14° Domingo do Tempo Comum (C)
Lucas 10,1-12.17-20


invio dei 72 in missione
  • 1ª leitura: “Eis que farei correr para ela a paz como um rio” (Isaías 66,10-14).
  • Salmo: Sl. 65(66) – R/ Aclamai o Senhor Deus, ó terra inteira!
  • 2ª leitura: “Eu trago em meu corpo as marcas de Jesus” (Gálatas 6,14-18).
  • Evangelho: “Se ali houver um amigo da paz, a vossa paz repousará sobre ele” (Lucas 10,1-12.17-20 ou 1-9)

A PERFEITA ALEGRIA
José Tolentino Mendonça

Queridos irmãs e irmãos,
É um evangelho muito necessário, mas um evangelho difícil, a alegria. Porque, por um lado, todos nós a sentimos, a experimentamos; e, por outro lado, sabemos como ela nos escapa, como ela é precária, como ela é inexplicável, a alegria. Muitas vezes sentimos que ela até é dispensável, podemos até viver sem a alegria, podemos caminhar pela vida fora sem a alegria ou achar que ela tem mais a ver com o caráter, o temperamento de cada um. Mas, lendo as escrituras nós percebemos que a alegria é muito mais do que isso, a alegria é uma condição dos que caminham. Por isso, nós não podemos olhar para a alegria como uma realidade eventual na nossa vida. Se tivermos, muito bem, se não tivermos muito bem na mesma. Não, a alegria tem de caracterizar a nossa vida. A alegria tem de nos acompanhar, a alegria é uma expressão da ação do Espírito Santo em nós, a alegria é um dom de Deus na nossa vida e a alegria é um sinal de saúde interior. Não é apenas um sinal de saúde psíquica mas é um sinal de vitalidade interior. Quando estamos cheios do Espírito, quando Deus trabalha em nós a alegria transborda, a alegria acontece.

E se a alegria falha nós temos de entender isso como um sintoma, como uma campainha que toca, e perguntar o que é que está a acontecer, porque é que me falta a alegria, porque é que a alegria não me visita, porque é que eu não sou um canal, um bom-condutor da alegria, que obstáculo há em mim para que a alegria não se manifeste. Porque a alegria é um trabalho de Deus em nós, porque Deus conspira para a nossa alegria. Nós víamos isso na primeira leitura do livro do profeta Isaías, quando depois dos grandes trabalhos de luto, sofrimento e exílio por que passa o povo de Israel e a cidade de Jerusalém, (sitiada primeiro, depois ocupada) chega esta mensagem de Deus: “Depois do luto alegrai-vos.”

É interessante como Deus aparece aqui como um aliado da nossa alegria, como alguém que modela dentro de nós, dá forma à própria alegria e de uma forma intencionalmente pedagógica. Esta imagem tão bela que nos aparece no profeta Isaías, que é como uma mãe exorta um filho e lhe diz “Coragem! Alento! Não chores!” e lhe faz cócegas e o faz rir, assim também Deus nos faz rir. Assim também Deus nos pega ao colo, nos exorta, nos consola para nos fazer alegrar o coração, para nos dar motivos de alegria. Por isso, sintamos que a alegria não é superficial, não é epidérmica, a alegria não é uma coisa fora de Deus. Mas a alegria, pelo contrário, é um resultado, é uma consequência da ação de Deus na nossa vida e a alegria é também acreditar, sentir a alegria. Nas listas dos dons do Espírito Santo a alegria aparece sempre e aparece sempre nos lugares cimeiros porque a alegria deve marcar a vida cristã. E quem se deixa conduzir pelo Espírito claro que experimenta uma grande paz, claro que experimenta uma liberdade interior mas também experimenta uma grande alegria.

O nosso povo tem muita razão quando diz que um santo triste é um triste santo. Porque os santos devem manifestar a sua alegria. E da mesma maneira, um cristão triste é um triste cristão. Porque, o nosso cristianismo deve levar-nos a experimentar a alegria. Uma alegria que não é uma ignorância do mundo, ou não é uma ignorância do sofrimento, ou não é um estado de isenção: eu estou alegre porque tudo me corre bem, ou estou alegre porque não há nenhuma sombra, ou estou alegre porque tudo é transparente. Às vezes isso acontece, em alguns momentos raros de graça na nossa vida parece que tudo se conjuga para uma transparência, uma luz – também acontece esse milagre. Mas não é o normal, não é o comum. Se nós reduzimos a alegria apenas a esse estado de graça, vamos ser só esporadicamente alegres, não vamos ser continuamente alegres. Porque, a maior parte do tempo, a nossa vida é transformação, é movimento, é incompletude, é inacabamento, é uma surpresa, é um revés, é um cair, é um reerguer-se. A nossa vida é feita dessa turbulência, desse tumulto. Mas será que essa transformação porque passa a nossa vida nos impede da alegria?

