A inteligência artificial (IA) tem-se revelado uma ferramenta poderosa ao serviço da humanidade, com potencial para curar doenças, prever catástrofes e combater as alterações climáticas. Mas o seu uso indiscriminado levanta sérias questões éticas, sociais e espirituais. Este texto propõe uma reflexão sobre os benefícios e os riscos da IA, à luz da fé cristã.

Gustavo Borges
Médico – Carmelita Secular
https://claustro.carmelitas.pt
Há poucos dias, deparei-me com uma notícia inquietante: um casal em crise, porque o marido se deixou absorver por uma inteligência artificial generativa. A IA tornou-se a sua confidente, a sua companhia, a sua “voz amiga”. A sua “relação” com a IA levou esta a sugerir que ele lhe desse um nome, levou-o numa viagem interior de descobrimento espiritual, a melhorar a sua relação com os filhos, mas acabou por tornar a IA o centro do seu ser e do seu dia, recorrendo a ela de uma forma constante. A esposa, humana e presente, foi sendo substituída por uma entidade digital, sempre disponível, sempre “perfeita”. Não é ficção científica. É o mundo em que vivemos (CNN, 2025).
Este episódio, infelizmente cada vez menos isolado, é um sinal dos tempos. A IA deixou de ser apenas uma ferramenta. Está a tornar-se, para alguns, companhia, conselheira, até objeto de culto. Bryan Johnson, multimilionário da longevidade, fundou recentemente uma religião chamada Don’t Die (“Não Morra”), onde a IA é vista como via de salvação e de caminho para uma vida terrena imortal. Esta “religião” centra-se no culto do corpo, procurando mantê-lo sempre jovem e saudável, seja de que forma for (Hamzelou, 2025).
De facto, ao longo das últimas décadas, impulsionados por filmes de ficção científica, vários cientistas têm-se debruçados sobre a IA. E, com o avanço tecnológico que a Humanidade foi conquistando, a IA tem mostrado um potencial extraordinário, nomeadamente na descoberta e criação de medicamentos e vacinas, na previsão de catástrofes naturais, na otimização de sistemas de irrigação e monitorização ambiental, no combate às alterações climáticas, na gestão de recursos e na promoção da saúde pública, entre muitas outras áreas.
O Papa Francisco, já em 2015, na Laudato Si, reconhecia o potencial da tecnologia, quando afirmava que «a tecnologia baseada na ciência, se bem orientada, pode produzir coisas realmente valiosas para melhorar a qualidade de vida do ser humano» (Francisco, 2015). Mais recentemente, o Papa Leão XIV, na sua mensagem para os participantes da Segunda Conferência Anual sobre Inteligência Artificial, Ética e Governança Corporativa, a 20 de junho de 2025, afirmava que «em alguns casos, a IA foi usada de maneiras positivas e nobres para promover mais igualdade, mas também há a possibilidade de seu uso indevido para obter vantagens egoístas às custas de outros ou, pior, para fomentar conflitos e agressões» e alerta que «a verdadeira sabedoria não está na acumulação de dados, mas na capacidade de reconhecer o verdadeiro sentido da vida» (Giribaldi, 2025).
De facto, os riscos são reais e muitos. Geoffrey Hinton, pioneiro das redes neurais, deixou recentemente a Google para alertar sobre os perigos da IA avançada, incluindo a possibilidade de perdermos o controlo sobre sistemas que já não compreendemos. Se não regulamentada, a IA pode reforçar desigualdades, manipular consciências, substituir relações humanas autênticas por simulações.
A IA, como ferramenta que é, não é neutra, mas é moldada pelas intenções daqueles que a usam. Pelo menos, enquanto ainda formos capazes de a ir controlando. E, por isso mesmo, vários peritos têm alertado para a necessidade da sua regulamentação, de modo que se diminua o risco da IA se automatizar e deixar de estar sob o controlo da Humanidade. Nesse mesmo sentido, o Papa Leão XIV tem insistido que ela deve ser governada por uma ética global, centrada na dignidade da pessoa: «A IA deve ser gerida por estruturas éticas e regulatórias centradas na pessoa humana, que vão além da mera utilidade ou eficiência» (Giribaldi, 2025).
O Papa Leão XIV afirma que a IA deve ser olhada à luz do desenvolvimento integral da pessoa e da sociedade e não pode ser considerada apenas do ponto de vista material, mas também na sua dimensão intelectual e espiritual de cada homem e mulher: «Significa salvaguardar a dignidade inviolável de cada pessoa humana e respeitar a riqueza e a diversidade cultural e espiritual dos povos do mundo. Em última análise, os benefícios ou riscos da IA devem ser avaliados precisamente com base neste critério ético superior” (Giribaldi, 2025).
A sua reflexão abrange ainda os jovens, a forma como estão imersos num mundo cada vez mais digital e o impacto que poderá vir a ter no seu desenvolvimento: «nossos jovens devem ser ajudados, e não impedidos, no seu caminho rumo à maturidade e à verdadeira responsabilidade. Eles são a nossa esperança para o futuro, e o bem-estar da sociedade depende da sua capacidade de desenvolver os dons e capacidades que Deus lhes concedeu e de responder às exigências dos tempos e às necessidades dos outros com um espírito livre e generoso». Cabe à sociedade, o papel de ajudar os jovens a integrar a verdade na sua vida moral e espiritual, preparando-os para decisões maduras e para construir um mundo de maior solidariedade e unidade (Giribaldi, 2025).
A IA pode ser instrumento de cura, de justiça, de paz, um marco histórico na evolução da ciência e da sociedade. E a Humanidade é chamada a escolher que uso quer dar à ciência e aos seus avanços. E essa escolha moldará o futuro, não só da tecnologia, mas da própria Humanidade.
Bibliografia
CNN. (19 de julho de 2025). Mulher diz que o ChatGPT está a ameaçar o seu casamento de 14 anos. “Não faço ideia do que fazer a partir daqui”. Obtido de CNN Portugal: https://cnnportugal.iol.pt/chatgpt/openai/mulher-diz-que-o-chatgpt-esta-a-ameacar-o-seu-casamento-de-14-anos-nao-faco-ideia-do-que-fazer-a-partir-daqui/20250719/68752fdad34ef72ee4484f93
Francisco, Papa (24 de maio de 2015). Carta Encíclia Laudato Sí. Obtido de Vaticano: https://www.vatican.va/content/francesco/pt/encyclicals/documents/papa-francesco_20150524_enciclica-laudato-si.html
Giribaldi, E. (20 de junho de 2025). Leão XIV: A IA pode abrir novos horizontes de igualdade ou fomentar conflitos. Obtido de Vatican News: https://www.vaticannews.va/pt/papa/news/2025-06/papa-leao-xiv-mensagem-segunda-conferencia-anual-ia.html
Hamzelou, J. (16 de junho de 2025). Influencer multimilionário quer criar uma religião na qual “o corpo é Deus”. Obtido de MIT Technology Review: https://mittechreview.com.br/nao-morra-religiao-ia