Ascensão do Senhor (ciclo C)
Lucas 24,46-53


in volo

Referências bíblicas:

  • 1ª leitura: «Os apóstolos continuavam olhando para o céu, enquanto Jesus subia» (Atos 1,1-11)
  • Salmo: Sl. 46(47) – R/ Por entre aclamações, Deus se elevou, o Senhor subiu ao toque da trombeta!
  • 2ª leitura: «Ele pôs tudo sob os seus pés e fez dele, que está acima de tudo, a cabeça da Igreja, que é o seu corpo, a plenitude daquele que possui a plenitude universal» (Efésios 1,17-23)
  • Evangelho: «Enquanto os abençoava, afastou-se deles e foi levado para o céu» (Lucas 24,46-53)

A imagem de Deus
José Tolentino Mendonça

Nesta festa da Ascensão nós celebramos algo que também é misterioso: o facto de Jesus ser nosso companheiro de viagem, como acompanhou aqueles dois discípulos de Emaús, e ao mesmo tempo os nossos olhos não O verem, os nossos sentidos não O captarem. Hoje celebramos esta coisa misteriosa que é arder-nos o coração e ao mesmo tempo sentirmos o vazio, sentirmos a ausência, sentirmos o silêncio de Deus e aceitarmos esse silêncio como necessário. Aceitarmos a ausência de Jesus como o desejo Dele, como a normalidade da história da própria salvação.

Aceitar significa não tentar troques de manga, não tentar iludir essa dificuldade. Porque é difícil, porque nós próprios gostaríamos de mostrar Deus, nós próprios gostaríamos de dizer: “Este é o meu Deus.” Nós próprios gostaríamos de tocar, de sentir, de ver, de cheirar, de palpar o próprio Deus. Contudo, é no silêncio que nós acreditamos, é no vazio das imagens que nós prosseguimos. E às vezes a nossa tentação é de encontrar subterfúgios, de encontrar consolos, de encontrar oblívios que, de certa forma, nos ajudem a suportar o difícil silêncio de Deus na vida dos crentes.

Porque, como dizia Bernanos, o grande romancista católico, “Os Filhos de Deus também experimentam a medonha solidão que é o vazio de Deus, que é o silêncio de Deus nas suas vidas.” Para nós Deus não é fácil, para nós também Deus não é claro, Deus não é uma evidência, Deus não é domesticado, Deus não cabe nos nossos discursos, nas nossas imagens. É importante que o caminho da fé seja um caminho desconfortável também, seja um caminho de luta, seja um caminho de combate. Acreditar não é ter resolvido tudo, acreditar é sentir-se em estado de pergunta, é sentir-se em nascimento, sentir-se no interior de um parto incessante, de uma sucessão de começos. Isso é a história da nossa fé.

Porque, como nos diz S. Paulo na Carta aos Efésios: “Nós só podemos contar com duas coisas agora: só podemos contar com a força do Espírito Santo que Jesus envia do Pai.” Então, esta é a hora do Espirito Santo em nós, que vem até nós e dentro de nós nos conduz, progressivamente, à verdade plena. Podemos contar com o Espírito Santo e com essa espécie de iluminação dos olhos e do nosso coração, essa iluminação do olhar interior que nos conduz a uma compreensão, a uma hermenêutica da fé no meio do mundo.

É interessante como isto constituiu um grande desafio para a primeira geração de cristãos. Eles esperavam que Jesus fosse e viesse. Por exemplo, um homem como Paulo começou por acreditar que ainda durante a sua vida ele veria a segunda vinda de Cristo. E os primeiros cristãos viviam na expectativa do regresso de Cristo. Por isso, viviam numa espécie de suspensão em relação à história, não se envolviam, não sujavam as mãos no combate, não faziam demasiados investimentos porque esperavam uma vinda eminente de Jesus. Até que depois foram compreendendo, sem dúvida ajudados pelo Espírito Santo, que o mistério da fé é um mistério para viver no tempo e na espera. E esse é o lugar onde cada um de nós está, no tempo e na espera. Aceitando essa nuvem, aceitando essa espécie de cortina que não nos deixa ver tudo, aceitando que a nossa visão é incompleta, aceitando o vazio, aceitando a dificuldade da própria fé.