É muito belo o movimento quase retórico, gráfico, das palavras de Jesus no final do Evangelho que hoje lemos. Jesus diz assim: “Não se alegrem por achar que dominam os espíritos, mas alegrem-se porque os vossos nomes estão escritos no céu.” Então, Jesus diz: “Não se alegrem por isto, mas alegrem-se por aquilo.” Este movimento é muito necessário acontecer em nós, porque às vezes nós alegramo-nos por coisas que não são as coisas que nos dão a verdadeira alegria. Às vezes pensamos que vamos extrair a alegria do sucesso, da abundância, da afirmação, do poder, da eficácia, da realização e que isso é a fonte da nossa alegria. Mas Jesus diz: “Não se alegrem por isso, alegrem-se porque a alegria é uma coisa maior, a alegria tem a ver com o eterno, não tem a ver com o imediato. A alegria tem a ver com aquelas razões profundas de viver. Alegrem-se porque o vosso nome está escrito nos céus.”

É interessante que o Cristianismo tem debatido muito a alegria. Por exemplo, há uma história nos Fioretti, as histórias pequeninas da vida de São Francisco de Assis, que é uma história sobre aquilo que no franciscanismo se chama a história da perfeita alegria.
Então vinha o irmão Leão – Leão é mesmo o nome de um dos frades, apesar de São Francisco também falar com lobos, mas este era mesmo um frade – que vinha acompanhar São Francisco e vinham pelo caminho de regresso a casa, no meio do inverno (vento, neve, frio) e o irmão Leão pergunta ao irmão Francisco: “O que é que é a perfeita alegria?” E São Francisco diz isto: “A perfeita alegria é nós agora chegarmos ali ao nosso convento e batermos à porta e nos vier abrir um irmão e não nos reconhecer. E dizer «Ide-vos embora! O que é que estais aqui a fazer? Vindes roubar o pão que é devido aos pobres» e fechar-nos a porta na cara. E se nós não nos revoltarmos, e se nós não murmurarmos contra aquele irmão, e se nós não arrancarmos os cabelos por não nos ter saído a sorte grande mas por nos ter acontecido aquele revés, e conseguirmos manter a paz, isso é a perfeita alegria. Ou ainda, estando já muito tempo ali fora e caindo a noite nós decidamos no nosso coração: vamos tentar mais uma vez, vamos bater à porta. E batemos de novo à porta e aparece o irmão porteiro e diz: “Outra vez?” E pega num pau e vem à rua e castiga duramente cada um de nós. E se nós aceitarmos aquela provação, pensando nos sofrimentos de Cristo e não nos rebelaremos, não murmurarmos contra aquele irmão, mas mantivermos no nosso coração o amor por ele, experimentando uma liberdade interior muito grande, essa é a perfeita alegria.”
Porque a perfeita alegria é a vitória sobre tudo aquilo que é o nosso apego, tudo aquilo que é o nosso “eu” mal resolvido, o nosso “eu” tirânico, tudo o que é a vitória sobre isso, tudo aquilo que nos dá uma liberdade muito grande. Liberdade também face às nossas expetativas, face às nossas conceções da alegria. Porque, às vezes, o que nos faz sofrer não é a nossa vida mas é a idealização da nossa vida – é a vida não ser como a gente a pensou, a idealizou, e depois deixamos de ter a capacidade de abraçar a vida como ela é. Se tivermos a capacidade de abraçar a nossa vida com os sofrimentos, com as revezas, sem murmurar, com um sorriso, essa é a perfeita alegria.

Um outro medieval, mas agora dominicano, o Mestre Eckhart, falava da alegria perpétua. São Francisco fala da perfeita alegria e o Mestre Eckhart fala da alegria perpétua, da alegria contínua. E o que é para ele a alegria perpétua? A alegria perpétua, diz ele, não são as coisas de Deus, não é aquilo que Deus nos pode dar, mas a alegria perfeita é o próprio Senhor. E o próprio Senhor é alguma coisa que nós recebemos no nosso coração quando ‘descascamos a batata’. Isto é, quando tiramos a casca, quando relativizamos aquilo que é relativo, quando nos expomos sem defesa à vinda de Deus, à Sua vontade, ao que Ele nos quer dar – então aí nós temos a alegria perpétua, a alegria que não acaba, a alegria que não é ameaçada. Porque o próprio Deus é a alegria, o próprio Deus Se nos dá.

