Solenidade de Pentecostes (ciclo C)

Atos dos Apóstolos 2,1-11
Quando chegou o dia de Pentecostes, os apóstolos estavam todos reunidos no mesmo lugar. Subitamente, fez-se ouvir, vindo do céu, um rumor semelhante a forte rajada de vento, que encheu toda a casa onde se encontravam. Viram então aparecer uma espécie de línguas de fogo, que se iam dividindo, e poisou uma sobre cada um deles. Todos ficaram cheios do Espírito Santo e começaram a falar outras línguas, conforme o Espírito lhes concedia que se exprimissem. Residiam em Jerusalém judeus piedosos, procedentes de todas as nações que há debaixo do céu. Ao ouvir aquele ruído, a multidão reuniu-se e ficou muito admirada, pois cada qual os ouvia falar na sua própria língua. Atónitos e maravilhados, diziam: «Não são todos galileus os que estão a falar? Então, como é que os ouve cada um de nós falar na sua própria língua? Partos, medos, elamitas, habitantes da Mesopotâmia, da Judeia e da Capadócia, do Ponto e da Ásia, da Frígia e da Panfília, do Egipto e das regiões da Líbia, vizinha de Cirene, colonos de Roma, tanto judeus como prosélitos, cretenses e árabes, ouvimo-los proclamar nas nossas línguas as maravilhas de Deus».
Referências bíblicas
- Missa da vigília
- 1ª leitura: «Foi chamada Babel, porque aí o Senhor confundiu a linguagem de todo o mundo» (Gn 11,1-9).
- Salmo: Sl. 103(104) – R/ Enviai o vosso Espírito, Senhor, e da terra toda a face renovai.
- 2ª leitura: «É o próprio Espírito que intercede em nosso favor com gemidos inefáveis» (Romanos 8,22-27).
- Evangelho: «Rios de água viva jorrarão do seu interior» (João 7,37-39).
- Missa do dia
- 1ª leitura: «Todos ficaram cheios do Espírito Santo e começaram a falar em outras línguas» (Atos 2,1-11).
- Salmo: Sl. 103(104) – R/ Enviai o vosso Espírito, Senhor, e da terra toda a face renovai.
- 2ª leitura: «A cada um é dada a manifestação do Espírito em vista do bem comum» (1 Cor 12,3-7.12-13).
- Sequência: “Espírito de Deus, enviai dos céus um raio de luz!”
- Evangelho: «Soprou sobre eles e disse: ‘Recebei o Espírito Santo’» (João 20,19-23).
Espírito Santo, o grande tradutor
José Tolentino Mendonça
Queridos irmãs e irmãos,
Nesta festa do Pentecostes nós percebemos melhor como cada um de nós, e todos nós em conjunto, somos uma consequência do Espírito Santo. Cada dia da nossa vida é um dia de Pentecostes.
O dia de Pentecostes não foi apenas aquele dia, concreto, em que o Espírito Santo desceu sobre os Apóstolos reunidos no cenáculo. O Pentecostes passou a ser o tempo da Igreja, passou a ser o tempo do mundo, o tempo de cada crente. Porque, em cada dia, o Espírito Santo vem em nosso auxílio, o Espírito Santo desce sobre nós, o Espírito Santo está connosco, testemunha o amor de Deus no nosso coração. Diz ao nosso coração: “Podes acreditar em Deus, confia Nele, Deus é credível, podes amá-lo, podes confiar no Seu amor e na Sua Palavra.” O Espírito Santo vem até nós como defensor, não deixa que a voz da noite fale ao nosso coração, não deixa que a voz da sombra ou da violência ou do temor se sobreponham à voz, tantas vezes frágil, da própria esperança, da própria confiança.
