VI Domingo de PÁSCOA (ciclo C)
João 14,23-29


cenacolo

Referências bíblicas

  • 1ª leitura: «Decidimos, o Espírito Santo e nós, não vos impor nenhum fardo, além destas coisas indispensáveis.» (Atos 15,1-2.22-29)
  • Salmo: 66(67) – R/ Que as nações vos glorifiquem, ó Senhor, que todas as nações vos glorifiquem!
  • 2ª leitura: «Mostrou-me a Cidade santa, Jerusalém, descendo do céu.» (Apocalipse 21,10-14.22-23)
  • Evangelho: «O Espírito Santo vos recordará tudo o que eu vos tenho dito» (João 14,23-29)

“Deixo-vos a paz, a minha paz vos dou”
Marcel Domergue s

Jesus que parte e que vem!

Vive Jesus os últimos momentos entre os seus amigos, segundo, ao menos, o modo de presença habitual que conhecemos em nossas relações mútuas. Daí para frente, nada será mais como antes. Jesus parte e, no entanto, não se ausenta: um paradoxo!

“Vou, mas voltarei a vós.” Virá com o Pai, fazer sua morada nos que o amam. Mas o que é amar a Cristo? É permanecer fiel à sua palavra. Jesus habita, portanto, todos os que guardam a sua palavra. Que palavra? O “novo mandamento” que ele nos deixou. Aquele mandamento que substitui todos os outros, porque contém todos eles: amar-nos uns aos outros.

O nosso amor a Cristo se materializa, se podemos dizer assim, em nosso amor ao “próximo”. E ficamos sabendo que fazemos alguém ser um próximo nosso na medida em que nos aproximamos dele (Lucas 10,29 e 36-37). Transformar o outro em nosso próximo é a mesma conduta assumida pelo Verbo quando se fez carne, só que num grau e num sentido inimagináveis.

Desde então, a humanidade toda é presença do Cristo. Fazer-nos próximos uns dos outros é tornar-nos próximos de Cristo, para uma habitação mútua. Deste modo é que Deus, os outros e cada um de nós entramos na mais estreita união de um corpo único.

O Deus Uno realiza a unidade. Ele une porque é n’Ele mesmo União, como diz Santo Inácio de Antioquia em sua carta aos Tralianos. Está bem, mas de nós se requer a nossa liberdade, para que esta união se faça.

“O Pai é maior do que eu.”

“Maior do que eu”, diz Jesus. Uma fórmula que não é muito considerada pelos teólogos. Parece dizer que o Filho é inferior ao Pai, o que vai contra o que a Igreja sempre disse a respeito da Trindade.

Às vezes se quer escapar, dizendo que Cristo fala aqui “enquanto homem” e não enquanto Deus. Ambos “enquanto” nada satisfatórios: deixam crer que o Verbo teria assumido a natureza humana mais do que a natureza divina, num tipo de justaposição que faria de Jesus uma espécie de híbrido.

João 1 diz que “o Verbo se fez carne”: toda a divindade se passou a esta humanidade aí, à humanidade de Jesus. Como diz Santo Irineu, “o que era invisível no Filho era o Pai e o que no Pai era visível, era o Filho” (Cristo).

João 1 diz que “o Verbo se fez carne”: toda a divindade se passou a esta humanidade aí, à humanidade de Jesus. Como diz Santo Irineu, “o que era invisível no Filho era o Pai e o que no Pai era visível, era o Filho” (Cristo).

Jesus, agora, vai deixar este visível, para reunir-se ao “invisível”. E encontrará aí toda a sua grandiosidade, exatamente Ele, que “não usou de seu direito de ser tratado como um deus, mas se despojou, tomando a forma de escravo” (Filipenses 2,5…). “Nascido de mulher, nascido sob a Lei” (Gálatas 4,4).

Ora, precisamente este homem, que vai se reunir à incomensurável grandiosidade do Pai, é portador da nossa humanidade: estaremos assim, todos, destinados a esta grandiosidade do “maior do que eu”.

“E quando for e vos tiver preparado o lugar, virei novamente e vos levarei comigo, a fim de que, onde eu estiver, estejais vós também” (João 14,3). É preciso ousar crer nisto para “permanecer na palavra” do Cristo.