“Não vos alegreis porque tendes poder sobre os espíritos, alegrai-vos antes porque os vossos nomes estão escritos no céu.” Queridos irmãs e irmãos, a alegria é uma tarefa para todos nós, como é que cada um de nós vive a alegria? É uma pergunta muito importante, e é uma pergunta de fé. É uma pergunta que tem a ver com a nossa fé. Como é que eu vivo a alegria? Às vezes nós vivemos murchos, nós vivemos tristonhos, nós vivemos anoitecidos, nós vivemos aborrecidos, chateados, pesados, revoltados, esmagados por isto, oprimidos. E o que é feito da nossa alegria? O que é feito desta alegria que Deus opera em nós continuamente, continuamente.

Tem razão S. Paulo, na Carta aos Gálatas, quando diz: “Meus irmãos, a coisa mais importante é esta: que eu seja uma nova criatura em Cristo.” Isto é: “Que eu tenha a capacidade de nascer continuamente em Cristo.”

Queridos irmãos, todos nós, a maioria de nós (as crianças que estão à nossa frente são o nosso futuro), todos nós adultos somos homens velhos, somos homens velhos. Carregados disto e daquilo, de experiências, de provas, de sabemos, de enganos e desenganos, ilusões e desilusões – não é isso que é importante. O importante não é o que eu vivi, o que eu fui ou não fui, o que eu queria, o que não queria. O importante não é isso, o importante é eu poder nascer em Cristo, eu ser novo em Cristo, eu sentir-me nova criatura em Cristo. E nós estamos aqui, nesta Eucaristia, para isso. A Eucaristia é a nossa manjedoura, é a sala de parto. A Eucaristia é aquele lugar onde a Igreja renasce, onde cada um de nós cristãos, batizados, renascemos, somos novos. E somos novos para quê? Para podermos ser servidores da alegria, artesãos da alegria, dançarinos da alegria, cantores da alegria, escultores da alegria, testemunhas da alegria no meio do mundo, a perfeita alegria, a perpétua alegria.

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A messe chama à missão!
Raymond Gravel

No domingo passado, fomos convidados para tomar o caminho com Jesus para Jerusalém. O apelo para segui-lo nos foi lançado, assim como as exigências listadas: liberdade, despojamento, urgência da missão e olhar para a frente. Hoje, Lucas nos relata o envio em missão de 72 discípulos (a mesma missão confiada anteriormente aos 12), o que significa que se trata de uma missão universal (acreditava-se que no Antigo Testamento havia 70 nações para os judeus ou 72 para os gregos), na qual todas e todos estamos envolvidos, como cristãos. O apelo que é feito aos 72 discípulos é levar a paz (shalom) ao mundo: “como cordeiros no meio de lobos” (Lc 10, 3). E o fruto da paz é a alegria: “Os 72 discípulos voltaram muito alegres” (Lc 10, 17a). Despojados: “Não levem bolsa, nem sacola, nem sandálias” (Lc 10, 4a), fazendo-se próximos da realidade  das pessoas que encontram: “Permaneçam nessa mesma casa, comam e bebam do que tiverem” (Lc 10, 7a), eles libertarão as pessoas: “curem os doentes que nela houver” (Lc, 10, 9a), sempre respeitando a liberdade de cada um: “Até a poeira dessa cidade, que se grudou em nossos pés, nós sacudimos contra vocês” (Lc 10, 11a).

Mas, como compreender esse relato de Lucas, hoje? Quem está implicado na missão do Ressuscitado? O que significa levar a paz ao mundo, hoje? Como traduzir as recomendações de Lucas? É um programa a ser descoberto e devemos fazê-lo com lucidez, sempre guardando a esperança.

1. A missão é para quem?

(…) Certamente, nós ouvimos esta passagem de Lucas: ‘A messe é grande, mas os operários são poucos. Rogai ao Senhor da messe para que mande operários para a sua messe…’. Muitos anos depois, todos se perguntavam como foi possível aplicar esta passagem apenas às necessidades sacerdotais. Os leigos não eram chamados a trabalhar na messe? Foi preciso que os sacerdotes diminuíssem numericamente para que a Igreja se lembrasse de que os leigos existem. E que não há Igreja sem eles”.

