II Domingo de PÁSCOA (C)
João 20, 19-31

Referências bíblicas:
- 1ª leitura: Atos 2,42-47
- 2ª leitura: 1 Pedro 1,3-9
- Evangelho: João 20,19-31
Meu Senhor e meu Deus
Marcel Domergue
As portas aferrolhadas
João insiste neste detalhe (versículos 19 e 26), em contraste com o túmulo aberto, e vazio, que Maria Madalena, Pedro e João haviam descoberto (20,1). Neste primeiro dia da semana, que também inaugura uma nova era, os discípulos ainda não haviam deixado de ter fé na morte. Ainda estão sob o regime do medo: medo dos que mataram Jesus, medo de morrer. E eis que, de repente, Jesus está no meio deles. Em nenhum lugar está dito que tivesse passado pelas portas: não tem mais necessidade de entrar, porque já estava lá, só que se tornara inacessível aos sentidos. Fez-se visível para ir encontrar os discípulos em seus infernos, no túmulo do medo em que haviam se trancado. Parece que não o reconheceram de imediato, pois lhes mostrara as suas chagas. Há aí uma espécie de regra geral: depois da Ressurreição, Jesus não é mais identificado imediatamente. Seu corpo não faz parte mais dos «objetos» deste mundo. Daí em diante, este corpo só será acessível através dos sacramentos, estes sinais de que a própria Igreja, declarada, aliás, o «corpo do Cristo», será a recapitulação. A fórmula de saudação dos judeus, «a paz», volta constantemente nos relatos das aparições; três vezes, nesta leitura. Esta insistência é significativa: o homem e Deus não estão mais sob o regime de afrontamento, simbolizado pelo fruto que foi apanhado da árvore, em Gênesis 3. Um mundo novo está aí. Deus e o homem se fazem um. Todas as portas estão abertas.
O dom do Espírito
Até a Páscoa, as pessoas viam Jesus como um homem que lhes era exterior e que os interpelava, convidando-os a acolherem o Evangelho do Reino. Daí em diante, não o verão mais; só pela fé irão encontrá-lo. E, no entanto, jamais lhes fora tão próximo: de exterior que era, agora, ele se lhes tornou interior. Fez-se um só corpo com eles, à medida ao menos em que reunidos em seu nome (Mateus 18,20). Esta presença do Cristo nos é dada pelo Espírito e no Espírito. Espírito que é um só com ele e que irá nos repetir e fazer compreender tudo o que Jesus disse e que irá nos introduzir na verdade total. Os versículos 21-23 da nossa leitura são chamados de Pentecostes de São João: bem menos espetacular que o dos Atos, por certo, mas destinado a nos fazer compreender que tudo já nos fora dado na ressurreição de Jesus. Os relatos que, em João e nos outros evangelistas, saltam do quadro deste “primeiro dia”, procuram simplesmente fazer-nos explorar todo o conteúdo do acontecimento pascal e querem nos fazer compreender que o regime agora inaugurado, a Nova Aliança, guarda a sua eficácia até o fim dos tempos. O Espírito que nos foi dado tem por figuras o sopro e o vento, sinais de vida e de extrema mobilidade. Por isso Jesus envia os seus discípulos para todo o mundo.
Tomé, o incrédulo
Foi por verem as chagas do Cristo que os discípulos acreditaram em sua nova presença (versículo 20). No fundo, quando exigiu ver para crer, Tomé não estava tão distante dos outros. Todo mundo de algum modo, de tempos em tempos, arrola-se entre os que querem sinais para consentir em crer. Em Mateus 12,38-40, Jesus anuncia que não será dado outro sinal que não o de seu desaparecimento por três dias no ventre da terra, assim como Jonas havia desaparecido por três dias no ventre do monstro marinho. O sinal dado foi, portanto, o desaparecimento deste que é o Sinal por excelência! Jesus acaba de desaparecer, quando vem Tomé, representando todos estes de quem é um irmão gêmeo simbólico, por se sentirem acuados e sem saída. Ficou em suspenso por oito dias, em sua descrença. Oito dias, sete dos quais formam um todo completo (a semana), mais um oitavo que inaugura os tempos novos. Novos de verdade: o Cristo, que tantas vezes havia repreendido os que exigiam ver para crer, rende-se agora à decisão de Tomé. Cristo cede: Deus submete-se ao homem. Vejo neste relato uma imensa ternura. Teria Tomé atendido ao convite de Jesus? Teria tocado em suas chagas? Não me parece. Mas dirige-lhe palavras extraordinárias: primeiro, os dois pronomes possessivos, “meu”, que expressam todo o amor do discípulo: em seguida e, sobretudo, o “meu Deus”. É a única vez que, nos evangelhos, Jesus é explicitamente chamado de Deus.