O Espírito Santo vem até nós como laboratório da criatividade, da invenção de Deus no nosso coração. Porque o alfabeto com que Deus Se escreve é sempre novo, em cada pessoa, em cada crente, em cada tempo, em cada dia, em cada instante. O Espírito Santo é essa criatividade em ato que nos estimula a sermos diferentes, a sermos originais. E conspira para, na nossa diferença, na nossa singularidade irredutível nós nos conseguirmos entender, conseguirmos criar laços de fraternidade, conseguirmos ser um único pão partido e distribuído para a fome do mundo. Por isso, nós somos consequência do Espírito Santo, e precisamos rezar mais ao Espírito Santo na nossa vida, porque Deus é Pai. E nós sabemos como o Pai é essa arquitetura fundante daquilo que somos, o Pai está na origem da nossa própria vida. Este Pai foi-nos revelado pelo Filho e a experiência da filiação, a certeza de que somos filhos, a descoberta, como diz S. Paulo, de que: “Não somos escravos, mas somos filhos”, é uma descoberta que nos instaura como sujeitos crentes. De facto, nós não somos servos, somos filhos, não somos escravos somos herdeiros. Foi Jesus quem nos revelou isso e esta filiação vivida em cada um de nós.
E o que é a filiação? A filiação é a certeza de que a nossa vida está fundada num amor incondicional. A nossa vida é amada de uma forma ilimitada. Não é hipotético, não é se, se, se… A nossa relação com Deus não é se nos portamos bem, Deus gosta de nós. Ou, se nos comportarmos bem, vamos para o céu. Não, a nossa relação com Deus é a relação de um amor incondicional, a descoberta de que nada nem ninguém nos pode separar desse amor. E mesmo em relação aos pecados, na noite da Páscoa, nós cantamos: “Feliz pecado que te deu a conhecer tal Redentor.” Então, de facto, a experiência de filiação que Jesus nos vem revelar é a experiência de uma filiação infalível, indestrutível que nós descobrimos como código da esperança, tatuado no nosso coração e que já não se pode apagar mais.
Mas Jesus partiu. Ficou-nos a Sua palavra, a Sua presença eucarística. Como é que nós hoje descobrimos Deus vivo na história? Descobrimos através do Espírito Santo que é este Deus, é esta presença de Deus que o Pai e o Filho enviam a assistir aos crentes ao longo da história. E como é que o Espírito Santo se traduz na nossa vida? Traduz-se através da multiplicidade dos dons, desta confiança esparsa, espalhada, infundida, radicada em cada um de nós mas também através daquilo que nós descobrimos que é possível. Porque, se calhar, nós temos mais competências, mais capacidades, há mais potencialidades em nós do que nós pensamos. E, se calhar, ficamos a vida toda a achar que não somos capazes disto e daquilo, que os milagres não são para nós. E, se calhar, os milagres estão na ponta das nossas mãos, estão no interior das nossas palavras, estão nessa capacidade de revitalizar, de acordar a vida, de afirmar que a vida é maior do que a morte, de cuidar, de curar, de transformar a história. Isso é o Espírito em ação, o Espírito em atividade.
O Espírito Santo é dado a mulheres e homens que não têm uma vida isenta, não têm uma vida neutra. É muito duro e muito belo aquilo que nos é descrito por S. João, nesta cena que nós lemos para este dia de Pentecostes.
Os Apóstolos estão reunidos, com as portas fechadas, com medo dos judeus. Quer dizer, eles não estão numa atitude de confiança, leve de coração. Não, estão afundados no seu medo, na intranquilidade, no “ Ai, ai! O que é que vai ser agora?”, no “Não sabemos“, no “Não estamos a ver como é que vamos prosseguir o caminho.” Estava tudo fechado no medo. E Jesus vem, atravessa o medo deles, perfura o medo deles e diz: “ A paz esteja convosco.” E mostra-lhes as feridas, as próprias feridas e o lado. Quer dizer, nós não vamos receber o Espírito Santo para lá das nossas feridas. Se não tivermos feridas recebemos o Espírito Santo, não é isso.