Ao ler um comentário como este, me dou conta de que o que mais falta na nossa Igreja é seu profetismo E se, portanto, profetismo é saber ler os sinais dos tempos, isso quer dizer que a Igreja deveria antecipar-se à sociedade na sua mudança em vista de mais justiça, mais paz, mais dignidade e mais amor. Em vez disso, a Igreja foi e continua a ir, de modo geral, a reboque da sociedade. Ainda hoje, seus discursos sofrem da falta de abertura e de visão de futuro. Ela não é unificadora, mas condena, divide e exclui; ela está, muitas vezes, desconectada das nossas realidades contemporâneas. Nossos líderes têm dificuldades para se referir a estes temas e os crentes tornaram-se completamente indiferentes.

Por outro lado, é preciso também ter um olhar de esperança sobre a Igreja. Mulheres e homens que podemos qualificar de profetas tiveram e ainda tem uma palavra de liberdade, de justiça, de paz e de amor nesta Igreja, que sempre teve dificuldade para reconhecê-los. Essas mulheres e esses homens estão inspirados e ainda se inspiram nos profetas bíblicos, que não tiveram medo de denunciar as injustiças e de anunciar a esperança. Nas leituras de hoje temos dois:

1) Isaías. O profeta Isaías, na primeira leitura, no século seis antes de Cristo, no retorno do Exílio, quando tudo era desolação e destruição, anuncia uma era de felicidade e de prosperidade para Jerusalém: “Alegrem-se com Jerusalém, façam festa com ela, todos os que a amam. Participem de sua enorme alegria todos os que participaram do seu luto. Assim poderão amamentar-se nela até ficarem satisfeitos com a consolação que ela tem; sugarão com satisfação a abundância do seu seio” (Is 66, 10-11). O profeta Isaías foi, sem dúvida, motivo de chacota, pois se assistia à desolação do país e ao desespero do povo de Israel. Mas Isaías teve razão, e ele ousa nos apresentar Deus na sua feminilidade: “Como a mãe consola o seu filho, assim eu vou consolar vocês; em Jerusalém vocês serão consolados” (Is 66, 13).

2) Paulo. Mas, para o verdadeiro profeta, o compromisso não é fácil, e ele tem consciência disso. Na sua carta aos gálatas, Paulo o reconhece: “De agora em diante, ninguém mais me moleste, pois trago em meu corpo as marcas de Jesus” (Gl 6, 17). O que significa que São Paulo conheceu a rejeição e a condenação, não somente de seus adversários, mas também das pessoas mais próximas a ele e daqueles e daquelas que faziam parte da Igreja de Cristo. Por outro lado, em nome de sua pertença a Cristo, Paulo não teve medo de anunciar a novidade da Páscoa, a nova criação iniciada na manhã da Páscoa. E esta nova criação tornou caduca a tradição da religião: “O que importa não é a circuncisão, e sim a nova criação” (Gl 6, 15).

2. A messe não nos pertence

Se a messe é grande é porque ela não nos pertence; alguém a semeou e a amadureceu. O que se pede a todos os crentes, a todos os batizados, é participar da vindima, da colheita; esta não pode ser feita sem a nossa ajuda. O que nos é pedido é não possuir ou ter muitas coisas para oferecer a fim de convencer as pessoas; somos instados a ser mensageiros da paz, portadores da esperança num mundo que tem suas belezas, mas também suas fragilidades; suas forças, mas também suas fraquezas e suas pobrezas.

Nesta missão que nos é confiada, a liberdade é sagrada. Os missionários nunca devem forçar, rejeitar, condenar ou excluir as pessoas; eles devem respeitar a liberdade e a dignidade de cada um: “Até a poeira dessa cidade, que se grudou em nossos pés, nós sacudimos contra vocês” (Lc 10, 11a). Além disso, o sucesso da missão não é nosso: a alegria dos discípulos não consiste em ter sucesso na missão; trata-se simplesmente de ser contado entre os missionários: “Contudo, , não se alegrem porque os maus espíritos obedecem a vocês, antes, fiquem alegres porque os nomes de vocês estão escritos no céu” (Lc 10, 20).

Para terminar, como a messe não depende de nós, a missão não é reservada exclusivamente a nós. É em nome da nossa pertença a Cristo e não em nome da nossa pertença a uma Igreja em particular, que somos contados entre os missionários. E como aquelas e aqueles que pertencem a Cristo não são todas e todos da mesma Igreja, é preciso aceitar que a missão seja diversificada e que os missionários sejam diferentes e pertençam a Igrejas diferentes, de onde a necessidade de realizar a unidade de todos os cristãos, caso quisermos trabalhar juntos na missão do Senhor. E, como estamos longe desta unidade tão desejada, não precisamos nos surpreender se os operários são tão poucos.