Entre um crente e um ateu, em muitos pontos, não há diferença nenhuma. Porque nenhum de nós vê, nenhum de nós tem o caminho facilitado, nenhum de nós tem uma via de acesso particular. É a nudez, é o vazio, são as mãos vazias aquilo que nos liga. E por isso, não fazem sentido as guerras religiosas, não fazem sentido as oposições, não fazem sentido. Como se nós víssemos mais do que os outros, não, nós não vemos e é preciso aceitar isso que os místicos nos dizem tão bem, o que esses grandes aventureiros do Espírito nos testemunham. S. João da Cruz, por exemplo, dizia: “A importância do nada no caminho espiritual.” Nada, nada, nada.

Uma fé feita de consolos é uma fé muito infantil. É uma fé que é preciso amadurecer e que a própria vida vai pôr em causa de muitas maneiras, é uma fé que tem de ser purificada. Porque a dada altura nós estamos agarrados ao consolo, estamos agarrados ao rebuçado e não estamos a viver a verdadeira espera de Deus. Não estamos a viver a vida no mistério da sua dureza, a vida como paradoxo, a vida como aporia. O lugar dos crentes não é um lugar que falsifica a história – nós não estamos numa ilusão, não procuramos um estádio que não existe, não queremos falsas consolações. Não, não vemos. Partimos daí, abraçamos, não temos medo de abraçar esse nada, esse silêncio.

Contudo, nós sabemos que o silêncio é lugar de pleroma, é lugar de plenitude como se diz em grego, é lugar da plenitude do sentido. Nós sabemos que este vazio de Deus, esta invisibilidade de Deus não é um obstáculo à relação, porque a relação continua. E se com os olhos da carne nós não O vemos, nós somos chamados a compreender a vida com os olhos do coração, a aceitar que hoje o lugar que o Espírito Santo nos indica como o lugar para encontrar Deus é na vida, é na história, é antes de tudo na pessoa humana, antes de tudo na vulnerabilidade da pessoa humana. É aí que nós encontramos Deus.

Estes dias, e hoje é o último espetáculo no teatro de S. Luís, esteve uma peça de um encenador italiano chamado Romeu Castellucci, intitulada: “Sobre a definição do rosto do Filho de Deus.” É uma peça crua, é uma peça difícil de ver, e é uma peça que tem duas imagens. O texto não tem uma única palavra que nós recordemos. O texto não tem importância, o encenador quis que fosse assim, um texto o mais chão possível. Mas são duas imagens no fundo, e dura uma hora a peça.

A primeira imagem é um filho a tratar de um pai, de um pai idoso, com muitas limitações. E até uma coisa dura de ver, mas que é realidade, com uma incontinência fecal. De maneira que ele tem sempre de estar a limpar o pai. E parece que já não vai conseguir limpá-lo, porque está sempre a acontecer a mesma coisa, o mesmo acidente. E é duro, nós sabemos que é duro. É duro limpar a fragilidade, é duro amparar a situação da pessoa humana. Não são imagens bonitas de ver, são imagens de uma grande crueza, mas ao mesmo tempo, com que delicadeza, com que amor aquele filho cuida daquele pai, e lava aquele pai, e limpa. E há um momento belíssimo na peça em que os dois choram juntos, o filho e o pai choram. Choram perante o irremediável da própria vida, o sentir que já não vão conseguir senão amar-se, senão perdoar-se, senão amparar-se mesmo na não resolução do problema. Esta é uma imagem.

E há uma outra imagem que é a partir do rosto de Cristo de Antonello de Messina, uma pintura fabulosa deste grande mestre da arte cristã, que pintou um rosto de Cristo assombroso, que ocupa toda a parede do palco. E depois, chegam crianças e tiram das mochilas granadas e começam a atirar granadas para destruir aquele rosto, aquela imagem de Cristo. E depois, de facto, a imagem destrói-se, o rosto desce, é quebrado, é rompido com grande violência. E aparecem a conjugação de dois salmos escritos: “Tu és o meu pastor.” O salmo 23, mas depois aparece também: “Tu não és o meu pastor.” Que é uma alusão ao salmo 22: “Meu Deus, meu Deus porque me abandonaste?”

