Quinta-feira Santa
SANTA MISSA “IN COENA DOMINI”
João 13,1-15
Referências bíblicas:
1ª leitura: Ex 12,1-8.11-1
Salmo: Sl 115
2ª leitura: 1Cor 11,23-26
Evangelho: Jo 1,1-15
Quinta-Feira Santa: A Última Ceia
Marcel Domergue
O ato de “entregar”
Jesus não fica à espera de que os homens venham privá-lo do que é seu: da sua liberdade, da sua honra, da sua integridade física e, por fim, da sua vida. Surpreendendo a todos, ele entrega antecipadamente o que lhe vão tirar. Judas sairá à noite para entregá-lo. Mas, antes que o faça, Jesus se entrega a si próprio: “Tomai e comei! Isto é meu corpo. Tomai e bebei! Isto é meu sangue”. E age da mesma forma para com todos os protagonistas de sua Paixão: os sumos sacerdotes irão entregá-lo a Pilatos para que o crucifique. Pilatos o entrega de volta, para que o crucifiquem. E, finalmente, o entregarão à morte. O verbo “entregar” é utilizado por todos os evangelistas (por Mateus, sobretudo) em relação a todos os que, no relato, tomam alguma decisão, sem saber, contudo, que estão cumprindo ou consumando as Escrituras e que Jesus se antecipou a todos eles na Última Ceia: “ninguém me tira a vida, pois sou eu quem a dou” (Jo 10,18). A última Ceia fornece, assim, a chave de toda a paixão e ficamos cientes de que a vida, uma vez dada, transforma-se em alimento do ser humano. E até mesmo que, segundo S. Irineu, o pão comum, provindo da criação, já era o corpo de Cristo. Deus já se entregava a nós no pão de nossas mesas.
Senhor que serve
A insistência de Paulo no “fazei isto em memória de mim” poderia levar-nos a uma excessiva ritualização da vida cristã: bastaria, para sermos fiéis a Cristo, refazer os gestos da última Ceia, repetir as palavras pronunciadas por Jesus. É uma prática, de certo, salutar, por permitir-nos atualizar o evento, tornando-nos contemporâneos dele. Hoje, como sempre, temos necessidade de receber a vida que Deus nos concede. Refazer, no entanto, o que fez Cristo não consiste primeiramente em copiar seus gestos, mas em reproduzir em nós “as atitudes que foram as de Cristo Jesus” (Fl 2,5) o qual “deu sua vida por nós para que, também nós, demos a vida por nossos irmãos” (1Jo 3,16). A verdadeira forma de “fazer memória” de Cristo é, portanto, amar. Eis porque, no evangelho segundo S. João, onde esperaríamos encontrar os gestos e as palavras pronunciadas sobre o pão e o vinho, vemos Jesus de joelhos ante os discípulos, a lavar-lhes os pés. Este gesto simbólico tem o mesmo significado do dom do pão e do vinho: se Deus, a quem chamamos Mestre e Senhor, se faz nosso servo, com maior razão, devemos pôr-nos, também nós, a serviço dos nossos irmãos.
Tudo ao contrário!
Tudo isso, é claro, significa a Paixão que, a seguir, acontecerá e que, de fato, já começou. Assistimos aqui à reversão de todas as nossas habituais categorias, de todas as nossas maneiras usuais de pensar. Salientamos acima que a onipotência se transformava em fraqueza. Vemos, agora, o Senhor que se faz servo. Tudo se passa ao contrário. O justo ocupa o lugar do injusto, do culpado, e o juiz substitui o condenado. Até mesmo as realidades naturais são subvertidas: o pão e o vinho, frutos da criação, tornam-se presença e vida do Criador. E, finalmente, como derradeira e grandiosa mutação, a morte se transforma em vida. De fato, a vida, quando a entregamos em prol dos outros, nós não a perdemos. Bem ao contrário, nós a engrandecemos. Já o dissera Jesus: “Quem perder a sua vida, salva-la-á”. O grão de trigo tem de apodrecer na terra, perder a sua condição de grão, para dar fruto. Um fruto que lhe confere a imortalidade! Jesus nos dá a senha de como refazer o que Ele fez: “Também vós deveis lavar-vos os pés uns aos outros”. Evitemos, também quanto a isto, neutralizar o significado do gesto e das palavras de Cristo, limitando-nos à celebração de um rito, tornado estéril, se não for símbolo das ações do nosso dia. Vivamos não apenas ritual, mas efetivamente, uma Aliança realmente nova!
O ELOGIO DA MESA
José Tolentino Mendonça
Queridos irmãs e irmãos,
No centro da nossa liturgia está a mesa. Esta Quinta-Feira Santa nós podemos entendê-la como um elogio da mesa, daquilo que a mesa significa. Na nossa vida, a mesa acompanha-nos sempre. É daquelas peças de mobília da nossa casa que podem variar mas estão sempre presente, e têm um papel fundamental.
A mesa que é o altar não tem uma função decorativa. É uma mesa verdadeira. O altar é uma mesa verdadeira. É o símbolo, é a imagem, de todas as mesas que construíram a nossa vida e ao mesmo tempo é a mesa do futuro que se abre para nós. Porque, esta mesa ensina-nos a arte de construir comensalidade, de construir relação, de construir vida partilhada. Por isso, nós sentimos que esta pobre mesa onde a cada domingo nós nos juntamos é a medida da nossa vida, é o propulsor daquilo que nós somos.
