1ª leitura: Is 52,13-53,12
Salmo: Sl 30
2ª leitura: Hb 4,14-16.5,7-9
Evangelho: Jo 18,1 a 19,42

“Eis o homem”

A ninguém passam despercebidas as semelhanças que existem entre a profecia do Servo (1ª leitura) e os relatos da Paixão. Os evangelistas tinham, com certeza, Isaías em mente, ao redigirem o texto. Tem-se a impressão de que Jesus segue um modelo pré-fabricado. Os exegetas se perguntam quem seria este Servo sofredor de Is 52-53. Seria Davi perseguido por Saul? Ou Jeremias, o profeta perseguido? Ou o povo de Israel, hostilizado pelos pagãos? É forçoso responder: são estes e muitos outros mais, ou seja, todos os que foram, são e serão um dia levados a bradar “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” (Mc 15,34). Jesus assume as dores e angústias de todos os perseguidos da história, de todos os que sofreram, sofrem e sofrerão por não importa qual motivo. “Eis o homem”, diz Pilatos: eis o homem  todo e todos os homens! Em Isaías, à vista do estado miserável a que foi reduzido o Servo sofredor, as testemunhas o tomam primeiramente por um pecador castigado por Deus, um “leproso” a ser evitado. Mas, bruscamente (Is 53,4), elas se voltam em outra direção: o que ali vemos, somos nós mesmos! Este homem é a revelação do nosso mal, da nossa desgraça conhecida ou ignorada. Ele carrega o pecado do mundo e forçoso é voltarmos nosso olhar para aquele que trespassamos. Nele se manifestam todas as dimensões de nossa sempre disfarçada perversidade bem como “a largura, a altura e a profundidade do amor” de um Deus que quis ser até este extremo Emanuel, o “Deus-conosco”.  

Falência da justiça

A Paixão é um processo. A Bíblia está cheia de alusões ao processo que Deus move contra os homens: é o tema do julgamento. Aqui, porém, assistimos ao processo que os homens movem contra Deus. Aliás, um duplo processo: dos judeus (que O conhecem) e dos pagãos (que não sabem onde se encontra a verdade). Os dois inimigos, que materializam na Escritura o imemorial conflito entre homem e homem participam agora da condenação à morte do Justo. Primeira conivência, primeiro acordo, compartilhamento perverso na injustiça. Esta primeira cumplicidade reverterá depois, tornando-se aliança no amor entre judeus e não judeus, por obra do Espírito que Jesus “emite” no momento mesmo de sua morte: “paredoken to pneuma” (Jo 19,30). Mas, antes disso, eis que a justiça é escarnecida pelos homens! Jesus prossegue em seu caminho… Renuncia também Ele à justiça: os culpados não serão punidos, mas salvos. Tudo é subvertido pela Paixão de Cristo. E nós ficamos definitivamente isentos do regime da justiça, em virtude da qual poderíamos ser condenados. A Paixão é sentença de absolvição para todos os pecadores!

Da justiça ao amor

Não é possível inventariar tudo o que nos revela a Paixão segundo S. João. No seio mesmo de sua humilhação, Jesus é nela Mestre e Senhor: no Jardim das Oliveiras, os guardas caem por terra ante a revelação de sua identidade (18,6); Ele não julga diretamente o guarda que o esbofeteia, mas convida-o a julgar-se a si próprio (18,23); avalia, pelo contrário, a falta de Pilatos, comparando-a à “de quem o entregou” (19,11). Eis como é exercido o julgamento cujo veredito é sempre de perdão: não se trata de ignorar a culpa, mas, sim, de absolvê-la! Desviar os olhos do que foi trespassado é passar ao largo do perdão. Jesus é Senhor e até mesmo Rei (18,23-38). Ora, todo Rei exerce o poder. Qual é o poder deste crucificado? A atração irresistível da Verdade! Verdade que não vem juntar-se a “verdades”, ao que já existe no homem, mas que desvela o que nele, embora oculto, é capaz de torná-lo plenamente humano: o amor, pois amor e verdade se casam. Onipotência de um amor poderoso o bastante para renunciar ao poder e, amorosamente, ir ao encontro da fraqueza. Retornamos assim ao início do relato de S. João“Tendo amado os seus que estavam no mundo, amou-os até o fim” (13,1).