É a mulheres e homens feridos, feridos pela vida, pelos lutos múltiplos, pelos sofrimentos, pela fragilidade, até pela própria imperfeição, pelo inacabamento. É a mulheres e homens feridos que Jesus vem dizer: “A paz esteja contigo.” E é a estas vidas que se calhar não vêem bem como é que podem prosseguir: “E agora? Como é que vai ser? Não vemos claro como é que possa ser o passo seguinte, o dia seguinte, a estação seguinte da nossa vida.” É a esses, que somos nós, que Jesus vem e sopra, sopra. E esse sopro, faz uma citação do primeiro momento da criação em que Deus amassa o Homem da fadiga do barro, da fragilidade da terra, e sopra nas narinas e o Homem vive. E agora Jesus também na fadiga da nossa existência, na sua interminável fragilidade.
Jesus vem e não diz: “Acabou a fragilidade, acabaram as lágrimas, acabou o medo.” Não diz nada, mas sopra sobre nós. E este sopro que cada um de nós recebe é que nos dá a capacidade de entender, de compreender de uma outra forma. Se calhar a grande mudança, a grande transformação é também um exercício de compreensão, uma abertura do nosso olhar, uma capacidade de entender. É interessante que os Atos dos Apóstolos contam o Pentecostes como uma capacidade de tradução. O Espírito Santo é o grande tradutor dos acontecimentos, cada um fala numa língua diferente mas eu sou capaz de entender a diversidade das línguas com que a vida me fala e essa capacidade hermenêutica é um dom que o Espírito Santo nos dá, é o Espírito Santo em ato, em nós.
Queridos irmãs e irmãos, recebamos o Espírito Santo. Este Espírito que é múltiplo, múltiplo. Um cristão tem de ser singular. Cada um de nós tem de viver a fé na sua criatividade, a fé também é fantasia de acreditar. A fé também é um exercício de imaginação. Nós temos de ser diferentes. Temos de receber o Espírito Santo e fazer com Ele a nossa viagem, o nosso caminho.
O Espírito Santo é o contrário do cinzentismo, é o contrário da formatação, é o contrário do tudo igual, da diluição no mesmo que tantas vezes é uma tentação. Não, o Espírito Santo é esta unicidade, é esta diversidade, é esta polifonia. E, ao mesmo tempo, é percebermos que a diferença não é um obstáculo ao encontro. Mas é nas nossas diferenças, na nossa diversidade que podemos criar um corpo, que podemos criar uma orquestra. Que é uma imagem que S. Paulo também usa, no capítulo 14 da carta aos Coríntios: podemos ser uma flauta, um címbalo, uma harpa e todos juntos nos encontrarmos para tocarmos a seu tempo, com as linguagens aproprias de cada um, tocarmos a mesma peça. E assim, enchermos o mundo de esperança, mostrando que é possível.
Para nós, o Espírito Santo é um mapa, é um programa de vida, é a nossa modalidade de existência. E o Espírito Santo, se nós estivermos atentos à linguagem bíblica vem de duas maneiras. Vem pela infusão. Isto é, o Espírito Santo derrama-Se em Línguas de Fogo sobre cada um. Isto é, o Espírito Santo transforma-Se na minha vida. A minha vida é uma vida espiritualizada. E depois, já não se consegue separar o que eu sou daquilo que o Espírito é em mim, somos uma coisa só. Então, o Espírito é o que cada um é, é o que cada um traz, é o que cada um pode, é o que cada um sonha. Isso é o Espírito Santo que está esparso em cada um de nós, que está misturado, criativamente confundido, assimilado à nossa vida. E é tão importante isso, assimilarmos o Espírito Santo, recebermos o Espírito Santo, pedirmos que Ele venha como uma chuva sobre nós. Uma chuva que nos fortalece, que nos dá o sentido da sabedoria, da ciência, da caridade, da esperança, da alegria, a capacidade de irmos ao encontro uns dos outros. Este Espírito Santo que vem até à nossa vida, é quase uma dimensão fusional. Que também tem de haver, sempre, porque Deus está em nós, Deus está em nós. E é importante que cada um de nós o descubra dentro de si, e descubra dentro de si qual é o dom que o Espírito Santo lhe deu. Qual é o dom mais forte que o Espírito Santo deu a cada um de nós? Porque cada um de nós tem esse dom derramado no seu coração e tem de trabalhar esse dom, em termos espirituais, fazer um caminho com ele. Por isso, o Espírito Santo é infusão, o Espírito Santo é fusão com a nossa vida.