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O concerto das nações
Marcel Domergue, SJ

Enviados dois a dois, “na sua frente”

Estamos aqui no caminho de Jerusalém, para a última Páscoa de Jesus, a sua «passagem» para a Vida. Ele é, então, o portador da nossa humanidade. Esta estrada representa o caminho que devemos percorrer em nossas existências. Para onde formos, caminhamos com o Cristo. Notemos que não apenas os apóstolos foram enviados, mas os discípulos, ou seja, muitos dos que aceitaram ouvi-lo. Setenta e dois é um número que significa multidão.

Mas o que significa este fato, de que ele nos tenha enviado «na sua frente, a toda cidade e lugar aonde ele próprio devia ir»? Não seria ele quem deveria nos preceder? De fato, ele nos precedeu no dom da sua vida, que se cumpriu em Jerusalém. Mas somos nós que devemos anunciar a sua volta, que «o Reino de Deus está próximo». Estamos hoje esperando algo cuja forma sequer podemos imaginar! Mas vivemos esta espera no segredo da sua presença, perceptível tão somente pela fé.

Desta forma, o Cristo está «atrás de nós», pois o precedemos, e «à nossa frente», pois que já atravessou a morte. Somos, portanto, convidados a ir ao encontro de pessoas que ignoram tudo sobre o Cristo. E não podemos contar muito com a hospitalidade característica da cultura do tempo de Jesus.

Traduzindo para hoje, temos sempre de estabelecer laços, por toda parte. Laços de amizade, pois a primeira recomendação de Jesus é que nos apresentemos como portadores da paz. Paz que comporta serenidade, confiança e a certeza de que a vida sempre tem a última palavra. Talvez estes com quem vamos nos encontrar nos perguntem a razão da esperança que trazemos conosco. Quando então vamos poder, «com mansidão e respeito», lhes falar do Cristo (1 Pedro 3,15).

A paz, não o poder

Os setenta e dois discípulos devem apresentar-se completamente despojados: «nem dinheiro, nem sacola, nem sandálias». Por quê? Porque não é com nenhum prestígio, nem material nem social, que devem contar. É para o Cristo que devem abrir caminho, não para perspectiva  alguma de sucesso humano. Colocando-se à mercê das pessoas que visitam, devem convidá-las a saírem de si mesmas. E, então, o Reino já estará aí. Só podem dar o que antes tiverem recebido. Provocando, portanto, previamente, entre aqueles com quem se encontram, atitudes evangélicas.

Notemos que o fato de se estabelecer a paz e a amizade precede ao anúncio do Reino. É preciso viver antes de explicar. Sendo acolhidos na paz, os discípulos podem «curar as doenças e expulsar os maus espíritos». Quanto a nós, temos obviamente de transpor estas formas de dizer. Nos tempos de Cristo, podemos acreditar, aconteceram coisas extraordinárias, mas hoje estamos no tempo do «crer sem ver»: a fé cristã alimenta-se não de milagres, mas de mistério.

Em nossos dias, curar os doentes consiste em acompanhá-los, ajudando-os a compreender que sua doença pode se tornar participação na cruz de Cristo e, portanto, caminho de ressurreição. «Expulsar os demônios»? Podemos traduzir por vencer, sobretudo as ilusões, as perversões, as tentações de nos servirmos dos outros etc. Os demônios são menos espetaculares e mais insidiosos do que em nossos Escritos. Trata-se da vontade de poder sob todas as suas formas, como podemos ver no «relato» das tentações de Cristo.

«Escolhe, pois, a vida, para que vivas»

Em caso de recusa, os discípulos não devem se obstinar. Que vão para outro lugar. Deus não nos constrange a agir contra a nossa vontade: «Eu te propus a vida ou a morte, a benção ou a maldição; escolhe, pois, a vida, a fim de que vivas» (Deuteronômio 30,15 e 19). À sua imagem, Deus nos fez criadores das nossas próprias vidas. Assim como Maria, temos de dizer e repetir sempre o «sim» nupcial que fez o Cristo vir ao mundo, e nós com ele. Somente no final, é que encontramos a alegria de viver na verdade. Pois é esta alegria, exatamente, que habita os discípulos, ao retornarem da «missão» que lhes foi dada. Jesus lhes diz que nada poderá lhes fazer mal. A serpente de Gênesis 3 é esmagada totalmente pela descendência da Mulher inicial. A sua mordida no calcanhar só atingiu-nos uma vez, pois que passamos a uma vida nova.