PASSAGEM QUE É ABERTURA PERMANENTE
José Tolentino Mendonça
Queridos irmãs e irmãos,
Um dos traços que caracteriza a relação de Jesus com aqueles que O procuram é, precisamente, Ele eliminar a distância, muitas vezes a distância vigiada pelas autoridades (distância sanitária, distância moral, distância religiosa), e tocar. Jesus não apenas curou os leprosos, Jesus incorreu no risco da pureza legal, e também da própria saúde, por tocar. Jesus não apenas sarava as feridas, mas reintroduzia na relação. E, por isso, o toque é tão importante no Evangelho e representa, de facto, o estilo de Jesus, que é trazer o outro plenamente à vida. Não é apenas resolver um problema ou uma doença ou uma patologia, mas é reintroduzir a pessoa numa relação, num diálogo de vida – a pessoa sentir-se tocada pelo amor, pela ternura, pela esperança que vem de Jesus.
Depois, nas aparições pascais, reaparece a questão do toque e é uma pergunta que nos é colocada. Tomé que duvida, mas perante a ressurreição quem não sente a dúvida? Quem não sente que tem de fazer um caminho? Quem não sente que não é uma coisa imediata mas é uma surpresa, mas é um espanto, mas é uma pedagogia que tem de acontecer na vida de cada um de nós? Tomé duvidou e disse: “Se eu não O tocar, se eu não meter o meu dedo no Seu lado, nas Suas feridas, não acreditarei.” E Jesus permite-lhe isso e diz : “Tomé, coloca o teu dedo.” Mas o Evangelho não nos diz se Tomé chegou a tocar ou não, porque ele como que interrompe esse movimento da sua mão dizendo: “Meu Senhor e meu Deus.”
E na relação com Maria Madalena nós temos um problema semelhante , porque quando Maria Madalena estende, no jardim do sepulcro, a sua mão para tocar em Jesus, Jesus diz-lhe: “Não Me toques.” “Noli me tangere”. E nós ficamos com esta palavra. Será que o Ressuscitado é aquele que se toca ou aquele que já não se toca? Será que o Cristo pascal, o Cristo da Ressurreição é o Cristo que já não se pode tocar? Quando Jesus diz a Madalena “Não Me toques” , ou quando Tomé, aparentemente sem tocar, sem necessitar de tocar já diz “Meu Senhor e meu Deus”, ou quando Jesus diz “Bem-aventurados os que acreditarem sem terem visto”, será que é uma fé que já não supõe a necessidade de tocar, a necessidade de tatear, a necessidade de ter uma prova concreta, uma prova empírica, aquelas que os nossos sentidos podem construir?
O filósofo Jean-Luc Nancy escreveu um belo livro, pequenino, um comentário fantástico sobre essa palavra de Jesus e sobre as aparições pascais, precisamente sobre isto, sobre o que é que significa não tocar Jesus, não tocar o Ressuscitado. Ele diz uma coisa interessante, que o não tocar é verdadeiramente compreender que o que nós somos chamados a tocar em Jesus é aquilo que passa. Por isso, o “Não Me toques” que Jesus diz a Maria Madalena, e que está aqui como questão de fundo no diálogo com Tomé, quer dizer “Não Me retenhas, não Me detenhas porque Eu sou passagem, porque Eu sou Páscoa. Eu sou Este que está aqui mas continua, Este que não Se deixa prender por nenhuma palavra, por nenhum gesto, Este que é vida em absoluto.” No fundo, a Páscoa, a fé pascal, pede de nós uma capacidade de acreditar Naquele que é vida, não naquele que se faz vida de uma forma representada concreta que eu posso deter, que eu posso tocar, que eu posso reter. O Ressuscitado introduz-nos no mistério da vida que é passagem, que é abertura permanente, que é Páscoa, que é Êxodo, que não é apenas daqui e dali mas que está, mas que é em toda a parte. E no fundo, o Ressuscitado inicia-nos naquilo que é o mistério do Amor, do verdadeiro Amor.