Mas o Espírito Santo também é diferenciação. Porque Jesus diz: “O Espírito sopra onde quer, e nós não sabemos de onde Ele vem nem para onde Ele vai.” Então o Espírito não é só isto que está derramado em nós, o Espírito é isto que nós olhamos com espanto, com surpresa. Isso que nos faz dizer: “Ai é? Mas como é que pode ser?” O Espírito Santo é esta desinstalação, é este assombro, é este desassossego. Porque Deus surpreende-nos, Deus surpreende-nos, Deus não está apenas aqui. Nós não enceramos Deus, não domesticamos Deus. E, se calhar, aquele que nos vai dizer a palavra do Espírito Santo não pertence a este redil, não pertence à Igreja, não é batizado, não é cristão, é alguém que vem doutro mundo, doutra referência, doutra história. Mas nós percebemos que o Espírito Santo está nele e o que ele diz ilumina-nos, o que ele diz transporta o vento de Deus, o hálito de Deus, o sopro de Deus, esta capacidade de nos deixarmos surpreender pelo Espírito.
De facto, num mundo como o nosso, na sua heterogeneidade, nós temos de perceber que a surpresa de Deus acontece todos os dias. Não podemos trancar Deus em quatro paredes. O Espírito Santo é maior do que a Igreja, o Espírito Santo é maior do que a Igreja, o Espírito Santo é maior do que a nossa tradição. E, por isso, nós temos de ser mulheres e homens que escutam, que se deixam surpreender, que se deixam habitar. Muitas vezes por palavras que chegam em línguas diferentes, em códigos diferentes, em tradições diferentes, mas que nós reconhecemos que nelas, através delas chega-nos o único Espírito Santo. Por isso mesmo, ao mesmo tempo que Ele está em nós e está connosco e nos habita e é aquilo que nós somos e somos uma consequência do Espírito Santo, o Espírito Santo pede que sejamos peregrinos, atentos, de coração aberto, ecuménicos. Capazes de perceber que noutra religião ou noutro humor ou com outras palavras o Espírito Santo está nesta hora a ser declinado, a ser pronunciado, a ser dito, a ser transmitido.
Queridos irmãos, é uma bela festa esta do Espírito Santo, vamos pedir por cada um de nós, para que o Espírito encontre em nós o lugar de ressonância, o lugar de crescimento, que nos deixemos revitalizar pelo Espírito. Que muitas vezes, ao longo dos nossos dias, nós peçamos a Deus que venha o Espírito Santo. Espírito Santo, vem até nós, vem até mim, renova-me, refunda-me, traz-me o dom que eu preciso nesta hora da minha vida. E ao mesmo tempo, que o Espírito seja uma janela aberta, uma disponibilidade, uma atenção ecuménica, uma capacidade de tolerância, de entendimento, de compreensão. Porque, só isso nos faz vencer o medo e as portas trancadas.
O Espírito Santo: a Memória do Futuro!
Raymond Gravel
A celebração do Pentecostes encerra o tempo pascal. É, portanto, tendo sempre presente a Páscoa que devemos celebrar esta festa do Espírito Santo. Não devemos fazer do Pentecostes um acontecimento material e histórico; é no centro da Páscoa de Cristo, morte e ressurreição, que o Espírito foi dado aos discípulos e que é dado a nós ainda hoje. O Espírito que ressuscitou Jesus e que o fez Cristo e Senhor, é o mesmo Espírito, nos diz São Paulo, que nos faz filhos e filhas de Deus: “O próprio Espírito assegura ao nosso espírito que somos filhos de Deus” (Rm 8, 16). Se a Páscoa é a fonte e o cume da vida cristã, com o Pentecostes completa-se a nossa vida cristã. Mas o que muda para nós o fato de sermos habitados pelo Espírito Santo, o Espírito de Cristo?