Em alguns lugares da Europa, muitos cristãos se levantaram contra esta peça de teatro dizendo que era cristofobia, que é um ódio a Cristo. Eu interpreto-o de outra forma, e neste dia do mistério da Ascensão de Jesus penso que percebemos melhor. Qual é hoje a imagem de Cristo? Qual é o verdadeiro ícone de Cristo? Não é aquele de Antonello de Messina que tem toda a beleza do mundo, mas não é aquele o Cristo.

O Cristo, antes de tudo, é o corpo daquele pai, é o corpo frágil daquele pai. Por muito que nos custe, a imagem e semelhança de Deus é sempre a pessoa humana. Não é a arte, não é a tradição, não é o património. Claro que isso tem um enorme, um imenso, um intocável valor, mas não tem o mesmo valor da pessoa humana. A pessoa humana é que é o esplendor de Deus, e quanto mais frágil, quanto mais difícil for ver na pessoa humana a beleza de Deus, o esplendor de Deus. De facto, o corpo daquele homem envelhecido não tem já nenhuma beleza, não tem nenhuma beleza. E, contudo, ali, naquele corpo, está Deus – é um lugar onde nós somos chamados a olhar Deus. E, por isso, aquele filho, com uma esponja, lava as partes do pai – aquilo é uma espécie de oração, é uma espécie de oração.

E, no fundo, é isso que nós somos chamados a fazer. Nós já não vamos ver grandes imagens. Onde é que nós vamos ver Deus? Vamos ver Deus tocando a humanidade, servindo à humanidade, ajudando a humanidade uns dos outros. E, sobretudo, ajudando a humanidade mais vulnerável, mais frágil, mais sem esperança, trazendo ao colo, trazendo aos ombros, dizendo uma palavra, acreditando até ao fim, não desistindo nunca. Isso é a nossa oração, isso é a nossa visão. A Sophia de Mello Breyner tem aquele poema “Só o olhar daqueles que escolhestes, nos dá o Teu sinal entre os fantasmas”. E, de facto, só o olhar, só o olhar dos pobres, dos simples, dos pequeninos, dos últimos, das vítimas, do homem frágil, do homem vulnerável, que no fundo somos todos nós também na nossa vulnerabilidade, para lá das nossas armaduras, só o olhar desses nos devolve o rosto de Deus, o sinal de Deus.

Queridos irmãos, vamos pedir por cada um de nós: que estas palavras tão belas da Carta aos Efésios sejam palavras dirigidas à nossa vida, nesta hora. Que o Senhor nos conceda um espírito de sabedoria e de luz para O conhecermos plenamente e ilumine os olhos do nosso coração para compreendermos a esperança a que fomos chamados.

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A supressão, na Itália, da festa da Ascensão (quinta-feira da VI Semana, 40 dias depois da Páscoa) e o seu consequente deslocamento para o domingo posterior, infelizmente, não nos permitem contemplar o mistério da intercessão do Ressuscitado junto do Pai (VII Domingo de Páscoa). Hoje, portanto, na Igreja italiana [e brasileira], celebra-se a Ascensão, evento pascal que Lucas relata no seu Evangelho (o trecho de hoje) como evento final da vida de Jesus de Nazaré e nos Atos dos Apóstolos como evento inicial da vida da Igreja (cf. At 1, 1-11, também este proclamado hoje na liturgia).

É significativo que os dois relatos não sejam plenamente harmonizáveis entre si, pois leem o mesmo evento a partir de duas perspectivas diferentes. Nos Atos, a ascensão de Jesus ao céu ocorre 40 dias após a sua ressurreição da morte (cf. At 1, 3), enquanto no Evangelho ela é colocada no fim de tarde daquele “dia sem fim”, “o primeiro da semana” (Lc 24, 1), dia da descoberta do túmulo vazio e da aparição do Ressuscitado às mulheres (cf. Lc 24, 1-12), aos dois discípulos no caminho para Emaús (cf. Lc 24, 13-35), enfim a todos os discípulos reunidos em uma casa em Jerusalém (cf. Lc 24, 36-49). Dois modos diferentes de narrar o único evento da ressurreição, que Lucas tenta iluminar em toda a sua amplitude: de fato, a ressurreição significa a entrada de Jesus como Kýrios na vida eterna à direita de Deus Pai (Ascensão) e também a descida do Espírito (Pentecostes: cf. Atos 2, 1-11).

