do céu para incendiar as cidades que se recusaram recebê-los (Lucas 9,54). Temos de imitar Deus que faz cair a sua chuva e brilhar o seu sol tanto sobre os injustos como sobre os justos (Mateus 5,45).

Não temos de julgar, ainda menos, de condenar e, jamais, de superar os combates verbais, quando isto se faz necessário. Enfim, o fogo que o Cristo vem trazer para iluminar a terra é o fogo interior do Espírito (Mateus 3,11). O combate anunciado será antes de tudo o combate contra uma parte de nós mesmos. O combate da luz e das trevas de que falam as primeiras linhas do evangelho segundo São João.

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Sem fogo não é possível
José A. Pagola

Num estilo claramente profético, Jesus resume toda sua vida com umas palavras insólitas: “Eu vim para lançar fogo sobre a terra: e como gostaria que já estivesse aceso!”. De que está a falar Jesus? O caráter enigmático da sua linguagem leva os exegetas a procurar a resposta em diferentes direções. De qualquer caso, a imagem do “fogo” convida-nos a nos aproximarmos do Seu mistério de forma mais ardente e apaixonada.

O fogo que arde no seu interior é a paixão por Deus e a compaixão pelos que sofrem. Jamais poderá ser revelado esse amor insondável que anima toda sua vida. Seu mistério nunca ficará encerrado em fórmulas dogmáticas nem em livros de sábios. Ninguém escreverá um livro definitivo sobre ele. Jesus atrai e queima, perturba e purifica. Ninguém poderá segui-lo com o coração apagado ou com piedade entediada.

Sua palavra faz arder os corações. Oferece-se amistosamente aos mais excluídos, desperta a esperança nas prostitutas e confia nos pecadores mais desprezados, luta contra tudo o que faz mal ao ser humano. Combate os formalismos religiosos, os rigores desumanos e as interpretações estreitas da lei. Nada nem ninguém podem acorrentar a sua liberdade para fazer o bem. Nunca poderemos segui-Lo, vivendo na rotina religiosa ou no convencionalismo “do correto”.

Jesus inflama conflitos, não os apaga. Não veio trazer falsa tranquilidade, mas tensões, confrontos e divisões. Na verdade, introduz o conflito no nosso próprio coração. Não podemos defender-nos da sua chamada por detrás do escudo dos ritos religiosos ou das práticas sociais. Nenhuma religião nos protegerá do seu olhar. Nenhum agnosticismo nos libertará de seu desafio. Jesus está a chamar-nos para viver em verdade e amar sem egoísmo.

Seu fogo não se extinguiu após mergulhar nas águas profundas da morte. Ressuscitado para uma vida nova, seu Espírito continua a arder ao longo da história. Os discípulos de Emaús sentem arder nos seus corações quando ouvem suas palavras enquanto caminham junto a eles.

Onde é possível sentir hoje esse fogo de Jesus? Onde podemos experimentar a força de sua liberdade criadora? Quando ardem os nossos corações ao acolher seu evangelho? Onde se vive de forma apaixonada seguindo seus passos? Embora a fé cristã parecesse extinguir-se hoje entre nós, o fogo trazido por Jesus ao mundo continua a arder sob as cinzas. Não podemos deixar que se apague. Sem fogo no coração, não é possível seguir Jesus.

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Jesus está subindo a Jerusalém com os seus discípulos e as suas discípulas, e tem plena consciência de que a meta dessa viagem é a cidade santa que mata os profetas e os rejeita (cf. Lc 13,33-34), portanto, o lugar do seu êxodo deste mundo ao Pai (cf. Lc 9,31; Jo 13,1) por meio da morte na cruz.

Entre os seus ensinamentos e as suas palavras, Lucas testemunha algumas convicções de Jesus expressadas em voz alta: confissão e profecia! Acima de tudo, Jesus declara: “Eu vim para lançar fogo sobre a terra, e como gostaria que já estivesse aceso.”