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Bacio di Giuda3

Dentro da história divino-humana da paixão de Jesus existem muitas pequenas histórias de homens e de mulheres que entraram no raio da sua luz ou da sua sombra. A mais trágica delas é a de Judas Iscariotes. É um dos poucos fatos comprovados, com igual destaque, por todos os quatro Evangelhos e pelo resto do Novo Testamento. A primitiva comunidade cristã tem refletido muito sobre ele e nós faríamos mal se não fizéssemos o mesmo. Ela tem muito a nos dizer.

Judas foi escolhido desde a primeira hora para ser um dos doze. Ao incluir o seu nome na lista dos apóstolos o evangelista Lucas escreve “Judas Iscariotes, que se tornou” (egeneto) o traídor” (Lc 6, 16). Portanto, Judas não tinha nascido traidor e não o era quando foi escolhido por Jesus; tornou-se! Estamos diante de um dos dramas mais obscuros da liberdade humana. Por que se tornou? Em anos não distantes, quando estava de moda a tese do Jesus “revolucionário”, tentou-se dar a seu gesto motivações ideais. Alguém viu no seu apelido “Iscariotes” uma deformação de “sicariota”, ou seja, pertencente ao grupo de zelotes extremistas que atuavam como “sicários” contra os romanos; outros pensaram que Judas estivesse desapontado com a maneira em que Jesus realizou a sua ideia do “reino de Deus” e que quisesse força-lo a agir no plano político contra os pagãos. É o Judas do famoso musical “Jesus Christ Superstar” e de outros espetáculos e novelas recentes. Um Judas muito semelhante a um outro célebre traidor do próprio benfeitor: Brutus, que matou Júlio César para salvar a República!

São reconstruções que devem ser respeitadas quando contém alguma dignidade literária ou artística, mas não têm nenhuma base histórica. Os Evangelhos – as únicas fontes confiáveis ​​que temos sobre a personagem – falam de um motivo muito mais terra-terra: o dinheiro. Judas tinha a responsabilidade da bolsa comum do grupo; na ocasião da unção em Betânia havia protestado contra o desperdício do perfume precioso derramado por Maria aos pés de Jesus, não porque se preocupasse pelos pobres, assinala João, mas porque “era um ladrão e, como tinha a bolsa, tirava o que se colocava dentro”(Jo 12, 6). A sua proposta aos chefes dos sacerdotes é explícita: “Quanto estão dispostos a dar-me, se vo-lo entregar? E eles fixaram a soma de trinta moedas de prata” (Mt 26, 15).

Mas por que maravilhar-se desta explicação e achar que ela é banal? Não foi quase sempre assim na história e não é ainda assim hoje em dia? Mamona, o dinheiro, não é um dos muitos ídolos; é o ídolo por excelência; literalmente, “o ídolo de metal fundido” (cf. Ex 34, 17). E se entende o motivo. Quem é, objetivamente, se não subjetivamente (ou seja, nos fatos, não nas intenções), o verdadeiro inimigo, o rival de Deus, neste mundo? Satanás? Mas nenhum homem decide servir, sem motivo, a Satanás. Se o faz, é porque acredita que vai ter algum poder ou algum benefício temporal. Quem é, nos fatos, o outro patrão, o anti-Deus, Jesus no-lo diz claramente: “Ninguém pode servir a dois senhores: não podeis servir a Deus e a Mamona” (Mt 6, 24). O dinheiro é o “deus visível[1]”, em oposição ao verdadeiro Deus que é invisível.

Mamona é o anti-Deus, porque cria um universo espiritual alternativo, muda o objeto das virtudes teologais. Fé, esperança e caridade não são mais colocados em Deus, mas no dinheiro. Ocorre uma sinistra inversão de todos os valores. “Tudo é possível ao que crê”, diz a Escritura (Mc 9, 23); mas o mundo diz: “Tudo é possível para quem tem dinheiro”. E, em certo sentido, todos os fatos parecem dar-lhe razão.