E no amor as pessoas tocam-se, na intimidade as pessoas tocam-se, mas o que é que tocam verdadeiramente? O verdadeiro toque do amor é aquele toque que não é para reter, não é para prender mas é tocar aquilo que cada um tem de intocado, o mistério de cada um. E no fundo, a fé Pascal o que é que nos abre? Abre-nos ao mistério de Jesus. Nós devemos ver Jesus na Sua realidade total, naquilo que Ele é.
Muitas vezes os homens e as mulheres viram o Jesus histórico, não O conseguiam compreender. Ele era apenas mais um profeta, era apenas mais um que pretendia ser o Messias, era mais um contador de parábolas, era mais um. Na Páscoa nós somos chamados a perceber Jesus como o único, somos chamados a compreender a Sua realidade total e isso pede de nós um salto, pede de nós uma capacidade de acreditar para poder ver. Normalmente nós vemos para acreditar, é essa a nossa metodologia no trabalho com a realidade. O Ressuscitado inaugura uma nova metodologia, nós temos de acreditar para poder ver, nós temos de não tocar para poder tocar, nós temos de não reter para poder verdadeiramente possuir, nós temos de aceitar o silêncio, a distância para poder verdadeiramente viver a intimidade e a relação, e isto é a nova relação, a nova relação pascal.
Mas, queridos irmãos, desta relação nós nascemos, nós nascemos. E por isso é tão maravilhoso o gesto que Jesus faz. Ele chega-Se ao interior do grupo e diz: “A paz esteja convosco.” E sopra sobre eles. Claramente este soprar é uma alusão à criação do Adão e da Eva quando Deus faz o Homem, amassa-o do barro e sopra nas Suas narinas para lhe dar vida. Jesus sopra o Espírito sobre nós também para nos vivificar, também para nos dar uma vida nova, para nos dar uma perspetiva nova, para nos dar uma compreensão nova da própria vida. E por isso nós nascemos da Páscoa. A Páscoa é o nosso berço, a Páscoa é o lugar onde cada um de nós reencontra o significado da própria vida mas também o método, mas também a maneira, a maneira de viver.
É muito belo aquilo que os Atos dos Apóstolos nos contam: “Das mãos dos discípulos saiam milagres e prodígios.” Iam todos juntos em consonância, em harmonia, numa capacidade de comunhão que causava espanto a todos.
Queridos irmãos, a Páscoa enche-nos de confiança. Das nossas mãos também saem milagres, das mãos de todos nós. As nossas mãos são instrumentos do milagre, instrumentos do prodígio. Nós precisamos confiar naquilo que o Ressuscitado faz das mãos de cada um de nós e saber que a melhor expressão da nova criação que a Páscoa começa é verdadeiramente a capacidade de viver a comunhão, a capacidade de vivermos uns com os outros, de criarmos história, de criarmos relação insuflados pelo Espírito novo. A Páscoa dá-nos o Espírito, a nós que tantas vezes vivemos desalmados como se nos faltasse a alma, o ânimo, o Espírito. A Páscoa é a grande relativização, o grande levantamento e por isso este é um tempo de confiança, queridos irmãs e irmãos. Tempo para viver na confiança, tempo para acreditar na vida, tempo para acreditar na potência de Deus em cada um de nós. Deus pode, Deus pode. Que na comunhão, na amizade, na solidariedade, no serviço, na reconstrução da vida, no cuidado uns pelos outros, na atenção aos mais frágeis, na celebração da esperança nós possamos reencontrar este Cristo que agora está, que agora é, plenamente, perto de nós.
Jesus vem ao encontro dos seus
Enzo Bianchi
Todo o capítulo 20 do quarto Evangelho narra a fidelidade de Jesus, que é Aquele que vem ao encontro dos seus mesmo quando eles não o merecem e não estão à sua espera. Ele não se cansa de vir ao encontro dos seus, fazendo renascer a Igreja e o testemunho da sua ressurreição. Esta página é um canto à misericórdia do Senhor que vem à sua comunidade com o perdão, com a remissão dos pecados, com a paciência de um Deus que nos ama sempre, mesmo quando não o merecemos e hesitamos em crer nele.