Esta é a razão de sua “vinda” de Deus à terra: ele veio para lançar fogo! É evidente que aqui a linguagem de Jesus é parabólica, ele não fala do fogo devorador que queima e aterroriza, mas de outro fogo, de uma força divina que ele veio trazer entre os humanos e que ele deseja que se manifeste e atue. A experiência da presença e da ação de Deus é sentida por Jesus como um fogo que queima, ilumina e aquece, e ele deve recorrer várias vezes a essa linguagem simbólica.

No Evangelho apócrifo de Tomé, essa palavra é relatada quase da mesma forma: “Lancei o fogo sobre o mundo, e eis que o conservo até que ele se incendeie” (10). Outro ágraphon, uma palavra não escrita nos Evangelhos canônicos, mas lembrada por Orígenes, por Dídimo, o cego, e pelo próprio Evangelho de Tomé (82), pode ser aproximada a esse ditado: “Quem está perto de mim está perto do fogo; quem está longe de mim está longe do Reino.”

A partir desses vários testemunhos, compreendemos que Jesus era um homem devorado por um fogo, um homem passional, que a sua missão era espalhar como fogo a presença eficaz de Deus no mundo, que ele mesmo era fogo ardente, amor que queima como “a chama do Senhor” (Ct 8,6).

No Evangelho segundo Lucas, o fogo é acima de tudo um sinal, um símbolo do Espírito Santo, já anunciado por João Batista como força, presença divina na qual Aquele que vem mergulhará aqueles que se converterem, isto é, “batismo no Espírito Santo e no fogo” (cf. Lc 3,16); é aquele fogo que nos Atos dos Apóstolos desce como fogo vivo e ardente, presença ígnea do Ressuscitado sobre a Igreja nascente, reunida à sua espera (cf. At 2,1-11).

Jesus é um homem de desejo grande e profundo, um homem de paixão e aqui, de repente, confessa essa paixão que o habita. Aquele fogo do Espírito que ele trouxera do Pai para a terra, fogo de amor, deveria incendiar o mundo, arder no coração de cada ser humano: era isso que ele desejava fortemente! Ele desejava isso nos seus dias terrenos e o deseja ainda hoje, porque esse fogo que ele trouxe muitas vezes está encoberto pelas cinzas que a própria Igreja coloca sobre ele, impedindo-o de arder.

É assim, sabemos disto: basta ler toda a história da fé cristã para se dar conta de que o fogo do Evangelho se acende aqui e acolá, de vez em quando, em pessoas e comunidades que o fazem reaparecer sacudindo as brasas, mas depois, logo depois, é novamente encoberto pelas cinzas. Ilumina e aquece sempre por pouco tempo, é mantido vivo e conservado, mas raramente arde… Jesus, por sua vez, desejava que ele ardesse nos corações dos fiéis como ardia no coração dos dois discípulos no caminho de Emaús (cf. Lc 24,32), quando as Escrituras explicadas pelo Ressuscitado pegavam fogo; como ardia na Igreja nascida do Pentecostes.

Segue-se, depois, outro pensamento de Jesus estreitamente relacionado com o primeiro: “Devo receber um batismo, e como estou ansioso até que isto se cumpra”. Aqui está outro desejo de Jesus, desejo não de sofrimento, de dor, mas de cumprir a vontade do Pai e de dar a sua vida para que os outros vivam em plenitude!

É um anúncio da sua paixão e morte, quando ele será imerso na prova, no sofrimento e na morte de cruz. Esse evento o espera, e ele deve entrar na água do sofrimento e ser imerso nela como em um batismo. Não porque os sofrimentos tenham valor em si mesmos, mas porque, se ele continuar sendo fiel, obediente ao amor, à vontade do Pai que conhece apenas o amor, ele terá que pagar o preço por isso: rejeição, recusa por parte dos poderosos religiosos e políticos, por parte do próprio povo, porque Jesus é um “justo” – como proclama o centurião debaixo da cruz após a sua morte (cf. Lc 23,47) –, e, se o justo assim permanece, ele não só é um embaraço, mas também deve ser tirado de circulação (cf. Sb 2,10-20).