Mas Jesus põe um bemol neste belo otimismo: a alegria por este nosso poder sobre o mal, e em favor da vida, também pode perverter-se na alegria da dominação, do ser melhor que os outros, de «não ser como os outros». E assim, recaímos na ilusão da qual havíamos saído. Nada, portanto, de definitivo. Estamos sem cessar diante desta escolha fundamental, vital. Submeter as forças do mal pode nos levar a recair sob a sua dominação, de maneira ainda mais sutil.

Guardemo-nos, pois, de querer impor o bem, porque estaríamos querendo nos colocar acima de Deus, que se contenta com propor.

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Missão dirigida a todos os povos
Enzo Bianchi

O trecho do Evangelho segundo Lucas que o ordo litúrgico nos propõe para este domingo não é apenas rico em mensagens sobre a missão dos discípulos, mas também parece ser fortemente inspirador neste momento da Igreja, para uma nova compreensão da evangelização entre os povos.

Jesus já havia dado à missão, enviando os Doze que ele chamara de “apóstolos”, isto é, missionários, enviados (cf. Lc 6,13; 9,1), para que anunciassem o reino de Deus e curassem os enfermos. Agora, porém, sente a necessidade de designar (anédeixen) outros, diferentes dos Doze e também dos mensageiros (ángheloi: Lc 9,52) enviados à Samaria. Diante da necessidade e da urgência da missão, Jesus é livre, visionário, criativo e se mostra – poderíamos dizer –  como “o Senhor dos ministérios”. Esses discípulos designados são 72, o número dos povos pagãos fixados por Gênesis 10 (de acordo com a versão grega) e pelo pensamento judaico. Eles são, portanto, idealmente enviados a todos os povos da terra, aos quais, não por acaso, depois da ressurreição de Jesus, os apóstolos se dirigirão em uma missão universal testemunhada por Lucas nos Atos.

São necessários missionários e, quando estes se mostram insuficientes, é preciso, acima de tudo, rezar ao Senhor da messe para que envie operários para essa colheita, metáfora da colheita escatológica de todos os seres humanos no Reino. Mas também são necessárias audácia e criatividade para escolher enviados diferentes dos Doze, mas sempre a serviço do Reino que se aproxima.

Eis, portanto, uma nova forma de missão ditada pela necessidade da salvação de todos os seres humanos. Também esses 72, que não recebem um nome ministerial como o de “apóstolos” reservado para os Doze, são enviados “como cordeiros para o meio de lobos”, como precursores de Jesus nas diversas cidades para as que ele se dirigiria (também no tempo pós-pascal, como Senhor ressuscitado e vivo!) e devem assumir um comportamento essencial para o discípulo: mansidão, não violência, humildade, disponibilidade até para serem atacado por lobos.

Jesus os envia de dois em dois, para que o seu testemunho, fundamentado nas palavras de duas testemunhas (cf. Dt 19,15), seja credível, confiável, mas também porque em dois é possível viver a fraternidade, a solidariedade, a ajuda mútua; sem esquecer que a presença de outro irmão é um convite a não ceder às tentações individualistas e egocêntricas. A dimensão comunitária é essencial na missão, porque impede a autorreferencialidade, a falta de correção recíproca, a vertigem do eu que nunca imputa a si mesmo erros ou pecados. Por isso, nos Atos dos ApóstolosLucas se compraz em narrar as missões de Paulo e Barnabé, de Paulo e Silas, de Barnabé e Marcos

Mas eis outros mandatos da parte de Jesus. Em primeiro lugar, ele pede para pôr plena confiança em Deus, vivendo na sobriedade e sem buscar ansiosamente meios de subsistência como o dinheiro ou apetrechos. A bagagem para a missão deve ser leve, porque quanto mais se é pobre, mais se consegue anunciar a gratuidade do reino de Deus que vem, a gratuidade do amor de Deus que nunca deve ser merecido nem comprado. O enviado depende apenas do seu Senhor, mas também pode confiar nos discípulos, nos amigos do próprio Senhor. Ai dos missionários de Jesus se aparecerem como pregadores itinerantes que vivem como funcionários ou até como prestadores de serviço, que se deixam recompensar generosamente ou se deixam manter pelas comunidades entre as quais circulam, recolhendo dinheiro. Eles também não devem aparecer como falastrões que falam com qualquer um que encontram, esquecendo que sua missão nunca pode ser comparada com uma viagem em que satisfazem sua curiosidade ou se comportam como turistas.