O capítulo final do Evangelho segundo João, Jo 20 (Jo 21 é um acréscimo posterior), deveria ser lido por inteiro, para compreender em profundidade o primeiro dia da semana, o terceiro dia após a morte de Jesus, ocorrida na sexta-feira (sexto dia), 4 de abril do ano 30 da nossa era. A menção de que aquele era “o primeiro dia” dá o ritmo a todo o relato: ela se encontra no início do relato da aparição a Madalena (Jo 20,1), no início do relato da aparição aos discípulos (Jo 20,19) e, depois, está subentendida na expressão “oito dias depois” (Jo 20,26).
O primeiro dia da semana é o dia da ressurreição do Senhor, mas é também o dia em que o Ressuscitado se faz presente entre os seus: é o dia do Senhor (kyriaké heméra), o dia da intervenção decisiva de Deus que, ressuscitando Jesus, venceu a morte. A partir do Novo Testamento, sabemos também que precisamente “o primeiro dia da semana” (At 20,7; 1Cor 16,2) é o escolhido pelos cristãos para estar “no mesmo lugar” (epì tò autó: At 1,15; 2,1.14.47; 1Cor 11,20; 14,23), para ser assembleia de irmãos e irmãs juntos, que experimentam a vinda do Ressuscitado no meio deles.
Tendo caído a noite daquele primeiro dia, o desconforto e o desencorajamento reinam nos corações dos discípulos que não creram nem em Maria Madalena, que lhes anunciou a ressurreição de Jesus e o encontro com ele (cf. Jo 20,18), nem no discípulo amado que, só de ver o sepulcro vazio, tinha chegado à fé (cf. Jo 20,8). Mas Jesus lhes havia prometido: “Depois da minha morte, ‘mais um pouco e vocês me verão’” (Jo 16,16; cf. 14,18)”, e, fiel à palavra dada, “entrou e pôs-se no meio deles”. Jesus é visto pelos discípulos no meio deles, no centro da sua assembleia, como aquele que cria e dá unidade, que “atrai todos para si” (cf. Jo 12,32). A comunidade cristã tem assim o seu ícone autêntico: tem o seu centro apenas em Jesus ressuscitado, de modo que todos olhem para ele (cf. Jo 19,37; Zc 12,10).
Nessa posição de Kýrios, de Senhor, o Ressuscitado então diz: “Shalom ‘aleikhem! Paz a vocês!”, a saudação messiânica, palavra eficaz que traz paz, vida plena e expulsa o medo. E, para que as palavras sejam autenticadas pela sua pessoa de Mestre, Profeta e Messias, conhecido pelos discípulos nas suas vidas junto com ele, Jesus mostra as mãos e o lado que ainda carregam os sinais da sua paixão e morte (cf. Jo 19,34).
Visão paradoxal: Jesus está presente com um corpo que não é um cadáver reanimado, mas que também entra com as portas fechadas, não obedecendo às leis do tempo e do espaço; um “corpo de glória” (Fp 3,21), um “corpo espiritual” (1Cor 15,44.46), no qual, porém, permanecem os sinais da paixão, do fato de ter sofrido a morte por amor. São sinais de paixão e, ao mesmo tempo, de glória, de vitória sobre a morte, sinais do amor vivido “até o fim, ao extremo” (eis télos: Jo 13,1). Para aqueles que temem ser perseguidos, Jesus se mostra como o perseguido que permaneceu fiel e que, vencedor a morte por causa do seu amor fiel e pleno, pode vir ao meio deles trazendo paz, solidez e força.
“Então os discípulos se alegraram por verem o Senhor.” Aconteceu aquilo que Jesus tinha profetizado: “Agora, vocês também estão angustiados. Mas, quando vocês tornarem a me ver, vocês ficarão alegres, e essa alegria ninguém tirará de vocês” (Jo 16,22). Nesta nova situação da comunidade, o Ressuscitado, que prometera não a deixar órfã (cf. Jo 14,18) e de lhe dar outro Consolador (cf. Jo 14,16), dá o dom dos dons, o dom para sempre. Ele repete a saudação “Paz a vocês!” e anuncia: “Como o Pai me enviou, também eu os envio”. Os discípulos acolheram o Enviado de Deus, seguiram-no e creram nele; agora, também eles são enviados a todo o mundo, para ser como ele, Jesus, foi em toda a sua vida: testemunhas da verdade, da fidelidade de Deus, isto é, do seu amor pela humanidade. Com a sua vida devem mostrar que “Deus amou de tal forma o mundo, que entregou o seu Filho único” (Jo 3,16). É apenas uma questão de viver o amor de Jesus Cristo pela humanidade: quem é enviado deve se tornar rosto, boca, mãos, ouvidos de quem o enviou, e assim os discípulos devem ser corpo de Cristo entre os outros, no mundo.