O dom do Espírito

O texto não fala somente do Pai e do Cristo, mas também do Espírito, que será enviado como o Filho foi enviado. Para o evangelho de João, o dom do Espírito é o fruto da Paixão do Filho. Em 7,39, está escrito: “não havia ainda Espírito porque Jesus não fora ainda glorificado”. É uma frase surpreendente, posto que a ação do Espírito é mencionada em toda a Bíblia.

Digamos que o Espírito visitava, inspirava, mas não habitava ainda de modo permanente a humanidade: ainda não éramos “templo do Espírito”. À frase de 7,39, é preciso juntar a fórmula polivalente que João usa para expressar a morte de Jesus: “entregou o Espírito”. O seu Espírito, que é também o do Pai e que pode ser chamado de “Amor”. Perfeitamente normal que o seu Espírito tivesse sido entregue, transmitido, na hora em que Cristo havia completado o ato insuperável de amor que pôs Deus no mundo.

O Espírito nos recorda e nos faz compreender o Cristo e tudo o que ele fez e disse. Ele nos concede também ter para com o Pai atitudes filiais: os “modos” do Filho. Conforma-nos, por aí, à Sua imagem… Desde que O deixemos fazer, que Lhe abramos as nossas portas. Nada há no Espírito que não esteja no Filho, nada há no Filho que não esteja no Pai. E tudo isto nos é comunicado.

Nada há, então, em Deus que não acabe por estar também no homem. Temos aí uma fórmula que também convém à Encarnação. O fato de que tenhamos de viver toda esta plenitude em meio a turbulências e tragédias não deve nos transtornar nem atemorizar: a cruz está sempre aí, mas tornou-se fonte de vida.

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”O Espírito Santo, o Consolador, vos ensinará tudo”
Enzo Bianchi

Neste Tempo Pascal, a Igreja continua nos oferecendo os “discursos de despedida” de Jesus (cf. Jo 13,31-16,33), colocados na última ceia, mas que devem ser entendidos como palavras de Jesus glorificado, do Senhor ressuscitado e vivo que se dirige à sua comunidade abrindo-lhe os olhos para o seu presente na história, uma vez ocorrido o seu êxodo deste mundo ao Pai (cf. Jo 13, 1).

Nesse contexto de último encontro entre Jesus e os seus, alguns discípulos lhe fazem perguntas: primeiro Pedro (cf. Jo 13, 36-37), depois Tomé (cf. Jo 14, 5), por fim Judas, não o Iscariotes. Este lhe pergunta: “Senhor, por que vais te manifestar a nós e não ao mundo?” (Jo 14, 22). É uma pergunta que deve ter causado também sofrimento nos discípulos: depois daquela aventura vivida junto com Jesus por anos, ele vai embora e parece que nada realmente mudou na vida do mundo… Uma pequena e diminuta comunidade compreendeu algo porque Jesus se manifestou a ela, mas os outros não viram e não veem nada. Então, a que se reduz a vinda do Filho do homem sobre a terra, a sua vida à espera do reino de Deus iminente que ele proclamava?

Jesus, então, responde: “Se alguém me ama, guardará a minha palavra, e o meu Pai o amará, e nós viremos e faremos nele a nossa morada”. É por isso que Jesus não se manifesta ao mundo que não crê nele, que lhe é hostil porque não consegue amá-lo: para ter a manifestação de Jesus é preciso amá-lo! Toda vez que se leem essas palavras, ficamos profundamente perturbados: Jesus, filho de Maria e de José, homem como nós, não nos pede apenas para sermos seus discípulos, para observar o seu ensinamento, mas também para amá-lo, porque, amando-o, cumpre-se aquilo que ele quer e, fazendo aquilo que ele quer, amamo-lo.

Em todo caso, aqui o amor é definido como necessário para a relação com Jesus. Amar é uma palavra desafiadora, mas Jesus a utiliza, lendo a relação com o discípulo não só na fé, na obediência ao ensinamento, no seguimento, mas também no amor.

Mais profundamente, Jesus especifica que quem o ama, no amor por ele permanecerá fiel à sua palavra – resumida para o quarto Evangelho no “mandamento novo”, “amem uns aos outros como eu os amei” (Jo 13, 34; 15, 12) –, será amado pelo Pai, de modo que o Pai e o Filho virão fazer sua morada junto dele: habitação de Deus em quem ama Jesus! Se faltar o amor, em vez disso, não haverá reconhecimento dessa presença quando Jesus estiver “ausente”; depois da sua vida terrena, de fato, depois de subir para junto do Pai (cf. Jo 20, 17), Jesus estará ausente, mas, se o amor permanecer, ele estará presente no seu discípulo.