1. O Espírito é Amor
No Evangelho de São João, Deus é Amor e para conhecê-lo precisamos fazer a experiência do Amor. E qual é? “Se alguém me ama, guarda a minha palavra, e meu Pai o amará. Eu e meu Pai viremos e faremos nele a nossa morada” (Jo 14, 23). Se eu li corretamente este versículo do evangelista João, é o Amor que nos une a Cristo e a Deus. Mas como sabê-lo? “Se vocês me amam, obedecerão aos meus mandamentos. Então eu pedirei ao Pai, e ele dará a vocês outro Defensor, para que permaneça com vocês para sempre” (Jo 14, 15-16). E São João precisa (infelizmente, essa parte foi excluída do evangelho de hoje): “Ele é o Espírito da Verdade, que o mundo não pode acolher, porque não o vê nem o conhece. Vocês o conhecem, porque ele mora com vocês e estará com vocês” (Jo 14, 17).
Portanto, se formos capazes de amar, segundo o Evangelho de João, é porque somos habitados pelo Espírito de Cristo que é Amor. A questão que surge é a seguinte: será o Amor seletivo? Devemos amar somente aqueles e aquelas que pensam como nós ou que fazem parte da mesma Igreja que nós? A resposta é, evidentemente, não! Porque o Espírito é universal.
2. O Espírito é universal
Isso quer dizer exatamente o quê? Em sua primeira carta aos Coríntios, São Paulo escreve: “Existem dons diferentes, mas o Espírito é o mesmo; diferentes serviços, mas o Senhor é o mesmo; diferentes modos de agir, mas é o mesmo Deus que realiza tudo em todos. Cada um recebe o dom de manifestar o Espírito para o bem de todos” (1 Cor 12, 4-7). Será que o Espírito habita mais os católicos que os outros cristãos ou mesmo que os outros crentes? Não creio, porque na história, numerosos são aquelas e aqueles que, por Amor, souberam trabalhar “em vista do bem de todos” (1 Cor 12, 7), tornando o mundo melhor e mais humano. Há mesmo, entre eles, aqueles que se dizem não crentes: são eles habitados pelo Espírito sem mesmo sabê-lo? Talvez! A questão, entretanto, permanece aberta.
Uma coisa é certa: no livro dos Atos dos Apóstolos, na primeira leitura de hoje, quando Lucas relata o acontecimento teológico do Pentecostes, são todas aquelas e todos aqueles que estavam reunidos que ficaram repletos do Espírito Santo (At 2, 4). São Lucas não diz que somente os virtuosos são habitados pelo Espírito. Não! Podemos supor que eram muitos os que estavam ali reunidos junto com os Doze e os discípulos, transformados pelo Amor e reunidos num mesmo lugar teológico, isto é, o coração humano, onde o Espírito estabelece sua morada.
3. O Espírito é movimento
No evangelho de São João, Jesus fala da fidelidade à sua palavra (Jo 14, 23). Normalmente, diz o exegeta francês Jean Debruynne, “a imagem que, com mais naturalidade, vem da fidelidade é da solidez, isto é, da rocha, do enraizamento, do que resiste e que não se move. Jesus, ao contrário, inscreve a palavra fidelidade no movimento. Para Jesus, a fidelidade não é uma estátua ou um monumento; o Espírito é movimento”. No fundo, a fidelidade exige o Amor e o Amor não pode ser estático. Amar é não se apegar ao passado; é olhar sempre para frente, para o futuro: é evoluir, questionar-se, converter-se, deixar-se transformar pela vida. O Amor não é nunca intransigente, intolerante; o Amor espera e permite que todos os possíveis se realizem. E é o Espírito que habita o coração daquela e daquele que ama, que age e que se coloca em movimento.
