Onde tudo começa
Ainda antes de cumprir um ano, Dilexit Nos continua a germinar na Igreja como semente lançada no silêncio. Uma semente que, à maneira do coração de Cristo, germina ferida. No centro da encíclica, uma frase permanece como um selo silencioso: “O coração de Jesus revela o coração de Deus” (DN 1). Mas não o revela na clareza dos tratados — revela-o aberto, ferido, silencioso.
E é nesse Coração trespassado que se inicia esta meditação. Um lugar de ternura vulnerável, onde a alma encontra não respostas, mas repouso. Atravessada pela luz de Cristo, é ali que ela reaprende a escutar. E a recordar.

Carlos Vieira
Jun 27, 2025
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João da Cruz nunca comentou diretamente aquela ferida descrita pelo evangelista, feita por uma lança e de onde brotaram sangue e água (Jo 19,34). Mas toda a sua linguagem nasce desse mesmo espaço aberto. Fala da noite, da centelha, da ferida, da chama. Não para descrever o mistério, mas para habitá-lo.
Há imagens que, uma vez acolhidas, permanecem. A do pássaro que voa ao alto, longe do ruído, é uma delas (cf. D, 123; C 14, 3). Não canta por ser escutado — canta porque foi ferido. João da Cruz não descreve estados da alma; oferece-nos figuras. E essa figura, discreta e fiel, reaparece sempre que a memória reencontra o essencial: um amor que basta, mesmo quando tudo parece faltar.
Mas se há voo, é porque houve lugar para repousar. E ao lado do pássaro, ergue-se a tenda. Como no deserto, onde Deus falava com Moisés “face a face” (Ex 33,11). Não um templo sólido, mas uma morada frágil, nómada como o nosso Deus (cf. Ez 11,16), feita de silêncio e presença. Uma figura da alma orante. Uma figura da Igreja despojada. Uma figura do Coração.
Entre o voo e a tenda, entre o canto e o silêncio, entre a ferida e o repouso, esta página deseja abrir-se como memória. Não memória de um passado encerrado, mas daquela realidade que persiste: um amor que fere sem destruir, e acolhe sem exigir.
1 — A ferida que se abre: onde começa a escuta
Há gestos que não se explicam. Apenas se revelam. Um deles é este: “Um dos soldados trespassou-lhe o lado com uma lança, e logo saiu sangue e água” (Jo 19,34). João, o evangelista, escreve-o sem ênfase, mas quem leu com o coração sabe: é ali, naquela abertura, que começa a nova criação.
Dilexit Nos lê esse momento como chave de tudo: “Naquele que foi trespassado, vemos o amor com que fomos amados” (DN 3).
O coração de Jesus não é símbolo poético, nem figura devocional. É lugar real. Lugar onde o amor se expõe. Onde o dom se consuma. Onde Deus se torna morada. Onde a fonte brota.
Sem comentar diretamente esse versículo, João da Cruz habita, no entanto, o seu significado mais profundo. Toda a sua linguagem nasce desse mesmo espaço aberto. Fala da centelha que fere, da chama que consome, da noite que prepara o encontro. Não fala de Deus como ideia, mas como presença. Não explica o amor — sofre-o.
Num dos seus ditos mais silenciosos, escreve: “O amor não se alegra senão com o amor. E quanto mais amor, tanto mais sofrimento; e quanto mais sofrimento, tanto mais amor”(D, 28).
Aqui, o sofrimento não é derrota: é sinal de que o amor é verdadeiro. Como o Coração trespassado, a alma ferida não se fecha. Permanece aberta. E por isso mesmo, torna-se dom.
É nesse espaço que se ergue a tenda. Não mais no deserto externo, mas no íntimo da alma. Como para o profeta Ezequiel, também aqui Deus recusa ser confinado a um lugar: acompanha, habita, desloca-se (cf. Ez 11,16). A tenda é frágil, sim. Mas é ali que Ele fala.
Na Subida do Monte Carmelo, João da Cruz recorda que Deus “fala ao coração no silêncio” (S 2, 22, 3; OC, p. 333). E talvez seja por isso que a ferida se torna palavra — não dita, mas escutada.
Na tenda da alma, como no lado aberto do Crucificado, o repouso não elimina a dor: transforma-a em presença acolhida. E nesse repouso, a alma aprende a amar sem exigências, a esperar sem certezas, a cantar mesmo sem escuta.