Diante dessas palavras, a nossa compreensão vacila, mas a experiência vivida em uma relação de amor pode vir em nosso socorro, quando o/a amado/a está ausente, mas temos uma certa experiência da sua presença em nós, na expectativa de que retorne e, com a sua presença face a face, renove a relação de amor e a preencha.

Essa é uma experiência do ausente que só os amantes podem conhecer, e Jesus a promete, porém, indicando-a no espaço da fidelidade à sua palavra, da realização dos seus mandamentos. Por isso, ele especifica que a sua palavra, aquela dada aos discípulos e às multidões em toda a sua vida, não era palavra sua, mas sim palavra de Deus, do Pai que o havia enviado ao mundo. Essa palavra, agora dada aos fiéis, que permanece para sempre, é capaz de fazer sentir a presença de Jesus quando a própria palavra for lida, meditada, escutada e realizada pelo cristão; será um sinal, um sacramento eficaz, que gera a Presença do Senhor.

Jesus não está mais entre nós com a sua presença física, como glorificado, ressuscitado pelo Espírito e vivento junto do Pai; mas a sua palavra, conservada na Igreja, torna-o vivo na assembleia que o escuta, Presença divina que faz de cada ouvinte a morada de Deus.

Aquela “Palavra” (Lógos) que “se fez carne (sárx)” (Jo 1, 14) em Jesus de Nazaré fez-se voz (phoné) e, portanto, lógos, palavra dos humanos, e em cada fiel se faz Presença de Deus (Shekinah), faz-se carne (sárx) humana do fiel, continuando a habitar no mundo (cf. Jo 17, 18).

E o Espírito de Deus, que também é o Espírito de Cristo, é absolutamente o artífice de toda essa dinâmica de presença.

  • É o outro Enviado pelo Pai,
  • é o outro Mestre enviado pelo Pai,
  • é o outro Consolador enviado pelo Pai.

Jesus sobe ao Pai, e o Espírito Santo, que era o seu “companheiro inseparável” (Basílio de Cesareia), a partir de Cristo desce sobre todos os fiéis como um Paráclito, chamado ao seu lado como defensor e consolador; será justamente ele quem ensinará todas as coisas, fazendo recordar todas as palavras de Jesus e, ao mesmo tempo, renovando-as no hoje da Igreja. Há uma única diferença entre Jesus e o Consolador: Jesus falava diante dos discípulos que o escutavam, enquanto o Consolador, que, com o Filho e o Pai vem habitar no fiel, fala como um “mestre interior”, com mais força, poderíamos dizer… Nós não somos órfãos, não fomos deixados sozinhos por Jesus, e aquele Deus a quem tínhamos que descobrir fora de nós, diante de nós, agora devemos descobrir em nós como presença que colocou em nós a sua tenda, a sua morada.

Certamente, ao ir embora, Jesus vê a sua obra, aquela que humanamente realizou em obediência ao Pai, “incompleta”, porque os discípulos ainda não entendem, porque a verdade na sua plenitude ainda não é revelável, e ele mesmo ainda teria muitos ensinamentos para dar, muitas coisas para revelar… No entanto, eis que Jesus nos ensina a arte de “deixar ir”: ele vai embora sem ansiedade pela sua comunidade e pelo seu destino, mas, em vez disso, com a confiança de que existe o Espírito, o Consolador e Defensor,

  • que agirá na comunidade que ele deixou;
  • ensinará muitas coisas necessárias e que ele mesmo, Jesus, havia se inibido de ensinar
  • porque a comunidade não estava pronta para recebê-las e compreendê-las;
  • e, sobretudo, dará aos discípulos grande força e muitos dons que eles não possuíam.

“O Espírito Santo vos ensinará tudo e vos recordará tudo o que eu vos tenho dito”: promessa que vemos realizada na vida da Igreja e na nossa vida, nas nossas histórias. Hoje, compreendemos o Evangelho mais do que ontem, mais do que mil anos atrás. Para a salvação dos homens e das mulheres de ontem, essa compreensão era suficiente, mas, para nós, hoje, é necessária outra compreensão, que se deveu à “corrida” do Evangelho na história (cf. 2Ts 3, 1), porque nela o Evangelho se dilata, e a Igreja o aprofunda, o compreende melhor e mais.