Lembremo-nos de que, na semana passada, no Evangelho de Lucas, após a Ascensão, os discípulos retornaram ao Templo de Jerusalém: “E estavam sempre no Templo, bendizendo a Deus” (Lc 24, 53). Isso quer dizer que eles ainda não estavam em movimento; eles não tinham tomado consciência de que eram habitados pelo Espírito Santo e que deviam sair do Templo para partir em missão. Nesse dia do Pentecostes eles se deram conta de que deviam sair do Templo para transmitir o sopro de vida (vento), para reunir no Amor todos os povos (fogo) e para comunicar a todos e todas o Amor universal (línguas). Este é o papel do Espírito Santo.
4. O Espírito é Memória
“Mas o Defensor, o Espírito Santo, que o Pai vai enviar em meu nome, ele ensinará a vocês todas as coisas e fará vocês lembrarem tudo o que eu lhes disse” (Jo 14, 26). Mas atenção! O que Jesus disse não é um fim em si: é um começo, é uma semente. E o Espírito Santo, o Espírito de Deus que é a energia que cria e recria, faz acontecer a Palavra, a partir desta semente que era Jesus Cristo, Palavra e Verbo de Deus. O Espírito Santo vem hoje avivar a nossa memória; ele nos faz lembrar o Futuro.
O teólogo francês Gérard Bessière escreve: “Esta memória é uma semeadura. Nela se esconde a semente lançada pela mão do semeador, a minúscula mostarda que promete crescimentos noturnos e o grão que parece morto no sulco ensanguentado. Palavras e atos de Jesus fermentam no terreno da nossa história, mesmo nos lugares humanos mais afastados das nossas igrejas”.
Concluindo, simplesmente gostaria de acompanhar a reflexão de Gérard Bessière, que escreve: “Um teólogo escreveu que, ao celebrar a Eucaristia, os cristãos se recordam do que será. Estranha memória voltada para o futuro. Mas verdadeira memória de Jesus, porque havia milhares de antecipações em relação ao seu tempo e nós apenas começamos a caminhar na direção do horizonte que ele nos mostrou. Gostaria que todo homem, e toda a humanidade, se tornasse novamente criança, e mesmo nascesse de novo. Suas atitudes, suas iniciativas, suas partilhas eram contagiantes desta vida inesperada onde as crispações, as durezas, os remordimentos se apagam na liberdade fraterna das crianças do Deus caloroso que dá e perdoa. Sonho, utopia? Sim, mas sonho e utopia que fecundam a história e que reavivam incessantemente os homens. O Espírito nos faz lembrar o que será. Nas trevas em que muitas vezes andamos tateando, é fogo que abrasa, ilumina e aquece”.
O Espírito Santo é a Memória do Futuro…
«Anunciar (e ouvir) as maravilhas de Deus»
Marcel Domergue, SJ
O Espírito e nós
O Espírito visto da nossa parte, ou seja, sem que por ora nos preocupemos com o que signifique na Trindade, é o próprio Deus agindo em nossas vidas. Às vezes, as Escrituras O comparam ao óleo, usado para se fazer penetrar os materiais mais duros. Deste modo, também o Espírito Santo pode vir desposar o nosso próprio espírito, conferindo à Aliança a sua forma perfeita. Paulo diz que é Ele que “intercede em nosso favor”; sem dúvida, desde que Lhe demos licença para exprimir-se por nós. Quando Jesus estava conosco, aqui na terra, Deus nos permanecia exterior; já, pelo Espírito, Ele se nos torna interior. Somos, pois, assim, «Templos do Espírito Santo», habitação de Deus (1 Cor 6,19). O divino Espírito tornou-se o dinamismo mesmo que nos põe em movimento, rumo à nossa criação perfeita e acabada. É preciso, pois, corrigirmos a imagem do Templo, estática demais, e substituí-la pelas da respiração, que nos faz viver, e da força, necessária à caminhada. «Todo aquele que nasceu do Espírito» torna-se mobilidade: «não se sabe de onde vem nem para onde vai» (João 3,8).