E é essa ferida acolhida que prepara o voo.
2 — O voo que não foge: liberdade que nasce da escuta
Há momentos em que o silêncio amadurece em liberdade. A alma, tocada no mais profundo, começa a desprender-se. Já não busca certezas nem sinais. Apenas sobe. Leve e recolhida como o voo do pássaro solitário.
João da Cruz descreve-o com cinco traços, num breve dito que se tornou figura de caminho: “Voa ao alto, não deseja companhia, enfrenta o vento, não tem cor, e canta”(D, 123). Mas não enumera para definir. Dá imagens a quem se dispõe a segui-las. O pássaro solitário é o retrato de uma alma liberta — aquela que se deixou tocar e já só deseja amar.
Na encíclica Dilexit Nos, essa liberdade surge como fruto do repouso. Só quem mergulha no coração de Cristo é capaz de amar como Ele: sem cálculo, sem reservas, com confiança inteira (cf. DN 45). É no descanso interior que a entrega se torna possível.
No Cântico Espiritual, a alma reconhece que já não guarda rebanho, nem se ocupa de outro ofício senão o de amar (CB 14). A missão agora não tem forma definida — só fidelidade. O voo não é evasão: é permanência elevada. O canto não nasce da resposta — mas da gratidão.
Contudo, o pássaro não voa sem ter onde pousar. Pousou onde não havia segurança — apenas ferida. Encontrou a tenda. Aquela que não protege do vento, mas oferece um centro. Um lugar onde o silêncio se transforma em escuta. E a escuta, em resposta.
Na Chama de Amor Viva, João da Cruz fala da alma que arde porque foi ferida no mais profundo centro: “Ó chama de amor viva, que ternamente feres…” (Ch, 1). O fogo não consome, transforma. E transforma porque não impõe: toca.
É nesse lugar — entre o voo e a ferida — que a alma aprende a cantar. Não com palavras, mas com presença. Não com força, mas com fidelidade. E o canto, nascido do interior, já não é feito de som: é feito de dom.
3 — O canto que nasce da ferida: fidelidade que se faz melodia
Cantar, quando tudo é silêncio. Permanecer, quando já não há garantias. O pássaro solitário não canta porque encontrou o que procurava — canta porque foi tocado. E esse toque deixou uma marca.
João da Cruz fala dessa marca como uma ferida viva. Em Chama de Amor Viva, a alma é atingida “no mais profundo centro”, não com dor que destrói, mas com amor que transforma (Ch, 1). É uma ferida que consente, não que rasga. Uma ferida que abre caminho à presença.
É desse lugar que nasce o canto. Não um canto decorativo, mas essencial. Não para ser ouvido, mas porque já não pode calar-se. A alma canta como quem respira. E respira porque confia.
Dilexit Nos fala dessa confiança como raiz do dom: quem repousa no coração de Cristo aprende a amar com liberdade. Um amor que não exige retorno. Que não mede o gesto. Que se oferece inteiro (cf. DN 45).
No Cântico Espiritual, a alma já não vive ocupada de outras coisas: tudo se converte em amor (CB 14; OC). O canto não surge do desejo de ser notada, mas da fidelidade ao Amado. Mesmo na noite. Mesmo sem resposta.
Essa fidelidade tem sede. E essa sede tem voz: “A minha alma tem sede de Vós, Senhor, o meu corpo suspira por Vós como terra árida, sequiosa, sem água” (Sl 63,2).
O silêncio da ferida torna-se oração. A sede transforma-se em cântico.
Não é preciso muito. Há feridas que, aceites, se tornam fonte. Há silêncios que, habitados, se tornam resposta. Quando a alma é atingida pelo Amor e consente, o que brota já não é grito, mas melodia. Uma melodia interior, feita de fidelidade e memória.
O silêncio da ferida gera melodia — não porque a dor desapareça, mas porque foi acolhida como lugar de encontro. E só canta assim quem permaneceu. Quem não fugiu do lugar onde foi tocado.
Na ferida, o repouso. No repouso, a escuta. E da escuta, o canto. Assim se forma a alma pascal. Não por força, mas por fidelidade.
