6 de agosto
Festa da Transfiguração do Senhor (C)
Lucas 9,28-36

«Enquanto rezava, seu rosto mudou de aparência e sua roupa ficou muito branca e brilhante» (Lucas 9,28-36)
Jesus em sua beleza e em sua dor
Marcel Domergue, s.j.
A luz e a obscuridade
Misteriosa, a oração de Jesus! Pois, faz-se um só com o Pai e ele mesmo é pessoa divina. Mas, nele, Deus se fez passar à natureza e à condição de um ser humano, semelhante a cada um de nós. Nele, a nossa liberdade de seres criados deve escolher fazer-se uma só com a liberdade divina. Há, por isso, um caminho a percorrer, até que retorne à glória de onde veio. Intrigados pelo tempo que passa em oração, os discípulos pedem-lhe que lhes ensine a rezar (Lucas 11). Responde dando-lhes o Pai Nosso.
Será que estas poucas frases resumem as longas orações de Jesus? Sou tentado a crer que sim, mas ainda é preciso alcançar o significado todo destas breves fórmulas. Visam ao resultado feliz das nossas existências; projetam-nos a um final glorioso de nossas trajetórias tão trabalhosas e desconcertantes. Pois eis que esta glória final se inscreve fugidiamente no semblante de Jesus, também em suas vestes e neste corpo humano em que vive para sempre. É a mais perfeita união entre o homem e Deus.
Os três discípulos o entreveem numa espécie de êxtase, do qual não podem captar imediatamente o significado, mas que os desperta e deslumbra. Pedro, esquecendo o caminho que resta por percorrer, quer instalar-se e erguer a tenda, no resplendor da luz divina. Mas a “nuvem escura”, a mesma que acompanhava os Hebreus em sua longa e dura marcha de Êxodo, é que lhe vai responder. À felicidade do versículo 33 sucede o terror do versículo 34. Vinda desta nuvem, cujas trevas contrastam com a glória da transfiguração, a voz de Deus fez-se ouvir, para glorificar Jesus. E este volta imediatamente a ser o Jesus de todo dia.
No horizonte, a Páscoa.
O rosto de Moisés, ao descer de novo a montanha, resplandecia de luz. Pois o mesmo não se deu com Jesus. A luz da transfiguração perdeu-se na nuvem e, dali em diante, ficou visível apenas para a fé na Palavra que acabara de designá-lo como Filho. Só furtivamente fora revelado como a luz do mundo, como a luz que brilha nas trevas das nossas vidas, mas que são trevas que não podem ser detidas (ver João 1,1-14). Acabamos de fazer alusão a Moisés. Justamente, ei-lo aqui na montanha, com Elias. Estes dois homens representam a Lei (Moisés) e os Profetas (Elias), ou seja, tudo o que, na Bíblia, comanda a história.
Falam com Jesus do «Êxodo que ele deveria cumprir até Jerusalém». De diversos modos, a Escritura inteira é preparação e imagem da Páscoa do Cristo. É que toda a história humana caminha para este desfecho, do qual ainda esperamos a última revelação, expressa na Bíblia pelo tema da volta de Cristo. Não esqueçamos que o relato da transfiguração está enquadrado entre os dois primeiros anúncios da Paixão e que o ponto de partida para Jerusalém e para a Páscoa é mencionado nas primeiras linhas do capítulo seguinte.
A luz que inunda Jesus na montanha é profética, com respeito à sua ressurreição. Por isso é que, sem dúvida, na versão de Mateus (17,9), Jesus diz aos três discípulos: «Não conteis a ninguém essa visão, até que o Filho do homem ressuscite dos mortos.» Em sua segunda carta (1,16-21), Pedro falará da transfiguração como do fundamento de sua fé. É que o Cristo ressuscitado não emitia nenhuma luz e ficou difícil identificá-lo: não se podia reconhecê-lo imediatamente.
Os três discípulos
Pedro, Tiago e João foram chamados juntos, quando ainda eram pescadores de peixes. Foram os três primeiros discípulos. Sem hesitação alguma, deixaram os seus barcos, as suas redes e o seu pai. Os três estão juntos na transfiguração e nós os encontraremos de novo juntos no Getsemani. Vimos que, ao serem chamados, estavam ocupados com outra coisa, enquanto toda a multidão escutava Jesus. Na transfiguração como em Getsemani, adormecem; o que é uma maneira de se ausentar. É verdade que, nos dois casos, era noite. Mas a noite não é somente uma consequência da rotação da terra.
Na Bíblia, é uma alusão às trevas que cobriam o abismo do nada antes que Deus tivesse criado a luz, separando-a das trevas, para dar lugar ao primeiro dia. O sono noturno é uma imagem da morte: noite dos sentidos, noite da inteligência, noite do espírito. Os três discípulos retiram-se da marcha da história e do itinerário da salvação da humanidade. Eles, no fundo, retornam ao nada original. Mas é aí que a luz vem visitá-los.
Em Lucas 24,9-12, a mensagem das mulheres que tiveram a coragem de ir até o túmulo que haviam encontrado aberto e vazio, é que irá despertá-los das trevas a que estavam aprisionados desde o Getsemani. O que aconteceu com estes três apóstolos é típico do que acontece com todos nós. Há momentos privilegiados em que, com frequência sem qualquer aviso prévio, vemos tudo claro. É quando a luz nos inunda! Mas, um instante depois, recaímos nas trevas da incompreensão. É então que, com os olhos fechados, temos que escolher acreditar nas palavras que ouvimos e que nos designaram este Jesus como sendo o Filho de Deus.
Transfiguração
José Tolentino Mendonça
A festa da Transfiguração é uma festa que se celebra para curar o medo da cruz, para curar o escândalo da cruz. Quando os discípulos estavam com Jesus nesta fase e estão à beira de subir para Jerusalém e já percebem que o desfecho não vai ser como o que eles gostariam, o seu coração fica apertado e eles estão ao lado de Jesus mas já estão longe, estão a escapar, estão a fugir. E a Transfiguração é eles verem verdadeiramente Jesus, verem com um olhar espiritual, perceberem quem é Jesus e perceberem quem é que eles são à luz da pessoa de Jesus. E isso vence o medo que eles têm no seu coração.
Queridos irmãos, nós também precisamos de uma visão assim. Precisamos de olhar verdadeiramente para Jesus, colocar Nele os nossos olhos, os olhos do nosso coração. E com esse olhar, olharmos para nós próprios e dizermos: “A confiança tem de vencer o medo. O chamamento de Deus, a Sua promessa, tem de vencer a imobilidade, as nossas resistências, a nossa instalação.”
Vamos tentar, vamos recomeçar, vamos acreditar na conversão, na transformação interior, nessa requalificação da nossa vida. Requalificação espiritual, ética, ontológica, viver com maior autenticidade. Isso é o grande desafio, é o desafio que o próprio Deus com a Sua força, a Sua misericórdia, sustenta em cada um de nós.