Na página conclusiva do seu Evangelho, Lucas conta como Jesus se separou dos seus, não para abandoná-los, mas para estar sempre com eles, o Immanuel, o Deus-conosco (cf. Mt 1, 23; 28, 20), em uma nova forma de vida. A sua existência humana terminou com a morte, e agora, após a ressurreição do seu corpo, a vida de Jesus é outra, é a do Senhor vivo, é a vida divina daquele que está na vida íntima de Deus, à sua direita, o lugar do Filho eleito e amado (cf. Sl 110, 1bc; Lc 3, 22; 9, 35).

Eis-nos, então, na casa dos discípulos em Jerusalém: os dois de Emaús retornaram e relataram a sua experiência, enquanto os Onze e os outros testemunhavam também eles que Cristo havia ressuscitado e havia sido visto por Simão Pedro (cf. Lc 24, 33-35). Enquanto todos juntos falam de Jesus, ele em pessoa está no meio deles, dá o shalom, a paz (cf. Lc 24, 36), depois profere palavras que ressoam em uma absoluta novidade: “São estas as palavras que eu lhes falei, quando ainda estava com vocês” (Lc 24,44a). Sim, porque Jesus não está mais com eles como antes, como homem, mestre e profeta; agora é o Senhor vivo que não fala mais em aramaico, com o som da sua voz humana por eles escutada por muito tempo, mas de um modo novo, um modo mais eficaz, persuasivo, porque a sua voz está dotada da força do Espírito de Deus plenamente operante no Ressuscitado.

No poder do Espírito, o Senhor Jesus mostra aos discípulos o cumprimento das Escrituras e o cumprimento das suas palavras nos eventos que precederam aquele dia (cf. Lc 24, 44b-47). O Ressuscitado explica as Escrituras de modo que os discípulos compreendam a conformidade entre o “está escrito” e o que eles viveram: agora, os discípulos podem finalmente compreender o que antes não conseguiram entender.

Certamente eles leram muitas vezes a Torá, os Profetas e os Salmos, mas agora que os fatos se cumpriram eles podem compreendê-los crendo, à luz da fé. Jesus lhes havia repetidamente várias vezes a necessitas da sua paixão e morte (cf. Lc 9, 22.43b-44), mas esses discursos lhes haviam parecido escandalosos, enigmáticos (cf. Lc 9, 45). Agora, porém, que eles se cumpriram – não por destino ou fatalidade, mas pela necessidade mundana segundo a qual “o justo” (Lc 23, 47) em um mundo injusto deve morrer (cf. Sb 1, 26-2,22) e por necessidade divina pela qual Jesus, em obediência à vontade do Pai, não se defende, mas acolhe o ódio sobre si amando até o fim –, agora sim é possível crer nas Sagradas Escrituras. E, crendo, é possível tornar-se “testemunhas”, até anunciar a morte e ressurreição de Cristo como evento que pede conversão e dá a remissão dos pecados: o perdão de Deus a toda a humanidade, à espera da boa notícia da salvação.

Todos são testemunhas – enfatiza Lucas –, todos são anunciadores do Evangelho, não só os Onze, os apóstolos, mas também os outros presentes no mesmo lugar.

Sim, Jesus, esse homem de Nazaré, filho de Maria e de Deus, que só Deus nos podia dar, viera sobretudo como Palavra feita carne (cf. Jo 1, 14), como Visita de Deus (cf. Lc 1, 68), uma Visita não para a punição, para o castigo dos pecados cometidos pelo povo de Deus e pela humanidade inteira, mas uma Visita que anunciava o perdão dos pecados (cf. Lc 1, 77). Com aquela morte como “homem justo” que acolhia sobre si o ódio, a violência e a mentira dos malvados, e respondia a isso não com a violência, mas com o amor, Jesus entregava ao Pai a verdadeira imagem de Deus, o Adão como Deus desejara (cf. Cl 1, 15).