Para serem habilitados para essa missão, eles devem ser recriados, regenerados: era preciso uma imersão no Espírito Santo, era preciso o Espírito como novo sopro no coração de carne (cf. Ez 36,26), era preciso uma nova criação (cf. Is 43,18-19). Então, Jesus, o Ressuscitado que respira o Espírito Santo, efunde-o sobre a sua comunidade. Se esse Sopro santo é sopro vital para Jesus, uma vez soprado sobre os discípulos, torna-se o sopro vital deles: um só Sopro, um só Espírito nele e neles!
Nós, cristãos, vasos de barro frágeis e pecadores (cf. 2Cor 4,7), por dom de Jesus ressuscitado, respiramos o Espírito Santo que nos dá a vida, perdoa os pecados, habilita-nos para a vida eterna no Reino de Cristo. Somos, portanto, o corpo de Cristo, o “templo do Espírito Santo” (1Cor 6,19).
Esse é o Pentecostes para o quarto Evangelho, a Igreja dom do Espírito Santo soprado pelo Ressuscitado. O mesmo Espírito que ressuscitou Jesus da morte (cf. Rm 1,4; 8,11) é doador de vida aos discípulos e, como “companheiro inseparável de Cristo” (Basílio de Cesareia), torna-se companheiro, amigo inseparável para todo cristão. É ele, presente em cada discípulo e discípula, que recorda as palavras de Jesus (cf. Jo 14,26), que o torna presente e testemunha que ele é o Senhor (cf. 1Cor 12,3).
O Espírito Santo, Espírito de Deus e Sopro de Cristo, nos é dado na nossa condição de corpo humano, de carne. Não se deve esquecer que, no quarto Evangelho, a carne (sárx) é o lugar da humanização de Deus: “A Palavra se fez carne” (Jo 1,14). Para João, a carne não é apenas lugar de tentação e de pecado, mas também é um lugar não desprezível nem indigno, porque foi escolhido por Deus para estar conosco e no meio de nós. A carne é um lugar de conhecimento a serviço da Palavra de Deus que a habita: eis a morada do Espírito Santo.
Por isso, assim como Jesus foi concebido como carne pelo Espírito Santo e por uma mulher, assim também a Igreja é gerada pelo Espírito Santo e pela humanidade, e faz do sopro do Espírito a sua respiração.
Mas isso tem um impacto decisivo sobre a vida dos cristãos: significa remissão dos pecados, porque a experiência da salvação que podemos fazer aqui e agora na história, antes da transfiguração de todas as coisas na gloriosa vinda de Cristo, é a experiência da remissão dos pecados. Cantamos isso todas as manhãs no Benedictus: “… anunciando ao seu povo a salvação, que está na remissão de seus pecados” (Lc 1,77). Receber o Espírito Santo é receber a remissão dos pecados, isto é, viver aquela ação do Senhor que não só perdoa, mas também apaga, esquece os nossos pecados, fazendo de nós criaturas novas (cf. Jr 31,34; Ez 18,22; 33,16).
Essa é a epifania da misericórdia de Deus, aquele amor de Deus profundo, visceral e infinito que, quando nos alcança, nos liberta das culpas e nos recria em uma novidade que nós não podemos nos dar! A comunidade dos discípulos é a comunidade do perdão recíproco, e não apenas como comunidade que tem a capacidade de apagar o pecado. Essa capacidade é dada a todos os discípulos por Jesus, e eles a mantêm e a exercem enquanto estiverem em comunhão com ele por meio do Espírito Santo. A capacidade de perdoar os pecados, isto é, de libertar da culpa e de fazer misericórdia, é dada por Jesus a todos os discípulos: não só aos Onze, porque, no cenáculo, no dia de Pentecostes, estão também as mulheres, está Maria junto com outros discípulos e discípulas (cf. At 1,13-15; 2,1).