“O apego ao dinheiro – diz a Escritura – é a raiz de todos os males” (1 Tm 6,10). Por trás de todo o mal da nossa sociedade está o dinheiro, ou pelo menos está também o dinheiro. Esse é o Moloch de bíblica memória, ao qual foram imolados jovens e crianças (cf. Jer 32, 35), ou o deus Azteca, ao qual era preciso oferecer diariamente um certo número de corações humanos. O que está por trás do tráfico de drogas que destrói tantas vidas humanas, a exploração da prostituição, o fenômeno das várias máfias, a corrupção política, a fabricação e comercialização de armas, e até mesmo – coisa horrível de se dizer – a venda de órgãos humanos removidos das crianças? E a crise financeira que o mundo atravessou e que este país ainda está atravessando, não é, em grande parte, devida à “deplorável ganância por dinheiro”, o auri sacra fames[2], de alguns poucos? Judas começou roubando um pouco de dinheiro da bolsa comum. Isso não diz nada para certos administradores do dinheiro público?

Mas sem pensar nesses modos criminosos de ganhar dinheiro, por acaso, já não é escandaloso que alguns recebam salários e pensões cem vezes maiores do que daqueles que trabalham nas suas casas, e que já levantem a voz só com a ameaça de ter que renunciar a algo, em vista de uma maior justiça social?

Nos anos 70 e 80, para explicar, na Itália, diante as imprevistas mudanças políticas, os jogos ocultos de poder, o terrorismo e os mistérios de todo tipo que atormentava a convivência civil, foi-se afirmando a ideia, quase mítica, da existência de um “grande Velho”: um personagem muito sagaz e poderoso que dos bastidores teria movido as fileiras de tudo, para finalidades somente conhecidas por ele. Este “grande Velho” existe realmente, não é um mito; chama-se Dinheiro!

Como todos os ídolos, o dinheiro é “falso e mentiroso”: promete a segurança e, em vez disso, a tira; promete a liberdade e, em disso, a destrói. São Francisco de Assis descreve, com uma severidade incomum, o fim de uma pessoa que viveu somente para aumentar o seu “capital”. Aproxima-se a morte; chamam o sacerdote. Ele pergunta ao moribundo: “Queres o perdão de todos os teus pecados?”, e ele responde que sim. E o sacerdote: “Estás preparado para satisfazer os erros cometidos com os demais?”. E ele: “Não posso”. “Por que não podes?”. “Porque já deixei tudo nas mãos dos meus parentes e amigos”. E assim ele morre impenitente e, apenas morto, os parentes e amigos dizem entre si: “Maldita a sua alma! Podia ganhar mais e deixar-nos, e não o fez![3]”.

Quantas vezes, nestes tempos, tivemos que refletir naquele grito dirigido por Jesus ao rico da parábola que tinha acumulado muitos bens e se sentia seguro pelo resto da vida: “Tolo, esta mesma noite a tua alma te será pedida; e o que tens acumulado, de quem será?” (Lc 12, 20). “Homens colocados em cargos de responsabilidade que não sabiam mais em qual banco ou paraíso fiscal acumular os proventos da sua corrupção encontraram-se no banco dos réus, ou na cela de uma prisão, justamente quando estavam pra dizer a si mesmos: “Agora goza, minha alma”. Para quem o fizeram? Valia a pena? Fizeram realmente o bem dos filhos e da família, ou do partido, se é isso que procuravam? Ou não acabaram destruindo a si mesmos e os demais? O deus dinheiro se encarrega de punir, ele mesmo, os seus adoradores.

A traição de Judas continua na história e o traído é sempre ele, Jesus. Judas vendeu o chefe, os seus seguidores vendem o seu corpo, porque os pobres são membros de Cristo. “Tudo aquilo que fizestes a um só destes meus irmãos pequeninos, a mim o fizestes” (Mt 25, 40). Mas a traição de Judas não continua somente nos casos clamorosos aos quais me referi. Seria cômodo para nós pensar assim, mas não é assim. Ficou famosa a homilia que pronunciou numa Quinta-feira Santa o padre Primo Mazzolari sobre “Nosso irmão Judas”. “Deixem, dizia aos poucos paroquianos que tinha diante, que eu pense por um momento no Judas que tenho dentro de mim, no Judas que talvez vocês também tenham dentro”.