E precisamente como justo que está do lado dos pecadores, solidário com publicanos, impuros, prostitutas, ladrões e malfeitores, Jesus subia ao Pai dirigindo-lhe a oração incessante que invoca perdão e misericórdia. Entre as suas últimas palavras antes da morte, ele não dissera: “Pai, perdoa-lhes porque não sabem o que fazem” (Lc 23, 34)? E a sua última promessa não havia sido dirigida a um malfeitor: “Hoje estarás comigo no paraíso” (Lc 23, 43)?

Portanto, os discípulos, testemunhas dessa misericórdia vivida, ensinada e narrada por Jesus, devem anunciá-la a todos os povos. Essa é a pregação da Igreja, que, ao contrário, às vezes é tentada a se atribuir tarefas que o Senhor não lhe deu: a única tarefa evangélica é anunciar e fazer misericórdia, que significará anúncio do Reino, da salvífica morte e ressurreição de Cristo, e, portanto, serviço aos pobres, aos doentes, aos sofredores, proximidade e solidariedade com os pecadores.

“Começando por Jerusalém” e até os confins do mundo, as testemunhas, como viandantes e peregrinos, anunciarão o perdão dos pecados em todos os lugares e, por isso, perdoarão e convidarão todos a perdoar: esse é o Evangelho, a boa notícia. Ser testemunhas de tal anúncio (e não de outra coisa!) é uma tarefa árdua, porque parece pouco credível, quase impossível de se realizar, mas aqueles pobres discípulos e aquelas pobres discípulas, na noite da Páscoa, escutaram, entenderam e, desde então, tentaram pôr em prática nada mais do que isto: o perdão, a remissão de pecados.

Será preciso “o poder que vem do alto”, a descida do Espírito Santo de Deus, para serem habilitados a cumprir esse mandato, mas nada de medo: quando Jesus, o Filho de Deus, sobe ao céu, eis que desce do céu o Espírito de Deus, que é também e sempre o Espírito de Jesus Cristo, força que sempre nos acompanha e nos inspira nessa missão.

Como narrar a ascensão de Jesus com palavras humanas? Lucas tenta narrá-la, recordando como o profeta Elias havia deixado esta terra para ir para junto de Deus (cf. 2Re 2, 1-14), e assim escreve que Jesus, depois de ter conduzido para Betânia aqueles discípulos que já haviam se tornado testemunhas, deixou-lhes a bênção e, “enquanto os abençoava, afastou-se deles e foi levado para o céu”. Esse é o êxodo de Jesus da terra ao reino de Deus. O evangelista não atenua de modo algum a separação de Jesus dos seus: ele não está mais presente como antes, mas a benção que ele dá é uma bênção contínua, é a imersão dos seus no Espírito Santo (cf. Lc 3, 16).

Esse é também o último ato do Ressuscitado: ele dá a bênção sacerdotal que havia sido suspensa, não dada no início do Evangelho pelo sacerdote Zacarias, depois da aparição do anjo e do anúncio da vinda do Messias (cf. Lc 1, 21-22). Essa bênção deixa alegre a comunidade de Jesus precisamente enquanto ele se separa dela, mas também a torna sacerdotal (cf. 1Pd 2, 9): aqueles que creem em Jesus Cristo, de fato, são o novo templo, “sacerdotes” e adoradores do Ressuscitado, capazes de responder com a oração de bênção à bênção de Jesus.

A incredulidade, finalmente, foi vencida, e a fé em Jesus vivo, Senhor e Deus, é tamanha que permite que os discípulos sintam Jesus presente no meio deles mesmo após a separação do seu corpo glorioso, agora na intimidade do Pai, Deus.

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 O tempo das testemunhas
Marcel Domergue sj

Daí em diante, o Cristo está para além de tudo

“Afastou-se deles” (no evangelho). “Seus olhos não mais podiam vê-lo” (na 1ª leitura). Daí em diante, Jesus não mais será visto em seu ir e vir, suas palavras só serão acessadas pelos escritos ou, como diz Paulo, através da loucura da pregação. Isto é, através de outras pessoas. Mas ele não havia preparado os discípulos para esta forma de ausência? Após a Ressurreição, podemos vê-lo aparecer e desaparecer inesperadamente, como em Emaús, por exemplo.