Jesus, “o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo” (Jo 1,29), batizando os discípulos no Espírito Santo (cf. Jo 1,33), capacita-os para a sua missão: perdoar, fazer misericórdia, reconciliar com Deus e com os irmãos e as irmãs. Pela cruz e pela ressurreição, a humanidade foi reconciliada com Deus, mas tal evento deve ser anunciado a todos, e os discípulos são enviados para isso: aonde chegarem, devem manifestar e fazer reinar a misericórdia de Deus, devem viver o mandamento último e definitivo do amor recíproco (cf. Jo 13,34; 15,12), devem perdoar os pecados uns aos outros, habilitados, portanto, a pedir o perdão dos pecados a Deus. Onde há um cristão autêntico, há um ministro da misericórdia que faz o mal e o pecado recuarem, e que faz a misericórdia reinar.
E que fique claro: as palavras de Jesus que acompanham o gesto de soprar o Espírito – “A quem perdoardes os pecados eles lhes serão perdoados; a quem os não perdoardes, eles lhes serão retidos” – são expressadas por meio de um estilo tipicamente semítico, que se serve de duas expressões contrastantes para afirmar com mais força uma realidade. Não significam, portanto, um poder que os discípulos poderiam utilizar de acordo com o seu arbítrio e o seu juízo; pelo contrário, expressam com força que a sua tarefa é a remissão dos pecados, o perdão, a misericórdia, como foi para Jesus, que em toda a sua vida nunca condenou, mas sempre disse que veio não para julgar e condenar (cf. Jo 8,15; 12,47), mas para que todos “tenham vida e a tenham em abundância” (Jo 10,10).
“Como o Pai me enviou, também eu os envio”, em que esse “como” também remete a um estilo, a ponto de podermos parafrasear: “Como eu perdoei os pecados, também vocês devem perdoá-los; é com essa tarefa que eu os envio”. É o que Jesus afirmou de modo sumário, segundo Lucas, no início do seu ministério público na sinagoga de Nazaré:
O Espírito do Senhor está sobre mim,
porque ele me consagrou com a unção,
para anunciar a Boa Notícia aos pobres;
enviou-me para proclamar a libertação aos presos
e aos cegos a recuperação da vista;
para libertar os oprimidos,
e para proclamar um ano de graça do Senhor (Lc 4,18-19; cf. Is 61,1-2).
Feita essa experiência, os discípulos anunciam a Tomé, não presente na primeira manifestação do Ressuscitado: “Vimos o Senhor!”. É o anúncio pascal que deveria ser suficiente para acolher a fé no Ressuscitado. Mas Tomé não crê, essas palavras lhe parecem desvarios inconfiáveis, então ele responde com força: “Se eu não vir a marca dos pregos em suas mãos, se eu não puser o dedo nas marcas dos pregos e não puser a mão no seu lado, não acreditarei”.
Mas, “oito dias depois”, portanto no primeiro dia da segunda semana depois do túmulo vazio, eis Tomé e os outros discípulos novamente juntos, naquela casa em Jerusalém. É o primeiro, mas também o oitavo dia, dia da plenitude, do cumprimento. Os discípulos, que já vivem há uma semana nesse novo tempo iniciado pela ressurreição, continuam habitando no medo dos assassinos de Jesus. Deveriam levar com franqueza o anúncio pascal para toda a Jerusalém, mas, em vez disso, apesar do envio à missão, apesar do dom do Espírito Santo, permanecem fechados, dominados pelo medo.
Mas Jesus se faz novamente presente: “Estando fechadas as portas, Jesus entrou, pôs-se no meio deles e disse: ‘A paz esteja convosco’”. Eis a fidelidade de Jesus que vem, que é Aquele que vem entre os seus, mesmo quando eles não merecem e não estão à sua espera. Ele vem ao meio dos seus, não se cansa de vir, fazendo sempre renascer a Igreja e o testemunho da sua ressurreição. Acima de tudo, ele entrega a paz, “a sua paz, não a do mundo” (cf. Jo 14,27), depois se dirige a Tomé, “chamado Dídimo”, o “gêmeo” de cada um de nós.