A fé dos grandes Padres da Igreja ainda é a fé da Igreja de hoje, mas muito mais aprofundada. O Evangelho lido no Concílio de Trento é o mesmo Evangelho lido por nós hoje, mas hoje o compreendemos melhor, como afirmava o Papa João XXIII. Estamos no tempo em que o Espírito Santo, que é sempre Espírito do Pai, procedendo dele, mas também Espírito do Filho, por ser seu “companheiro inseparável”, está presente nos caminhos da Igreja e age quando ela o invoca e lhe obedece.

Assim, na Igreja, há paz, o shalom, a vida plena deixada por Jesus, não a paz mundana, mas a paz sustentada pela esperança, porque Jesus disse ainda: “Vou, mas voltarei a vós”. “Ausentou-se o nosso pastor” [recessit Pastor noster], cantamos no responsório do Sábado Santo; mas, neste Tempo Pascal que dura até o dia do Senhor, podemos cantar: “Eis, o nosso Pastor retorna”, porque vem a nós todos os dias nesta descida do Pai e do Filho na força syn-kata-batica, con-descendente do Espírito Santo. Ele vem com a Palavra, fielmente; vem com os eventos da história, nos quais, para além das evidências, está sempre operante; vem na nossa carne que se esforça e luta, mas para ser transfigurada pela sua vinda gloriosa.

Mas nós amamos Jesus? De acordo com as suas afirmações escutadas e interpretadas, de fato, se não o amamos, não somos capazes de permanecer fiéis à sua palavra. Se, ao contrário, vivemos tal amor e tal obediência ao Senhor, a sua vida se torna a nossa vida.

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Às vésperas da Ascensão, ao ler os textos da Palavra de Deus de hoje, veio-me uma pergunta: na Igreja de hoje, temos razões para nos inquietar? A resposta é, infelizmente, sim. E por quê? Porque nós temos medo de nos deixar perturbar pelo Espírito Santo. É, no entanto, o convite que o nosso bom Papa Francisco nos fez em uma sua homilia: “Não resistamos ao Espírito Santo”. A fé deveria dissipar todos os nossos medos. O Cristo do Evangelho de João nos diz: “Não fiquem perturbados, não tenham medo” (Jo 14, 27c). Mas a fé não é a religião, e acontece, às vezes, que a religião asfixia a fé e a impede de se expressar, o que justifica o medo vivido pela Igreja de se adaptar às realidades contemporâneas. O que fazer? É preciso mudar, converter-se, arriscar o futuro, se quisermos ser fiéis ao Cristo da Páscoa. Mas que mensagens podemos tirar da Palavra de hoje?

1. Amor de Cristo = fidelidade à sua Palavra

“Se alguém me ama, guarda a minha palavra” (Jo 14, 23a). O que isto quer dizer? Qual é esta palavra de Cristo? É uma palavra que vem de outro: “E a palavra que vocês ouvem não é minha, mas é a palavra do Pai que me enviou” (Jo 14, 24b). É uma palavra que não é dita uma vez para sempre: “Mas o Advogado do Pai, o Espírito Santo, que o Pai enviar em meu nome, ele ensinará a vocês todas as coisas e fará vocês lembrarem tudo o que eu lhes disse” (Jo 14, 26). É, pois, o Espírito Santo que mora em nós que nos torna capazes de compreender a Palavra de Deus, que se expressa hoje através de homens e mulheres e que se atualiza incessantemente na nossa história.

No Evangelho de São João, o Amor de Cristo é sinônimo de fidelidade à sua palavra; isso significa que a fidelidade, assim como o Amor, não pode ser congelada no tempo e fixada para sempre num texto sagrado da Bíblia. A fidelidade, assim como o Amor, está em movimento, em crescimento, em evolução. O exegeta francês Jean Debruynne disse que a fidelidade ao Evangelho é viva. Ele escreve: “O Ressuscitado fala de fidelidade e de fidelidade à Palavra… e, no entanto, as palavras se desvanecem e os escritos permanecem. Nada é mais fugaz, frágil e passageiro que uma palavra. E, no entanto, é nela que Jesus coloca a fidelidade. Afirmando que ela permanece, Jesus conjuga verbos de ação: vir, enviar, dar, ir, voltar, chegar… Jesus faz, assim, da fidelidade bem outra coisa que um túmulo, um cemitério ou um monumento aos mortos. Para Jesus, a fidelidade é uma mudança, uma conversão. A fidelidade é viva”.