Estamos sempre no espaço da linguagem simbólica: o batismo para Jesus não é um rito, mas é um banho real de sangue e de morte. Ele certamente está angustiado diante dessa perspectiva, mas é uma ânsia para que isso se cumpra logo, que seja feito para sempre. Não que ele deseje a morte e o sofrimento, não há nenhuma vontade “dolorista” de sua parte, mas sim uma vontade de que se acelere o caminho rumo ao pleno cumprimento da vontade de Deus, que também é a sua vontade, e que a sua vida seja salvação para os outros.

Por fim, há um terceiro pensamento de Jesus, que se segue aos dois primeiros, um pensamento que diz respeito aos discípulos e, portanto, também a nós hoje. Qual achamos que é o resultado da vinda de Jesus, do aparecimento do “sinal do Filho do homem” (Mt 24,30), isto é, da cruz de Cristo, do Evangelho que se mostra como epifania na vida das pessoas? Achamos que tudo vai ser melhor? Eis o engano presente nos nossos corações, ainda que cheios de desejo e de paixão.

Confesso que, graças ao ensinamento recebido, sempre fui lúcido a esse respeito: mesmo durante o Vaticano II e logo depois, embora muito jovem, ousei me opor aos entusiasmos dos meus amigos, aliás, com mais autoridade do que eu, que olhavam para o Concílio como para uma nova fase, uma fase mais “bela” na vida da Igreja. Em vez disso, eu lhes lembrava que, no mundo, quanto mais o Evangelho emerge, quanto mais arde o fogo do Espírito, quanto mais evidente se torna o sinal do Filho do homem, pior fica! Porque a boa notícia desencadeia “as potências do ar” (Ef 2,2; cf. 6,12) e as da terra, que, diante da emergência do Evangelho, travam uma guerra mais desenfreada. É assim, é assim! Quanto mais a Igreja se reforma e se conforma a Cristo Senhor, menos quietude há na Igreja, pois surgem a divisão, a contraposição, a contradição…

É por isso que Jesus diz: “Vós pensais que eu vim trazer a paz sobre a terra? Pelo contrário, eu vos digo, vim trazer divisão.” Atenção, não que Jesus desejasse a divisão entre os humanos e na sua comunidade, não que ele amasse ver as contraposições à paz, mas ele sabia muito bem que essa é a necessitas, “o necessário” na ordem deste mundo.

Aparece um justo, e eis que todos se lançam contra ele; aparece uma possibilidade de paz, e aqueles que estão armados reagem; aparece Jesus, e, imediatamente, desde o seu nascimento, desencadeia-se o poder homicida. Enquanto os anjos em Belém anunciam “paz na terra aos homens que Deus ama” (Lc 2,14), o poderoso tirano de plantão, à época Herodes, faz um massacre de crianças inocentes e ignaras (cf. Mt 2,16-18).

São os falsos profetas que sempre dizem e cantam que “tudo está bem!” (cf. Jr 6,13-14; Ez 13,8; Mi 3,5), enquanto, em vez disso, devemos estar precavidos. Repito, quanto mais o Evangelho é vivido por homens e mulheres, mais aparecem a divisão e a contradição, até dentro da mesma família, da mesma comunidade. Até a manifestação do indizível: pai contra filho e filho contra pai, mãe contra filha e filha contra mãe…

Não é assim também hoje, especialmente nestes últimos anos, nas comunidades cristãs? Cristãos que se autodenominam assim e se colocam como defensores da identidade confessional, mas depois permanecem surdos à voz do Evangelho; e, por outro lado, cristãos que, dando o primado ao Evangelho e não às tradições religiosas humanas, são desprezados, julgados como ingênuos, bonzinhos ou até mesmo covardes: cristãos do campanário e cristãos do Evangelho!