É possível trair Jesus também por outros tipos de recompensa que não sejam as trinta moedas de prata. Trai a Cristo quem trai a própria esposa ou o próprio marido. Trai a Jesus o ministro de Deus infiel ao seu estado, ou que, em vez de apascentar o rebanho apascenta a si mesmo. Trai a Jesus quem trai a própria consciência. Posso traí-lo até mesmo eu, neste momento – e isso me faz tremer – se enquanto prego sobre Judas me preocupo pela aprovação do auditório mais do que de participar da imensa pena do Salvador. Judas tinha um atenuante que nós não temos. Ele não sabia quem era Jesus, considerava-o somente “um homem justo”; não sabia que era o Filho de Deus, nós sim. Como a cada ano, na iminência da Páscoa, quis reescutar a “Paixão segundo S. Mateus” de Bach. Há um detalhe que cada vez me faz estremecer. No anúncio da traição de Judas, ali, todos os apóstolos perguntam a Jesus: “Porventura sou eu, Senhor?” Herr, bin ich’s?”. Antes, porém, de fazer-nos ouvir a resposta de Cristo, anulando toda distância entre o evento e a sua comemoração, o compositor insere um coro que começa assim: “Sou eu, sou eu o traidor! Eu tenho que fazer penitência!”, “Ich bin’s, ich sollte büßen”. Como todos os coros daquela obra, esse expressa os sentimentos do povo que escuta; é um convite também a nós, de fazermos a nossa confissão de pecado.

O Evangelho descreve o fim horrível de Judas: “Judas, que o havia traído, vendo que Jesus tinha sido condenado, se arrependeu, e devolveu as trinta moedas de prata aos chefes dos sacerdotes e aos anciãos, dizendo: pequei, entregando-vos sangue inocente. Mas eles disseram: O que nos importa? O problema é seu. E ele, jogando as moedas no templo, partiu e foi enforcar-se” ( Mt 27 , 3-5). Mas não julguemos apressadamente. Jesus nunca abandonou a Judas e ninguém sabe onde ele caiu quando se jogou da árvore com a corda no pescoço: se nas mãos de Satanás ou naquelas de Deus. Quem pode dizer o que aconteceu na sua alma naqueles últimos instantes? “Amigo”, foi a última palavra que Jesus lhe disse no horto e ele não podia tê-la esquecido, como não podia ter esquecido o seu olhar.

É verdade que, falando ao Pai dos seus discípulos, Jesus tinha falado de Judas: “Nenhum deles se perdeu, exceto o filho da perdição” (Jo 17, 12), mas aqui, como em tantos outros casos, ele fala na perspectiva do tempo, não da eternidade. Mesmo a outra palavra terrível referida a Judas: “Seria melhor para esse homem nunca ter nascido” (Mc 14, 21 ) é explicada pela enormidade do fato, sem a necessidade de se pensar em um erro eterno. O destino eterno da criatura é um segredo inviolável de Deus. A Igreja nos garante que um homem ou uma mulher proclamados santos estão na bem-aventurança eterna; mas de ninguém a Igreja sabe com certeza que esteja no inferno.

Dante Alighieri, que, na sua Divina Comédia, coloca Judas nas profundezas do inferno, fala da conversão, no último momento, de Manfred, filho de Federico II e rei da Sicília, que todos na sua época acreditavam que tinha sido condenado excomungado. Mortalmente ferido em batalha, ele confia ao poeta que, no último momento da vida, se arrependeu chorando àquele “que voluntariamente perdoa” e que do Purgatório envia para a terra esta mensagem que vale também para nós:

Terríveis foram os meus pecados, mas a bondade infinita com seus grandes braços sempre acolhe aquele que se arrepende[4].