2. Nós permanecemos em Deus

“Se alguém me ama, guarda a minha palavra, e meu Pai o amará. Eu e meu Pai viremos e faremos nele a nossa morada” (Jo 14, 23). Isso significa que Deus não mora mais num templo de pedra, de tijolo ou de madeira; ele habita o coração humano. Esse Jesus fisicamente ausente por sua Ascensão, torna-se espiritualmente presente por sua Ressurreição. É por isso que o Deus que nos habita é o Deus Trindade: Pai ou Mãe, Filho e Espírito. O que fez o teólogo francês André Rebré dizer: “O grande vazio aberto na vida dos discípulos e na nossa é o Deus Trindade que o preenche. Era necessário que Jesus partisse para que a Trindade fosse mais íntima em nós que nós mesmos”.

O que estamos esperando para nos respeitar nas nossas diferenças? Pelas nossas forças e pelos nossos talentos? Pelos nossos limites e nossas fragilidades? Não há nada mais sagrado que a dignidade humana! Nós somos templos de Deus, morada da Trindade, do Cristo ressuscitado! O teólogo francês Marc Joulin escreve: “Nada do que toca a humanidade pode nos ser indiferente, porque tudo toma um valor novo, recapitulado na Humanidade glorificada de Cristo que será tudo em todos no último dia. Longe de ser uma religião da evasão, na paz artificial de um nirvana, nossa fé nos assegura o valor do mundo e da dignidade da humanidade. A paz que Cristo nos prometeu, sua paz, é uma paz para trabalhar o respeito e a promoção de tudo o que constitui o homem, inseparavelmente corpo e espírito. A paz de Cristo é uma paz a ser construída por nós e, sobretudo, para os outros, o que raramente é fácil. Mas é aos construtores da paz que Jesus prometeu a felicidade e que serão verdadeiros filhos e filhas de Deus”.

3. A única regra = Amar

Nos primórdios da Igreja, o livro dos Atos dos Apóstolos nos apresenta uma controvérsia que surgiu desde o princípio: devemos ou não impor aos pagãos convertidos à fé cristã as obrigações legais e rituais do judaísmo? Paulo era hostil a isso, ao passo que alguns missionários judeu-cristãos queriam impor a circuncisão a todos: “Se não forem circuncidados, como ordena a Lei de Moisés, vocês não poderão salvar-se” (At 15, 1). A religião torna-se um obstáculo à fé cristã. Querem impor regras que não têm nada a ver com a mensagem do Cristo do Evangelho. Recordemo-nos de São João, na semana passada: “Se vocês tiverem amor uns pelos outros, todos reconhecerão que vocês são meus discípulos” (Jo 13, 35). Como os primeiros cristãos se esqueceram disso?

E como acontece que ainda hoje a religião, com suas regras e suas proibições, tem primazia sobre a fé cristã? Enfronhamo-nos em detalhes e nos esquecemos do essencial. Impomos fardos às pessoas que não têm nada a ver com o mandamento do Amor. Recusamos o batismo, excluímos as pessoas, condenamos situações e realidades, não queremos, sobretudo, nos adaptar ao mundo no qual vivemos, sob o pretexto de que esse mundo está perdido. E, no entanto, Cristo habita esse mundo e seu Espírito está agindo na história desse mundo.

Por que as regras que a Igreja faz tornam-se tão importantes, sob o risco de prejudicar para sempre as pessoas que se afastaram e que gostariam de se aproximar novamente? Como agentes de pastoral, padres e bispos querem fazer da nossa Igreja um lugar de acolhida e de abertura para possibilitar que o maior número possível de crentes possa fazer parte das nossas comunidades cristãs, viver o Evangelho e levar a mensagem de esperança e de Amor de Cristo ao mundo de hoje? A única regra que podemos exigir é amar. Nenhuma outra! Segundo o exegeta francês Gérard Naslin: “É preciso confiar na ação do Espírito e no amor fraternal como motores da vida da Igreja. A ausência física de Jesus é o reverso da sua presença junto do Pai graças à qual nós estamos conectados com a corrente do amor de Deus”.