Jesus é e continua sendo “Príncipe da paz” (Is 9,5), e a sua vitória está assegurada, mas o acesso ao Reino se dá por meio de muitas tribulações (cf. At 14,22), provações, divisões. Assim aconteceu com ele, Jesus; assim deve acontecer conosco, seus discípulos, se formos fiéis a ele e não tivermos medo do fogo ardente do Evangelho e do Espírito de Jesus.

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Hoje, mais uma vez, somos convidados a seguir Cristo, como discípulos, mensageiros, portadores e portadoras da sua Palavra. Desde o 13º domingo, nós nos encontramos no caminho para Jerusalém, e, a cada semana, o Evangelho de Lucas nos ensina o que quer dizer seguir Cristo. Nas últimas semanas, aprendemos que para seguir Cristo é preciso estar livre, desfazer-se de tudo o que nos impede de prosseguir no caminho da vida, de olhar para frente, que a missão não nos pertence; estamos a serviço da missão, que é preciso nos tornar próximos dos outros, sem nenhuma discriminação, que em nossas celebrações a Palavra é primeira, que a oração nos torna responsáveis pelo que dizemos e pedimos, que devemos ser ricos de coração e não em celeiros, e que somos servos responsáveis. Essas são as exigências para sermos cristãos, e ainda não acabou… Hoje, as exigências nos levam ainda mais longe…

1. O fogo

“Eu vim trazer fogo à terra, e como desejaria que já estivesse aceso!” (Lc 12,49). O que isto quer dizer? Eu li comentários de exegetas que veem nesse fogo uma espécie de purificação, uma distinção entre o bem e o mal. Pessoalmente, não concordo com esta interpretação. Prefiro a interpretação da Bíblia TOB que explica, em uma nota de rodapé, que se trata do batismo do Espírito e do fogo inaugurado no Pentecostes. Lembrem-se desse relato de Lucas, no livro dos Atos dos Apóstolos, em que no dia do Pentecostes, línguas de fogo descem sobre todos os presentes… E o que esse fogo provocou neles? Tornou-os capazes de sair a público e falar uma linguagem que todos podiam compreender. É, portanto, a linguagem do Amor, porque é a única linguagem que podemos compreender em todas as línguas.

E este Amor se expressa, em primeiro lugar, na Palavra com “P” maiúsculo, e se torna um gesto, uma ação, na sequência. Não existe o ditado que diz que é preciso dar mãos à Palavra? Todo o Evangelho fala do Amor: um Amor incondicional e total da parte de um Deus que é reconhecido através do homem e da mulher e que se serviu de Jesus de Nazaré, que se tornou o Cristo e Senhor Ressuscitado. Recordemos as mensagens relatadas pelos evangelistas e que provêm do Cristo ressuscitado: a acolhida do outro, sobretudo dos mais fracos, o perdão em toda a sua gratuidade, a partilha com os mais pobres, trabalhar por mais justiça, mais igualdade, mais dignidade… Como discípulos, temos que espalhar esse Amor, esse fogo, e nós somos capazes disso, porque somos habitados pelo Espírito de Cristo desde o Pentecostes, e diria mesmo que desde a noite da Páscoa e mesmo desde a cruz da Sexta-feira Santa.

A própria Palavra é um fogo! Recordemo-nos do profeta Jeremias, não no trecho de hoje, mas no capítulo 20, versículos 7 a 9, onde Jeremias diz, em relação à Palavra que devia proclamar: “Quando eu pensava: ‘Não me lembrarei dele, já não falarei em seu Nome’, então isto era em meu coração como um fogo devorador… Estou cansado de suportar, não posso mais!”. Isso era mais forte que ele, o profeta devia proclamar a Palavra imperiosamente.