4 — Quando o canto se torna caminho: missão que brota do silêncio
O canto não se extingue em si mesmo. Tocado pela ferida e aquecido pela fidelidade, ele começa a transformar o espaço em volta. O que nasceu no silêncio interior desdobra-se, sem alarde, em presença.
João da Cruz nunca separa interioridade e missão. Viveu retirado, mas nunca indiferente. O fogo que o consumia na cela transbordava em direção a outros: no cuidado das comunidades, no discernimento, na palavra certa que não feria. A cela foi escuta; a ação, fidelidade.
Numa das suas frases mais desarmantes, escreve: “Onde não há amor, ponde amor, e encontrareis amor” (D, 57).
A encíclica Dilexit Nos retoma essa mesma lógica. Quem repousa no Coração de Cristo é chamado a tornar-se sinal operante desse amor. Não por força. Não por protagonismo. Mas com uma presença que escuta, acolhe e permanece (cf. DN 60).
Esta missão não se impõe de fora. Cresce a partir de dentro. E manifesta-se não pelo brilho dos feitos, mas pela firmeza dos gestos fiéis.
Por isso, João da Cruz mostra, no Cântico Espiritual, que outros passaram antes, deixando rasto. Há um momento em que a alma, já unida ao Amado, olha para trás e reconhece esse vestígio. Não são figuras ruidosas nem grandes anunciadores. São aqueles que caminharam no bosque, passo a passo, seguindo as pegadas do Amado. A sua presença não se fez notar por palavras altissonantes, mas pelos gestos discretos e graciosos — os “ofícios” feitos com delicadeza (cf. CB 27). São vestígios leves, quase invisíveis, mas profundamente transformadores.
Como folhas pisadas que exalam perfume, essas vidas deixam uma memória de bondade. A alma reconhece nelas o anúncio silencioso do Amado — e compreende que a missão nunca será ruído, mas presença fiel.
A tenda de encontro, que ao longo destas páginas permaneceu como figura de abrigo e morada, reaparece agora com outro contorno. Já não apenas como refúgio interior, mas como imagem da Igreja leve e atenta. Uma Igreja que escuta antes de ensinar. Que serve antes de falar. Que permanece sem se impor.
A mesma fonte que acolheu, envia.
O pássaro, depois do canto, não regressa à solidão por nostalgia. Regressa para reencontrar o lugar onde foi tocado. E volta a partir. Leve, fiel, ferido — como quem sabe que a missão começa no silêncio e só se cumpre no dom.
5 — Onde tudo repousa: memória que se faz dom
O Coração de Jesus não é apenas o lugar onde o amor se revela. É também o lugar onde o amor descansa. A alma, tendo sido tocada, não precisa de outro abrigo. É ali que pousa. Não para se deter, mas para respirar.
João da Cruz soube habitar esse espaço com fidelidade. Não o desenhou com doutrina, mas com símbolos: chama, noite, vento, centelha, bosque, fonte escondida. E, ao centro, a ferida. Uma ferida onde a alma se detém, não para sofrer, mas para escutar. Não para entender, mas para permanecer.
Dilexit Nos recorda que só quem repousa nesse Coração aprende a amar como Ele — com ternura e firmeza, com compaixão e verdade (cf. DN 52). Esse repouso não é recuo. É obediência à presença. É o lugar de onde nasce o canto, mesmo na noite.
A tenda de encontro, que ao longo destas páginas foi símbolo de abrigo e missão, revela agora o seu nome mais secreto: Coração. Lugar onde Deus espera. Onde a alma repousa. Onde a ferida já não é sinal de dor, mas de pertença.
No Cântico Espiritual, há um verso que poderia servir de epílogo: “Ó bosques e espessuras, plantadas pela mão do meu Amado, dizei se por vós tem passado” (CB 4, v. 1).
Sim, passou. E deixou sinais. Não para que se veja, mas para que se reconheça. No coração aberto, na tenda erguida, no canto guardado.
O voo permanece. A ferida também. E entre ambos, a fidelidade.
Senhor, faz de mim um pássaro solitário:
que voe alto na Tua procura,
que nada busque senão a Tua presença,
que ponha o bico ao vento do Espírito,
que cante só quando for por Ti ferido.
E que o meu canto, ferido e fecundo,
seja dom e bênção para os que vivem esquecidos no bosque dos homens.
Para que saibam que há abrigo.
Para que se lembrem que são esperados.