Sim, Tomé é o irmão gêmeo em quem devemos nos espelhar nos nossos entusiasmos, em que chegamos a dizer: “Vamos nós também para morrermos com ele” (Jo 11,16), assim como nos nossos momentos obscuros, em que não conseguimos crer, aderir, colocar a confiança no Senhor. Tomé é o irmão gêmeo no qual há, assim como em nós, a lógica de querer ver para crer, de constatar, de ter provas.
Tomé é como nós: quando se perfila o evento da ressurreição, vemos morte (cf. Jo 11,15-16); quando Jesus anuncia que ele nos precede, não sabemos qual é o caminho (cf. Jo 14,2-6); quando devemos confiar no testemunho dos nossos irmãos e irmãs, queremos ser aquele que veem e decidem…
Mas Jesus vem também para Tomé, ovelha perdida procurada pelo pastor, e ele também se mostra com os sinais do seu amor: os estigmas da sua paixão impressos para sempre na sua carne gloriosa. A carne de Jesus, corpo de homem, passou pela paixão e morte, e o que ele viveu permanece também na sua carne de corpo glorioso. A ressurreição apaga todos os sinais da morte e do pecado, mas não os sinais do amor vivido, porque o amor vence a morte, e ter amado tem uma força que transcende a morte. Todo o cuidado pelos doentes que as mãos de Jesus praticaram, todas as carícias que ele fez, todo o seu amor vivido no coração, todas as forças liberadas pelo seu peito estão visíveis também no seu corpo ressuscitado. Jesus, portanto, convida Tomé a se aproximar e a pôr o seu dedo naqueles estigmas.
E aqui, atenção, não está escrito que Tomé colocou o dedo nos furos das mãos e na ferida do lado, mas sim que disse: “Meu Senhor e meu Deus!”. Reconhecendo o amor vivido por Jesus, do qual os estigmas são o sinal perene, Tomé crê e confessa: “Ho Kýriós mou ho Theós mou!”. Jesus ressuscitado é o Kýrios; mais, é Deus. O Senhor de Tomé é o Deus de Tomé. Não há confissão de fé mais alta em todos os Evangelhos. Essa é a proclamação mais plena e sincera: Jesus é o Senhor, Jesus é Deus. É por isso que quem vê Jesus vê o Pai (cf. Jo 14,9); é por isso que Jesus é a exegese de Deus que ninguém jamais viu nem pode ver (cf. Jo 1,18); é por isso que Jesus é “o Vivente” (Lc 24,5) para sempre.
Tomé certamente não é um modelo, embora possamos nos reconhecer nele. Por isso, Jesus lhe diz: “Bem-aventurados os que creram sem terem visto”. Não vendo, não constatando, mas sim contemplando o Crucificado, portanto conhecendo o seu amor vivido, é que se começa a crer. Milagres, visões, aparições não nos permitem acessar a verdadeira fé. Somente a palavra de Deus contida nas Sagradas Escrituras, somente o amor de Jesus do qual o Evangelho é anúncio e narração (“sinal escrito”, para usar a expressão do fechamento do Evangelho), somente estar no espaço da comunidade dos discípulos do Senhor é que podem nos levar à fé, podem nos fazer invocar Jesus como “meu Senhor e meu Deus”.
Todo esse capítulo 20 do quarto Evangelho é um canto à misericórdia do Senhor que vem à sua comunidade com o perdão, com a remissão dos pecados, com a paciência de um Deus que nos ama sempre, mesmo quando nós não o merecemos e hesitamos em crer nele.
Três dons do Ressuscitado: o Espírito, o perdão, a missão
Romeo Ballan, MCCJ
É significativa a cronologia que nos oferece o Evangelho de João sobre «aquele dia, o primeiro da semana» (v. 19), o dia mais importante da história. Porque naquele dia Cristo Ressuscitou. Aquele dia tinha iniciado com a ida de Maria Madalena ao sepulcro «logo de manhã ainda escuro» (Jo 20,1). No Evangelho de hoje, estamos na «tarde daquele dia… estando as portas fechadas… com medo dos judeus» (v. 19). A reconstituição de espaço e tempo, e também a psicológica, é completa. Iniciou enfim a história nova para a humanidade, no sinal de Cristo ressuscitado. Prescindir d’Ele seria uma perda de valores e um risco para a própria sobrevivência humana.