Inúmeras são as parábolas que nos falam de um mestre que se ausenta, permanecendo presente apenas através das ordens que teria dado. Na verdade, além do mandamento do amor que Jesus nos deixou, recebemos o Espírito que nos faz observá-lo; mas isso tudo se dá somente de modo invisível. Por sua Ressurreição, Jesus passou à vida de Deus; está “à direita do Pai”, como dizem os textos.

Ressalte-se disto tudo que, com a Ascensão, o nome Emanuel, que serve para designar Jesus, em Mateus 1,23, e significa “Deus conosco“, muda agora de sentido. Sim, Ele permanece conosco, mas de outro modo. Atualmente, a presença de Cristo é nossa

fé, é o amor mútuo pelo qual esta presença se exprime e a esperança que nasce do vazio de sua ausência. O Cristo está para além de tudo, de qualquer coisa que esteja ao nosso alcance. E este mais além é que nos chama e nos atrai. Também nós somos destinados à glória. Assim como Ele se fez solidário conosco totalmente, também nós nos tornamos solidários com Ele.

O novo sinal

Quando Jesus ainda estava aqui, podiam-se ver os “sinais” que realizava. E este “ver” fazia com que a fé se entranhasse naqueles, ao menos, de boa vontade. A dupla “ver e crer” é onipresente no 4º evangelho. Crer em quê? Que Jesus é verdadeiramente Aquele que o Pai enviou ao mundo ou que este Jesus vem de fato de Deus, que ele é o Cristo, o Filho de Deus (o que dá no mesmo). Tudo isso é repetido na 1ª Conclusão do evangelho (20,30-31).

Ora, eis que Jesus desapareceu. Vamos ficar, então, sem mais nenhum sinal? Não havendo mais nada para se ver? Em João 17,20-23, é a unidade dos discípulos, o seu amor mútuo, que irá despertar a fé do “mundo”. Cada vez que manifestamos um amor verdadeiro, desde que nos façamos unidade, estamos evangelizando. A vocação da Igreja é tornar-se este “sinal“.

No entanto, todo sinal é feito de uma realidade visível, “sensível”, e uma palavra capaz de exprimir o seu sentido. Ao gesto da mão estendida, acrescentamos um “olá!” ou “bom dia!”. A unidade dos crentes deve, pois, fazer-se acompanhar de palavras que manifestem a sua origem e o seu sentido. É por isso que todos os “relatos” da Ascensão vêm acompanhados do envio dos discípulos “até às extremidades da terra“, para anunciarem o Evangelho. Assim, a imagem do deslocamento vertical, figurado pela Ascensão, vem sempre acompanhada, em nossos textos, pela imagem do deslocamento horizontal dos discípulos pela superfície do globo. Tendo em vista fazer de todos, mulheres e homens, um só corpo.

Os céus para onde o Cristo sobe

“O que significa “subiu”, senão que ele também desceu às profundezas da terra? Este que desceu é também o que subiu acima de todos os céus, a fim de plenificar todas as coisas” (Efésios 4,9-10). Ou seja, “a fim de plenificar o universo”. Assim o Cristo não é localizável nem acima nem ao lado do universo; tornou-se interior a ele. O céu para onde o Cristo sobe é isto, a face escondida de toda a criação. É, Ele mesmo, esta alma invisível de toda a criação e quem a está conduzindo à sua plena perfeição.

Nesta criação há o homem/mulher que é a sua consciência, um ser através do qual tudo o que existe pode aquiescer a Deus. Homem/mulher, portanto, que se torna a nova habitação do Cristo, o Templo da presença divina. Que se lembre o “Tu em mim; eu neles; eles em nós…”. Agora, podemos dizer que o invisível de cada um de nós é Cristo e que o visível de Cristo somos nós. Corrijamos este “cada um de nós” da frase precedente: cada um de nós assume o seu valor, encontra a sua salvação, religando-se a todos os outros pelos laços do amor. Isto exatamente é o que a Igreja, “corpo de Cristo”, busca significar e realizar. Foi deste modo foi que surgiu no mundo a imagem e semelhança terrestre da unidade divina.

Os céus da Ascensão não estão longe, não estão alhures; estão “aí onde dois ou três estão reunidos em seu nome“. Não poderá haver em lugar algum um amor verdadeiro sem que Deus esteja aí.