É a isso que deve levar-nos a história do nosso irmão Judas: a render-nos àquele que voluntariamente perdoa, a jogar-nos também nós, nos grandes braços do crucifixo. A coisa mais importante na história de Judas não é a sua traição, mas a resposta que Jesus dá a ela. Ele sabia bem o que estava amadurecendo no coração do seu discípulo; mas não o expôs, quis dar-lhe a chance até o último momento de voltar atrás, quase o protege. Sabe por que veio, mas não rejeita, no horto das oliveiras, o seu beijo gélido e até o chama de amigo (Mt 26, 50). Da mesma forma que procurou o rosto de Pedro depois de sua negação para dar-lhe o seu perdão, terá procurado também o de Judas em algum momento da sua via crucis! Quando da cruz reza: “Pais, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem” (Lc 23 , 34), não exclui certamente deles a Judas.

Então, o que faremos, portanto, nós? Quem seguiremos, Judas ou Pedro? Pedro teve remorso pelo que ele tinha feito, mas também Judas teve remorso, tanto que gritou: “Eu traí sangue inocente!”, e devolveu as trinta moedas de prata. Onde está, então, a diferença? Em apenas uma coisa: Pedro teve confiança na misericórdia de Cristo, Judas não! O maior pecado de Judas não foi ter traído Jesus, mas ter duvidado da sua misericórdia.

Se nós o imitamos, quem mais quem menos, na traição, não o imitemos nesta sua falta de confiança no perdão. Existe um sacramento no qual é possível fazer uma experiência segura da misericórdia de Cristo: o sacramento da reconciliação. Como é belo este sacramento! É doce experimentar Jesus como mestre, como Senhor, mas ainda mais doce experimentá-lo como Redentor: como aquele que te tira para fora do abismo, como Pedro do mar, que te toca, como fez com o leproso, e te diz: “Eu quero, seja curado!” (Mt 8, 3).

A confissão nos permite experimentar em nós o que a Igreja diz sobre o pecado de Adão no Exultet pascal: “Ó feliz culpa que mereceu tal Redentor!” Jesus sabe fazer de todas as culpas humanas, uma vez que nos tenhamos arrependido, “felizes culpas”, culpas que não são mais lembradas a não ser pela experiência da misericórdia e pela ternura divina da qual foram ocasião!

Tenho um desejo para mim e para todos vós, Veneráveis Padres, irmãos e irmãs: que na manhã da Páscoa possamos acordar e sentir ressoar no nosso coração as palavras de um grande convertido do nosso tempo, o poeta e dramaturgo Paul Claudel:

“Deus meu, ressuscitei e ainda estou com você! Dormia e estava deitado como um morto na noite. Deus disse: “Seja feita a luz” e eu despertei como se dá um grito! […] Meu Pai, que me gerou antes da aurora, coloco-me na tua presença. O meu coração está livre e a minha boca está limpa, o corpo e o espírito estão de jejum. Sou absolvido de todos os meus pecados que confessei um por um. O anel das núpcias está no meu dedo e o meu rosto está limpo. Sou como um ser inocente na graça que tu me concedestes[5].

Isso é o que nos pode fazer a Páscoa de Cristo.

  • [1] W. Shakespeare, Timão de Atenas, ato IV, sc. 3.
  • [2] Virgílio, Eneida, 3. 56-57
  • [3] Cf. S. Francisco, Carta a todos os fieis 12 (Fontes Franciscanas, 205).
  • [4] Purgatório, III, 118-123.
  • [5] P. Claudel, Prière pour le Dimanche matin, in Œuvres poétiques, Gallimard, Paris, 1967, p. 377.

Queridos irmãs e irmãos,
Olhem para o sacrário, está aberto, está vazio. Olhem para o altar, não tem toalha, não há banquete hoje. Procurem a cruz, não está, desapareceu. Não há um único sinal cristão, tipicamente cristão. Nós estamos aqui como se estivéssemos entre escombros, como se estivéssemos num lugar vazio, como não houvesse um único sinal no mundo que nos falasse de Jesus, que nos falasse do Cristianismo, da nossa fé. Hoje é o dia da redução, às vezes nós vivemos a nossa fé com demasiadas coisas, agarramo-nos a isto, àquilo, temos tantas belezas e tantos símbolos que nos falam.