E quando esses enviados entram em uma casa, então, acima de tudo, anunciam e trazem a paz, para que, se, naquela casa, houver quem deseja e busca a paz, possa obtê-la como uma bênção que traz vida, desperta alegria, inspira reconciliação. Quanto à comida e à hospitalidade que se recebe, devem ser acolhidas com gratidão, sem esperar a comodidade, o luxo, o refinamento. Não valem mais as regras judaicas sobre os alimentos puros e impuros, nem as regras ascéticas que condenam ou proíbem alguns alimentos. Não, o missionário sabe que, à mesa, toda barreira é abolida (cf. Mc 7,14-20), sabe que tudo o que Deus criou é bom (cf. Sb 11,24), sabe que deve respeitar o alimento, dar graças por ele e, sobretudo, compartilhá-lo com quem é pobre e necessitado (cf. 1Cor 9,15-18; 11,20-22).

E preste-se atenção: essas não são prescrições secundárias ou meros detalhes, mas sim exigências que definem o comportamento, o estilo cristão em meio aos outros homens e mulheres.

Quanto à mensagem a ser anunciada, ela é muito curta: “O Reino de Deus está próximo de vocês”, isto é, “vocês pode fazer Deus reinar nas suas vidas, nas suas histórias, no mundo em que habitam; deixem que Deus seja o Senhor, o único Senhor de vocês, e então o reino de Deus estará entre vocês e em vocês”.

Jesus, depois, adverte os discípulos que eles também poderão não ser acolhidos, poderão ser hostilizados, expulsos e até mesmo perseguidos. O que ele viveu na sua vida também poderá ser vivido pelos seus enviados. Nesse caso, os discípulos não responderão com insultos, com maldições ou com hostilidade, mas com mansidão sairão a cidade e sacudirão a poeira que se apegou aos seus pés, afirmando que não querem levar consigo nem isso… O juízo de Deus virá no seu “dia”, e então será manifesto que o pecado dos habitantes de Sodoma (cf. Gn 19) é menos grave do que o pecado de quem não acolhe a boa notícia da salvação. De fato, quanto maior for o dom recebido de Deus, maior é o pecado daqueles que o rejeitam!

Depois, ressoam também na boca de Jesus as invectivas proféticas dirigidas às cidades em que ele não só havia pregado a conversão, mas também realizado prodígios (cf. Lc 10, 13-15). E assim o antigo oráculo contra a Babilônia (cf. Is 14, 13-15), cidade inimiga do Deus vivo, é renovado contra Cafarnaum, a cidade que foi o centro da atividade e da missão de Jesus. Essas imagens do juízo nos amedrontam, mas tentemos captar nelas a paixão de Jesus pela vinda e pela acolhida do reino de Deus, além da sua clarividência profética na estrada percorrida até à ruína justamente pelos destinatários da sua palavra. A sua palavra, de fato, é palavra de Deus, daquele que o enviou para que fosse escutado, e é a mesma palavra que ele entregou aos discípulos missionários. Por isso, quem despreza o enviado despreza aquele que o enviou (cf. Lc 10, 16).

Por fim, Lucas também conta o retorno dos 72 das 36 missões que realizaram. Grande é a alegria, porque, de acordo com a promessa contida no envio à missão, os demônios recuam diante da sua pregação repleta de autoridade (exousía) e da invocação do Nome de Jesus. E é o próprio Jesus, o Senhor, que, escutando a sua história, confidencia a visão que ele teve: como vidente e profeta, contemplou a queda de Satanás do céu para baixo, assim como um relâmpago. Não se trata ainda do fim definitivo de Satanás, mas a presença de Cristo e a sua luta já são vitoriosas sobre o mal e sobre os poderes diabólicos. Mas essa alegria dos discípulos – Jesus os lembra – é pouca coisa em comparação com a alegria que deve habitar neles em profundidade, alegria pela consciência de serem amados por Deus agora e além da morte, porque mesmo no céu da vida eterna a vida do discípulo continuará.

O trecho do Evangelho celebrado neste domingo, portanto, deve estimular cada um de nós e a Igreja como um todo a rezar ao Senhor para que envie operários para a sua messe, como e onde ele quiser. Ao mesmo tempo, deve nos lembrar que, diante das urgências da missão, primeiro Jesus e depois a Igreja souberam criar ministérios, encontrar formas inéditas, chamar novos sujeitos para serem “enviados” do reino de Deus. Que ainda hoje o Espírito Santo renove em nós a audácia, a coragem e a firmeza da fé.