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A Ascensão de Jesus ao céu apresenta-se sob três aspectos complementares: 1. como uma gloriosa manifestação de Deus (I leitura), com a nuvem, homens em vestes brancas, referências ao céu… (v. 9-11); 2. como epílogo de uma empresa difícil e paradoxal, mas bem sucedida (II leitura); 3. como envio dos apóstolos (Evangelho), na qualidade de «testemunhas» para uma missão tão vasta como o mundo: pregar, no nome de Jesus, «a todos os povos a conversão e o perdão dos pecados» (v. 47-48).

O acontecimento pascal de Jesus sustenta a alegre esperança da Igreja e a «serena confiança» dos fiéis de estarem um dia «na mesma glória» de Cristo (Prefácio). O empenho apostólico e o optimismo que anima os missionários do Evangelho têm a sua raiz na certeza de serem portadores de uma mensagem e de uma experiência de vida bem sucedida, graças à chancela da ressurreição. Acima de tudo, é vida plenamente conseguida em Cristo ressuscitado; e é já, ainda que apenas em forma inicial, uma vida conseguida nos membros da comunidade cristã. Os frutos de vida nova existem: é preciso vê-los e saber apreciá-los.

Os Apóstolos e os missionários de todos os tempos tornam-se «testemunhas (de Cristo) em Jerusalém, em toda a Judeia e na Samaria e até aos confins da terra» (Act 1,8; Lc 24,48), num percurso que se abre progressivamente em espiral, do centro inicial (Jerusalém) em direcção a uma periferia tão vasta como o mundo inteiro. O mundo inteiro é, de facto, o campo ao qual Jesus, antes de subir ao céu, envia os seus discípulos-testemunhas (Evangelho): «a todos os povos» para pregar a conversão ao Deus da misericórdia, que perdoa os pecados e salva (v. 47).

A missão de testemunho é radical e eficaz, como o demonstra a história da evangelização, desde as origens (Actos dos Apóstolos) até aos nossos dias. Ela é confiada às pessoas adultas em idade e fé, mas também aos jovens. O empenho missionário dos jovens radica, particularmente, no sacramento do Crisma. Este é a etapa significativa no seu itinerário cristão, que os prepara para o testemunho da fé e para a missão. O Crisma deve levar os jovens ao empenho apostólico e a ser evangelizadores de outros jovens.

As últimas palavras dos Evangelhos são o lançamento da Igreja para a missão – uma Igreja em estado permanente de Missão! – a fim de continuar a obra de Jesus. Por toda a parte, sempre! O olhar para o céu (Actos 1,11), meta final e inspiradora da grande viagem da vida, não distrai e não tira energias, pelo contrário estimula os cristãos e os evangelizadores a ter sempre um olhar de amor sobre o mundo, um empenho missionário correspondente às situações concretas, generoso e criativo pela vida da família humana. É preciso ser avesso ao espiritualismo alienante e permanecer bem radicados na história, lugar onde Cristo opera a nossa salvação. É uma missão a realizar com esperança e realismo, sustentados pela «força do Espírito Santo» (Actos 1,8). Na certeza da presença contínua de Jesus que abençoa os seus, os protege com benevolência e os enche de «grande alegria» (Lc 24,50-52). A Ascensão não significa ausência do Senhor, mas um modo diferente de estar presente (Mt 28,20; Mc 16,20): Ele age todos os dias juntamente com os discípulos e confirma com sinais a Palavra que eles anunciam.

Em algumas representações do mistério da Ascensão, uma nuvem envolve o corpo de Jesus, deixando ver apenas os seus pés: emblematicamente, são os pés da Igreja missionária, os pés dos cristãos, evangelizadores e evangelizadoras, que, pelos caminhos do mundo, levam a todos os povos o Evangelho. A cada pessoa, grupo ou categoria, aos jovens e aos idosos. Anunciam o Evangelho com a sua vida, com a palavra, usando os meios mais modernos de comunicação social (imprensa, filmes, vídeos, Internet, sms, blog, sites web e outras formas de mensagens digitais), que oferecem oportunidades novas para a evangelização e a catequese. São caminhos e desafios novos da Missão!