Concluindo, há motivos para inquietação? Sim, em relação à religião que está em vias de matar a Igreja. Não, em relação à fé que pode ainda ressuscitá-la. É a esperança que mora em mim e que me impede de cruzar os braços!

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Jesus preanuncia aos Apóstolos os dons pascais, frutos da sua paixão e ressurreição. Em primeiro lugar, o dom do amor novo (Evangelho): um amor que é «imersão plena» na Santíssima Trindade, a qual vem habitar, vem morar em quem acredita e ama (v. 23); um amor que se torna fonte de vida nova. Depois o dom da paz: a paz que Jesus dá, uma paz diferente da que dá o mundo, uma paz que é mais forte do que qualquer perturbação, que pacifica em todas as situações de dificuldade (v. 27). E sobretudo o dom do Consolador, «o Espírito Santo», como mestre e memória das coisas que Jesus ensinou (v. 26). É uma promessa que toca de perto o caminho da Igreja na história: Jesus não tinha podido explicitar todas as consequências e as aplicações da sua mensagem, por isso garante a presença amiga de um guia seguro mesmo perante os problemas novos, os acontecimentos imprevistos, os desenvolvimentos das ciências humanas… Entre os múltiplos desafios de hoje encontram-se: as novas pobrezas, os fundamentalismos, a bioética, a globalização, o diálogo interreligioso, a ecologia… O Espírito intervém sempre com nova luz, força, perdão, consolação, porque é óleo de alegria, dom de amor.

As novas opções que a comunidade dos crentes em Cristo deverá fazer ao longo dos séculos, com a orientação do Espírito, não poderão estar em contradição com a mensagem de Jesus, mas serão um desenvolvimento da mesma, um aprofundamento criativo, uma aplicação respondente às exigências das pessoas em tempos e lugares diferentes. Uma situação tempestuosa para a Igreja – uma verdadeira questão de vida ou de morte! – apresentou-se quase imediatamente, por volta dos anos 50, a poucos lustros do acontecimento histórico de Jesus. O livro dos Actos (I leitura) narra as polémicas e animadas discussões entre dois grupos: de um lado, um grupo de cristãos provenientes do judaísmo, que queria impor aos cristãos determinadas práticas da antiga Lei antes de os baptizar; Paulo e Barnabé, pelo contrário, viam em tais práticas o risco de inutilizar a graça de Cristo e eram favoráveis ao acolhimento directo dos pagãos na comunidade cristã, sem imposições judaicas (v 1-2).

Muito sabiamente, o debate foi levado ao mais alto nível: à presença e ao discernimento dos Apóstolos em Jerusalém. Eram três as tendências surgidas no Concílio de Jerusalém: a linha aberta de Paulo e Barnabé, a atitude hesitante de Pedro, e a posição prática de Tiago, bispo de Jerusalém, que efectuou uma mediação entre Paulo e os judaizantes, com base em critérios pastorais e com algumas concessões transitórias (v. 29), como resulta do primeiro documento conciliar da Igreja católica (v. 23-29).

A presença do Espírito Santo é reconhecível em todo este atormentado caminho: na procura de uma comunhão mais forte com os chefes da Igreja, na discussão aberta a todos com vista a uma decisão da comunidade, na escuta dos vários expoentes e em particular de Pedro, na escolha de testemunhas credíveis a enviar aos irmãos de Antioquia. A presença do Espírito é eficaz sobretudo na clara afirmação da salvação oferecida a todos por meio de Cristo, facilitando assim o acesso dos pagãos ao Evangelho, sem lhes impor outras obrigações. Tal decisão é o resultado de uma feliz, ainda que árdua, sinergia: «O Espírito Santo e nós decidimos…» (v. 28).

«O itinerário histórico da Igreja tem um progresso nem sempre linear, como o próprio Concílio de Jerusalém atesta. Importantes são algumas virtudes como o dinamismo que impede a Igreja de ser nostálgica, a fidelidade que impede a Igreja de se extinguir, a paciência que impede a Igreja de ser frenética, a profecia que ajuda a Igreja a compreender os sinais dos tempos, a tolerância e o diálogo que impedem a Igreja da doença do absolutismo, a esperança que ajuda a Igreja a ultrapassar hesitações e incertezas. Mas acima de tudo há-de reinar a fé no Espírito, guia definitivo e vivo da Igreja» (G. Ravasi). O Método conciliar-sinodal foi testado e permanece válido para cada época, como caminho de comunhão e de missão!