As portas fechadas e o medo são ultrapassados com a presença de Jesus, o Vivente, que por bem três vezes anuncia: «A paz esteja convosco!» (v. 19.21.26), provocando a alegria intensa dos discípulos «ao ver o Senhor» (v. 20). Paz e alegria encontram-se entre as características mais evidentes da primeira comunidade cristã (I leitura): tomavam o alimento com alegria e simplicidade de coração e gozavam da simpatia de todo o povo (v. 46-47). Uma simpatia justificada, dada a solidez e a irradiação missionária daquele novo grupo que se alicerçava sobre quatro pilares (42): ensino dos apóstolos, fracção do pão, oração e koinonia (união fraterna, partilha de bens). Pedro (II leitura), por sua vez, exorta os fiéis a estar «cheios de alegria, embora seja preciso ainda… passar por diversas provações» (v. 6). A Páscoa de Jesus faz ultrapassar os medos do cristão e do missionário; a fé, que conduz ao encontro com Cristo ressuscitado, ajuda a ultrapassar também as dificuldades psicológicas, como a angústia, os receios, a depressão…
São três os principais dons que Cristo ressuscitado oferece à comunidade: o Espírito, o perdão dos pecados e a missão. O fruto maior da Páscoa é sem dúvida o dom do Espírito Santo, que Jesus sopra sobre os discípulos: «Recebei o Espírito Santo» (v. 22). Ele é o Espírito da criação redimida e renovada, que Jesus derrama no momento da morte na cruz (Jo 19, 30), como prelúdio do Pentecostes (Actos 2ss).
Para João o dom do Espírito está essencialmente relacionado com o dom da paz e, portanto, com o perdão dos pecados, como disse Jesus: «Àqueles a quem perdoardes os pecados, ser-lhes-ão perdoados» (v. 23). A paz verdadeira tem as suas raízes na purificação dos corações, na reconciliação com Deus, com os irmãos e com toda a criação. Esta reconciliação é obra do Espírito, porque «Ele é a remissão de todos os pecados» (veja-se a oração sobre as ofertas, na Missa do sábado antes do Pentecostes, e a nova fórmula da absolvição sacramental). Para o evangelista Lucas «a conversão e o perdão dos pecados» são a mensagem que os discípulos deverão anunciar «a todas as gentes» (Lc 24, 47). Com razão, portanto, o sacramento da reconciliação é um inestimável presente pascal de Jesus: é o sacramento da alegria cristã (Bernardo Häring).
Os dons do Ressuscitado são para anunciar e partilhar com toda a família humana; por isso Jesus naquela tarde, anuncia uma missão universal, que Ele confia aos apóstolos e aos seus sucessores: «Assim como o Pai me enviou, também Eu vos envio a vós» (v. 21). São palavras que vinculam para sempre a missão da Igreja com a vida da Trindade, porque o Filho é o missionário enviado pelo Pai para salvar o mundo, por meio do amor. «Assim como o Pai me enviou, também Eu vos envio a vós», são palavras para ser lidas em paralelo com estas outras: «Assim como o Pai me amou, também Eu vos amei» (Jo 15, 9), estabelecendo uma ligação indivisível entre missão-amor, amor-missão. Com estas palavras permanece para sempre sancionado que a Missão universal nasce da Trindade (AG 1-6) e é dom-empenho pascal de Jesus ressuscitado.
Os três dons do Ressuscitado: o Espírito, a reconciliação e a missão, são vividos por nós na fé. Apesar de não vermos o Senhor, somos felizes (v. 29) se acreditarmos n’Ele e O amarmos. Estamos, portanto, gratos a Tomé (v. 25), que quis pôr a mão na ferida do Coração de Cristo, que «cubiculum est Ecclesiae», é o aposento íntimo/secreto da Igreja (Santo Ambrósio). Aquele Coração é o santuário da Divina Misericórdia, título e tesouro que neste domingo é celebrado com crescente devoção popular. A misericórdia divina é, desde sempre, a mais vasta e consoladora revelação do mistério cristão: «A terra está cheia de miséria humana, mas repleta da misericórdia de Deus» (Santo Agostinho). Esta é a “boa-nova” permanente, que a Missão leva à humanidade inteira.