2. O batismo

“Devo receber um batismo, e como me angustio até que esteja consumado!” (Lc 12,50). O que também isso quer dizer? De que batismo o Jesus de Lucas, que é o Cristo da Páscoa, está falando? Do batismo que é um mergulho, mergulho na morte, não para ficar aí, mas para ressuscitar. É o mistério pascal que é evocado por Lucas, num momento da história em que as perseguições aos cristãos são moeda corrente.

É evidente que isso faz referência à morte e ressurreição de Jesus, porque é o mesmo sentido do batismo cristão. Não é apenas um batismo na água que purifica, mas também um batismo que é um mergulho na morte de Cristo para ressuscitar com ele. É esse batismo que nós recebemos como cristãos e é por esse batismo que nós devemos viver como discípulos de Cristo, como ressuscitados, como Cristos da Páscoa. Quer sejamos homens ou mulheres, brancos, amarelos ou negros, heterossexuais ou homossexuais ou transgêneros, pequenos ou grandes, somos todos e todas chamados a viver como Cristo, porque fomos mergulhados em sua morte e ressurreição com ele. São Paulo, na carta aos Gálatas, diz: “Pois todos vós, que fostes batizados em Cristo, vos vestistes de Cristo. Não há judeu nem grego, não há escravo nem livre, não há homem nem mulher; pois todos vós sois um só em Cristo Jesus” (Gl 3,27-28).
E esse batismo dá todo o sentido ao resto do Evangelho de hoje.

3. A divisão e a decisão

“Pensais que vim para estabelecer a paz sobre a terra? Não, eu vos digo, mas a divisão” (Lc 12,51). Eu li um exegeta que dizia que esta Palavra o chocava muito. Como pode Jesus, que nos fala de paz e de amor, ao mesmo tempo dizer que veio semear a cizânia em nosso mundo? Mas não é isto que esta Palavra quer dizer. Gérard Sindt escreve: “Algumas formas de divisão são intoleráveis. Mas algumas pazes também, quando se trata de um silêncio cúmplice que evita decisões dolorosas que se impõem. O verbo latino que deu origem à nossa palavra decisão, significa cortar, dividir. Jesus não traz a paz no sentido de que a sua palavra, se nós a ouvimos verdadeiramente, nos obriga a decidir, a cortar a favor ou contra o que ela exige de nós”.

Na época em que Lucas escreve o seu evangelho, a decisão de ser cristão, de seguir Cristo, semeava a divisão, a controvérsia, a perseguição, inclusive nas famílias. Mais ainda hoje, na nossa Igreja, não há divisão no seio mesmo daqueles que dizem seguir Cristo? Há, certamente, divisões que persistem entre cristãos de diferentes denominações, mas esse não é meu objetivo; eu falo das divisões dentro da nossa Igreja católica romana. Há mais que diversidade; há ruptura entre a hierarquia e os fiéis. O que fazer para decidir e para cortar? Impor os dogmas contra vento e maré? Excluir todos aqueles e todas aquelas que não pensam como as autoridades romanas? Aplicar as regras com o rigor exigido?

É desta maneira que se agia antes da chegada do Papa Francisco, e vemos no que isso dá: uma Igreja que se esvazia cada vez mais, uma Igreja a ponto de morrer, uma Igreja em fase terminal. Isso ocorreu por que não se tomou as decisões corretas? O que fazer então? Talvez retomando os evangelhos e aprendendo as mensagens de Cristo que os evangelhos nos ensinam, possamos reencontrar um sopro novo, uma lufada de ar fresco, uma brisa de esperança. É o que o Papa Francisco está fazendo: uma grande limpeza não apenas na Cúria romana, mas também na própria estrutura da nossa Igreja. Pela primeira vez, ele nos fala de pastoral. Ele não recorda a todo momento a doutrina; essa nós conhecemos… Ele nos diz como fazer pastoral, ali onde estamos com os dois pés. Pessoalmente, isso me faz muito bem, e não estou sozinho. Eu ouvi muitas pessoas que se afastaram da Igreja há um bom tempo e que me disseram que esse Papa os interpela profundamente. Faz bem ouvir isso. (…)

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