O Espírito e Cristo
Alguns foram tentados a dizer que, no Antigo Testamento, os homens estavam sob o império do Pai; nos tempos evangélicos, sob o império do Filho; e, no tempo da Igreja, estamos sob o império do Espírito. Ora, isto é um pouco simples demais. Porque, na verdade, o Espírito não faz nada que também não façam o Pai e o Filho. Como Espírito do Pai e do Filho, Ele nos dá atitudes ao mesmo tempo paternais (e maternais) e filiais. Ele nos traz de volta ao Cristo e o que Ele forma em nós é a semelhança com o Cristo. Pelo Espírito, tornamo-nos “filhos de Deus”, assim como o Cristo. Pois, não é ao Espírito que as Escrituras atribuem a concepção e o nascimento de Jesus (Lucas 1,35)? O Espírito é fecundidade, é Ele que nos faz “dar frutos”. Muitos cristãos quase não pensam n’Ele, talvez por Ele ser de tal modo interior a nós, que a sua ação nos escape; assim como nos escapa, por exemplo, o funcionamento de nosso cérebro.
O Espírito e o mundo
O que acabamos de dizer poderia deixar acreditar que a vinda do Espírito é um acontecimento íntimo, referido somente a Deus e a mim. Mas não é nada disto, pois o Espírito é ligação. É passagem de um ao outro (do Pai ao Filho e do Filho ao Pai, na Trindade). Se o Espírito nos dá certezas filiais, só pode fazer isto conferindo-nos atitudes fraternais. Somos todos filhos, conjuntamente. Da mesma forma, o trabalho do Espírito consiste em dar ao Cristo um corpo de comunhão, feito de entendimento entre todos os homens, a começar pelos discípulos. A cena de Pentecostes (1ª leitura) nos mostra isto. Temos aí diversos homens chamados a se compreenderem – a se ouvirem – não somente numa linguagem única, como em Babel, mas conservando as diferenças. Este é o corpo descrito em Coríntios 12. Cada vez que estabelecemos laços verdadeiros, libertadores e criadores, encontramo-nos sob a mobilização do Espírito.
A Palavra e o Sopro
Eis o que sai da boca de Deus: o Sopro, de fato, é que nos sopra a Palavra. «O Espírito vos recordará tudo o que vos tenho dito», anuncia Jesus imediatamente antes de sua Paixão, em Jo 14,26. Em 16,12-15, João insiste em que o Espírito não tem outra Palavra que não seja a do Filho, no qual reside tudo o que há no Pai: «Tudo o que o Pai tem é meu.» O Espírito fala dentro de nós e o que Ele nos diz é o Filho, Palavra do Pai. De onde podem vir algumas dificuldades, porque o Espírito não é o único a falar dentro de nós; também falam a nossa vontade de poder, o medo de nos darmos em demasia ou de termos de nos suportar em demasia. São vozes discordantes que podem encobrir e sufocar a voz sem palavras do Espírito. E pode ser muito difícil identificar quem é que está falando dentro de nós. Muitas vezes, nada se parece mais com o anjo da luz do que o anjo das trevas. No relato das tentações de Jesus, os evangelistas, sem qualquer repugnância, colocam na boca do tentador citações das Escrituras ou a promessa de algo bom no futuro. Ora, o que pode haver de melhor do que defender a fé? Mas, se para isso há de se contar com as cruzadas ou a inquisição, saímos do âmbito de mobilização do Espírito. E como o mal pode facilmente ganhar a aparência do bem, João e Paulo já falavam no discernimento espiritual, tendo em vista identificar a voz que, aqui e agora, está falando dentro de nós. É preciso ter disponibilidade e confiança absolutas no Espírito.
O Espírito relança continuamente a Missão
Romeo Ballan, MCCJ
A festa hebraica de Pentecostes – sete semanas, ou 50 dias, após da Páscoa – inicialmente era a festa da ceifa do trigo (cf. Ex 23,16; 34,22). A ela se uniu, mais tarde, a recordação da promulgação da Lei no Sinai. De festa agrícola, o Pentecostes passou progressivamente a uma festa histórica: um memorial das grandes alianças de Deus com o seu povo (veja-se Noé, Abraão, Oseias, Jeremias 31,31-34, Ezequiel 36,24-27…). Para além de uma alteração no calendário, é importante notar uma nova perspectiva relativamente à Lei e ao modo de entender e viver a aliança. A Lei era um dom do qual Israel se orgulhava, mas era uma etapa transitória, insuficiente.