Hoje é o dia da nudez, hoje é o dia em que olhamos para as mãos vazias e não temos nada, vale tanto estar aqui como noutro sítio qualquer, nada nos distingue das outras mulheres e dos outros homens da terra. Nenhum sinal nós ostentamos senão as nossas mãos vazias. Hoje a liturgia começou com os presbíteros caídos por terra, em total silêncio. Essa é a nossa forma de oração neste dia, este dia e o dia de amanhã são os dias do ano em que não há Eucaristia, em que as Igrejas estão assim, como lugares vazios, como terra desolada. Essa é a lição da cruz.

Ontem nós agarrávamo-nos à pergunta que Jesus fez aos discípulos e faz a cada um de nós: “Compreendeis o que vos fiz?” Hoje esse exercício hermenêutico, esse tatear o enigma deste silêncio em que estamos mergulhados continua. Teremos nós compreendido o que Jesus nos fez? As duas últimas palavras de Jesus na narração do Evangelho de João que hoje nós lemos, a primeira “Tenho sede”, a segunda “Tudo está consumado”, parecem duas afirmações que se anulam. Porque “Tenho sede” quer dizer que está incompleto, quer dizer que falta alguma coisa, quer dizer que há o desejo ardente de vida. “Tudo está consumado” quer dizer que se chegou à plenitude, que o destino, que o desígnio se realizou. E a nossa vida habita como um hífen, como um intervalo estas duas frases de Jesus, que para nós são luz para o caminho que nós fazemos. Temos de descobrir que a nossa vida é uma vida que se deve consumar, que se deve realizar.

Já este ano desapareceu um grande sociólogo polaco, Zygmunt Bauman. Ele dizia muito na crítica da modernidade que ele faz que nós como sociedades sabemos muito bem o que é o consumir porque vivemos a consumir – a consumir recursos, a consumir bens, a consumir a nossa própria vida. Sabemos conjugar o verbo consumir e muitas vezes parece que não sabemos outra coisa. Porque, diz ele, “Desaprendemos, desistimos de conjugar o verbo «consumar»”, que é diferente de consumir. “Consumar” é realizar, é levar até ao fim, é concretizar da forma mais plena, é não guardar nada, é ir até onde se tem de ir.

“Tudo está consumado”, e nós vivemos uma vida onde tantas vezes dizemos: “Tudo está consumido”, mas não sabemos o que é estar consumado. Jesus é o Mestre para as nossas vidas, é o Mestre que nos ensina a realizar aquilo que somos, a realizar a nossa humanidade como um projeto que se cumpre, não como uma promessa que fica por realizar. Jesus ensina-nos a ir até ao lugar extremo, a esse lugar que nos deixa no vazio, no silêncio, sem nada como hoje nós estamos. Sem absolutamente nada, não temos nenhum símbolo. Nenhum símbolo mas sentimos que tudo está consumado. Agarremos nisto, agarremos nisto como caminho, como lição que Jesus nos dá. Às vezes ainda estamos agarrados a isto, àquilo, às vezes ainda nos perdemos no labirinto de tantas necessidades verdadeiras e falsas que são o sorvedouro da nossa vida, do nosso amor, do nosso desejo e a vida não se consuma, a vida não se oferece até ao fim. O que a cruz nos grita, o que a cruz nos diz é: ama até ao fim, ama até ao fim, consuma a tua vida, consuma, realiza, plenifica a tua existência. Não vivas a 50%, a 40%.

A Sophia de Mello Breyner dizia: “Meia verdade é como comer meio pão, é como receber meio salário, é como habitar meia casa.” Às vezes nós vivemos de meias verdades e não vivemos essa verdade total, essa verdade plena que é a lição do Crucificado para nós. Ele diz: “Tenho sede.” Porque Ele continua a ter sede, a ter sede daquilo que cada um de nós hoje pode realizar. Agora é a nossa vez, agora é o nosso lugar, agora é o nosso caminho.