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A «carta de alistamento» para uma missão sem fronteiras
Romeo Ballan, mccj

Jesus está em viagem: caminha com firme decisão para Jerusalém (Evangelho de domingo passado). Trata-se de uma viagem missionária e comunitária, carregada de ensinamentos para os discípulos. Pouco antes Jesus tinha enviado em missão os Doze (Lc 9,1-6). A breve distância de tempo, Lucas (Evangelho) narra a missão dos 72 discípulos: «O Senhor designou outros setenta e dois discípulos e enviou-os dois a dois à sua frente, a todas as cidades e lugares aonde Ele havia de ir» (v. 1). A «carta de alistamento» e as instruções para os dois grupos de missionários – os 12 apóstolos e os 72 discípulos – são praticamente as mesmas. Surpreende por isso essa proximidade e duplicidade, como que a sublinhar a urgência da Missão.

Quem eram os 72? Aqui o número tem um significado simbólico, que remete para a totalidade da missão: 72 (ou 70, conforme os códices) eram os povos da terra, de acordo com a “lista dos povos” (Gn 10,1-32); outros tantos eram os anciãos de Israel. Além disso, 72 é o número múltiplo de 12, pelo que pretende indicar a totalidade do povo de Deus. A missão, portanto, não é tarefa apenas de alguns (os 12, exactamente), mas obra também dos leigos, isto é, de todos. Nestes números capta-se uma mensagem de universalidade da missão, na sua origem, extensão e destinatários.

As instruções são múltiplas e todas significativas, no estilo da missão nova que Jesus inaugurou. Desde então são instruções igualmente válidas, também para nós e para os futuros evangelizadores.

– «Enviou-os» (v. 1): a iniciativa da chamada e do envio é do Senhor, dono da seara; aos discípulos compete a disponibilidade na resposta.

– «Dois a dois»: em pequenos grupos; é preciso estar em comunhão pelo menos com uma outra pessoa, para que o testemunho seja credível. Assim seguiram Pedro e João (Act 3-4; 8,14); Barnabé e Saulo, enviados pela comunidade de Antioquia (Act 131-4). O anúncio do Evangelho não é deixado à inventiva solitária, mas é obra de uma comunidade de crentes. Mesmo que pequena, como no caso dos pais, primeiros educadores da fé dos seus filhos. O empenho de anunciar o Evangelho juntamente com outros não é apenas por uma questão de maior eficácia, mas porque fazê-lo juntamente a outros é expressão de comunhão e garantia da presença do Senhor. «Onde dois ou três se reunirem… eu estarei no meio deles» (Mt 18,20),

Enviou-os «à sua frente…»: são portadores da mensagem de uma outra pessoa; não são proprietários ou protagonistas, são precursores de Alguém que é mais importante, que virá depois, para cuja vinda hão-de preparar a mentes e os corações dos destinatários, que se encontram em toda a face da terra.

– «A seara é grande, mas são poucos os trabalhadores» (v. 2) disponíveis. Hoje a situação é a mesma de ontem. Os desafios da missão variam, em parte, de acordo com os tempos e os lugares, mas na essência são igualmente exigentes. E por isso são válidas também hoje as mesmas soluções que Jesus propunha então.

– «Pedi… ide…» (v. 2-3): a solução que Jesus oferece é dúplice: «Pedi… e ide…» (v. 2-3). Pedir para viver a missão em sintonia com o Dono da seara, porque a missão é graça a implorar para si e para os outros. E ir, porque em cada vocação, comum ou especial, o Senhor ama, chama e envia. «Pedir e ir»: dois momentos essenciais e irrenunciáveis da missão .

– A mensagem a levar é dúplice: o dom da paz (o Shalom) no sentido bíblico mais completo, para as pessoas e as famílias (v. 5); e a mensagem de que «está perto o Reino de Deus» (v. 9.11). O Reino de Deus constrói-se e intromete-se na história; o Reino é antes de mais uma pessoa: Jesus, plenitude do Reino. Quem o acolhe encontra a vida, a alegria, a missão: anuncia-o a toda a família humana.

– O estilo da missão de Jesus e dos discípulos é o oposto do dos poderosos de turno ou do das multinacionais. A missão não assenta na vontade de domínio, na arrogância, na cobiça (coisa de lobos: v. 3), mas na proposta humilde, respeitosa, livre de seguranças humanas (bolsa, sandálias, v. 4); está atenta aos mais fracos (doentes, v. 9), é oferecida na gratuidade, sem receber recompensas (v. 20).

O Evangelho de Jesus é mensagem de vida verdadeira, porque convida a confiar apenas em Deus, que é Pai e Mãe (I leitura); e a confiar em Cristo crucificado e ressuscitado (II leitura) para a salvação de todos.

– Os trabalhadores são poucos, pobres e fracos perante um mundo imenso; Paulo encontra força apenas na cruz de Cristo (v. 14) … São sinais e garantia de que o Reino pertence a Deus, de que a Missão é Sua.