Era necessário progredir no caminho da interiorização da lei, caminho que atinge o cume no dom do Espírito Santo, que nos é dado, em vez da lei, como verdadeiro e definitivo princípio de vida nova. O Pentecostes cristão celebra o dom do Espírito Santo, «que é Senhor e dá a vida» (Credo). À volta da Lei, Israel construiu-se como povo. Na nova família de Deus, a coesão já não vem mais de uma ordem exterior, por muito excelente que seja, mas do interior, do coração, por força do amor que o Espírito nos dá, «porque o amor de Deus foi derramado nos nossos corações pelo Espírito Santo» (Rm 5,5). Graças a Ele (II leitura), «somos filhos de Deus» e clamamos: «Abbá, Pai!». Somos o povo da nova aliança, chamado a viver uma vida nova, por força do Espírito que faz de nós a família de Deus, com dignidade de filhos e herdeiros (v. 14-17). A uma tal dignidade deve corresponder um estilo de vida coerente. Paulo descreve dois estilos de vida contrapostos, conforme a opção de cada um: a vida segundo a carne e a vida segundo o Espírito (v. 8-13).
O Espírito conduz as pessoas e os grupos humanos, renovando-os e transformando-os a partir de dentro. O Espírito abre os corações, purifica-os, cura-os e reconcilia-os, ajuda a ultrapassar as fronteiras, leva à comunhão. É Espírito de unidade-fé-amor, na pluralidade de carismas e de culturas, como se vê no acontecimento do Pentecostes (I leitura), no qual se conjugam muito bem a unidade e a pluralidade, ambos dons do mesmo Espírito. Povos diferentes entendem uma única linguagem comum a todos: o mapa das nações deve tornar-se mesa de convívio, casa comum para «proclamar nas nossas línguas as maravilhas de Deus» (v. 11). S. Paulo atribui claramente ao Espírito a capacidade de tornar a Igreja una e multíplice na pluralidade de carismas, ministérios e modos de agir (cf. 1Cor 12,4-6). A Igreja tem diante de si o desafio permanente de ser católica e missionária: fazer passar a família humana de Babel a Pentecostes, de gueto a campo aberto, com a força do Espírito.
O Espírito que se manifesta como vento, fogo, dom das línguas, é o Espírito da missão universal. Melhor, Ele é o protagonista da missão (cf. RM cap. III; EN 75s.), que Jesus confia aos apóstolos e aos seus sucessores: para realizar essa missão, o Espírito está sempre presente e actuante, como assegura Jesus por bem cinco vezes no longo discurso depois da Ceia (Jo 14,16-17; 14,26; 15,26; 16,7-11; 16,13-15). É o Espírito Consolador (Evangelho) que permanece connosco para sempre, que permanece em quem ama (v. 16.23); é o Mestre que ensina todas as coisas e nos faz recordar aquilo que Jesus nos disse (v. 26). No Pentecostes os apóstolos compreenderam, finalmente, as palavras de Jesus que os enviou: ide por todo o mundo, fazei de todos os povos uma só família…
Um profeta moderno da missão e da unidade dos cristãos foi certamente Atenágoras, Patriarca de Istambul, homem cheio do Espírito, como se depreende também pelas seguintes afirmações: «Sem o Espírito Santo Deus fica longe, Cristo permanece no passado, o Evangelho é letra morta, a Igreja uma simples organização, a autoridade um poder, a missão uma propaganda, o culto um arcaísmo, a conduta moral uma conduta de escravos. Mas no Espírito Santo o cosmos é mobilizado para a geração do Reino, Cristo ressuscitado torna-se presente, o Evangelho torna-se poder e vida, a Igreja realiza a comunhão trinitária, a autoridade transforma-se em serviço, a liturgia é memorial e antecipação, a conduta humana é deificada».