No século XX, desenvolveu-se uma teologia muito ligada aos campos de concentração e às perseguições nazis, a teologia do Deus fraco que nós encontramos em vozes como de Dietrich Bonhoeffer, ou encontramos na mística de Etty Hillesum. Deus é fraco, Deus é frágil, Deus é vulnerável, Deus não nos pode salvar. O Deus que nós vemos levantado na cruz é um Deus fraco, um Deus fraco. E é um escândalo a fraqueza de Deus, é um escândalo. Porque nós estamos sempre à espera que seja Ele que resolva, estamos sempre à espera que seja Ele que deicida, estamos sempre à espera que seja Ele a fazer o que nós não conseguimos, ou o que nós não queremos, atiramos para Ele e Deus não pode fazer nada. Deus não pode, Deus não responde, Deus é o próprio silêncio de Deus, é este o enigma desta Sexta-feira Santa. Como olhar para este Deus pobre, para este Deus que não pode salvar?

Etty Hillesum abre-nos um caminho, ela diz: “Eu compreendi que tenho de ajudar Deus.” A fraqueza de Deus pode nos pôr a milhas. Podemos achar que esta palavra é uma palavra horrível e tapamos os ouvidos. Não podemos acreditar num Deus que seja fraco, nós queremos acreditar num Deus forte, no senhor dos exércitos, no Deus que tem a última palavra. Não é esse Deus que hoje nós estamos a celebrar com este vazio, com esta nudez. Não é esse Deus que nos vai ser mostrado daqui a pouco como um espetáculo, como um espetáculo desconcertante aos nossos olhos. Vamos descobrir Deus que está tapado e o que vamos ver é um homem crucificado. Isto é um escândalo!

Nós estamos habituados desde pequenos a olhar para a cruz, mas alguém que olhe pela primeira vez a cruz sente um desfalecimento. Então era isso? Então vamos destapar Deus? Era melhor tapá-Lo de novo. Para mostrar um Deus fraco? Não quero! E tantas vezes é isso que nós dizemos, e olhamos para a cruz sem ver a cruz, sem olhar para aquilo que está lá escrito, escancarado, documentado na cruz que é a vulnerabilidade de Deus.

S. Paulo dizia que isto é uma loucura, é um escândalo, que isto não se entende. E, de facto, não é do domínio do inteligível, é o paradoxo da fé cristã. Nós vamos adorar hoje a cruz, vamos inclinar sobre ela a nossa fronte, vamos receber o seu perfume na nossa vida. Mas, receber e adorar a cruz é compromete-se a ajudar o Deus fraco. Porque, na nossa vulnerabilidade, na nossa fragilidade nós podemos fazer muito, podemos fazer tudo por Deus, podemo-nos colocar ao Seu serviço. Uma mulher como Etty Hillesum no campo de concentração, um homem como Dietrich Bonhoeffer numa cela da prisão nazi, eles foram vozes de Deus em momentos completamente obscuros do século XX. E hoje, os justos que sustentam o mundo continuam essa tarefa de ajudar Deus sentindo-se cúmplices com a impotência de Deus, minorando-a, transformando-a em lugar onde Deus abraça as nossas feridas. Como, em Cristo, como se leu hoje na Carta aos Hebreus, nós temos um Sumo-Sacerdote capaz de se compadecer dos nossos sofrimentos, porque Ele próprio carregou a nossa culpa, carregou a nossa iniquidade. Ninguém se sinta só, ninguém se sinta só.

Muitas vezes até nos infernos que escolhemos percorrer é importante sentir que Ele está lá. Uma das frases mais extraordinárias aplicadas a Jesus pela Igreja primitiva e que nós encontramos no Evangelho é dizer: “Ele foi contado entre os malfeitores.” Ele foi contado, éramos um grupo de malfeitores e Ele foi contado entre nós, éramos um grupo de maldizentes e ele foi contado entre nós, éramos um grupo de miseráveis e Ele foi contado entre nós, éramos um grupo de condenados e Ele foi contado entre nós. Ele está sempre a ser contado entre nós porque é solidário com a fragilidade, com a vulnerabilidade humana. Esta solidariedade de Cristo ajuda-nos a ser, é a âncora, é a mão estendida à nossa humanidade mas é também um desafio a nós ajudarmos Deus.

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