Façamos o elogio da mesa. Esta mesa que é a continuação natural da nossa própria vida. Porque, não há mesa sem dádiva. Não há mesa que se abre sem coração que se dá, sem vida suada, oferecida, entregue, transmitida aos outros. Façamos o elogio da mesa. A mesa que começa por ser a imagem da vida, daquela nutrição essencial que reflete o cuidado pela própria vida. A nossa primeira mesa foram os braços da nossa mãe, foram o corpo da nossa mãe – foram a nossa primeira mesa. Ou foi o colo do nosso pai. Foram a nossa primeira mesa. Aí nesses dias e noites, nós começamos esta aventura maravilhosa e há mulheres e homens que são mesa uns para os outros. A mesa não é só uma mesa física. A mesa é isto: a mesa é o cuidado fundamental da existência. E não é por acaso que àqueles dois foi confiada a coisa mais sagrada que é nutrir, garantir o pão e garantir a sede daquelas criaturas que eles geraram. É a missão sagrada de ser mesa, de embalar na vida. Por isso, a mesa há-de ser sempre o lugar onde se expressa o cuidado mais recôndito, mais essencial pela vida.
Na mesa, nós nem nos damos conta, mas na mesa joga-se a vida ou a morte, joga-se o sim ou o não, joga-se aquilo que somos ou a destruição de nós mesmos. Na nossa mesa e nesta mesa. Por isso, a mesa é um lugar de afirmação da vida fundamental. Façamos o elogio da mesa, dessas mesas que são a expressão do quotidiano. Acontece tantas vezes que depois nós perdemos a conta, perdemos o número. Quantas vezes nos sentamos à nossa mesa? Refeições banais, a correr, apressadas, coisas que não nos ficam na memória mas que depois, no conjunto, tornam-se a nossa biografia, tornam-se a seiva que nos alimenta. Porque nós somos feitos de vida comum, de vida ordinária, mas somos feitos dessa fidelidade permanente, repetida, mantida. Às vezes com que esforço, mas somos fruto dessa fidelidade àquilo que a mesa significa. A mesa que nos dá a ver o quotidiano e também o extraordinário.
Quando há uma festa nós abrimos a mesa. E a mesa, no seu brilho, na sua excedência, no seu ouro torna-se um lugar onde nós experimentamos o sabor que é ainda maior que o sabor habitual. Nós celebramos a vida. Sentimos não apenas a necessidade do corpo mas também sentimos o desejo da alma. E por isso, a mesa é também o lugar da festa. Porque a mesa não alimenta apenas o nosso corpo. Alimenta também a busca de sentido, a busca de verdade, a busca de beleza que cada um de nós é chamado a fazer.
Façamos o elogio da mesa. Eu tenho uma amiga que vive sozinha, ela disse-me um dia: “Eu como todos os dias na cozinha. E na cozinha só tenho uma cadeira na minha mesa pois sei que como sempre sozinha, mas não há vez nenhuma que eu me sente à mesa e não diga isto: «a mesa é comunidade.»” E diz ela: “Isso ajuda-me.” Eu próprio, os padres seculares que muitas vezes vivem sós, e se calhar muitos de nós que estamos aqui, também todos os dias comemos muitas vezes sozinhos. Mesmo quem tem uma família grande lhe acontece tomar uma refeição sozinho, ou em determinados momentos da nossa vida. Mas, é importante dizer no nosso coração: “A mesa é comunidade.” E que isso nos faça sentir que nós não estamos sós, sentir que a mesa nos conta uma história. Conta a história de todos os artesãos invisíveis que conspiram para que o milagre da nossa vida seja possível, e que ela se expanda, e liga-nos à fome e a sede de todas as mulheres e de todos os homens da terra. E liga-nos ao esforço, ao sentido da festa, liga-nos àquilo que cada um está a viver neste mundo vasto e largo de Deus. Rostos que nós nunca veremos mas que, na expressão da mesa, estão ali reunidos, estão ali presentes. A mesa é comunhão, a mesa é comunidade.
Não foi por acaso que Cristo na Última Ceia quis fazer o elogio da mesa. E a Eucaristia é o elogio da mesa. Porque no centro da Eucaristia está a Palavra que nós comemos, a primeira mesa. E depois está a mesa do pão, a mesa do vinho que se torna vida, porque é na mesa que nós compreendemos aquilo que Jesus nos fez, aquilo que Jesus pede a cada um de nós. Na mesa nós lavamos os pés uns aos outros, às vezes lavamos o rabo uns aos outros, cuidamos uns dos outros até ao extremo, até onde for preciso. Não temos de escolher, a vida não é de escolhas, a vida é o que é. À volta da mesa nós às vezes queríamos não ter isto, não ter aquilo. Não, é o que temos. E temos de abraçar a mesa, abraçar a mesa. Porque na sua vulnerabilidade, na sua fragilidade, a mesa é o lugar do abraço à nossa humanidade.
Jesus faz o elogio da mesa e Ele não tem dúvidas. O que é que é uma mesa? A mesa é a extensão do corpo. Como a nossa primeira mesa foi o corpo dos nossos pais, o colo da nossa mãe. O que é hoje uma mesa verdadeira? Uma mesa verdadeira não é uma mesa, é mais do que uma mesa, é a fraternidade que somos capazes de construir uns com os outros, é aquilo que colocamos lá. Mas é tudo o que nos levou a colocar aquilo na mesa e tudo aquilo que gostaríamos de colocar e muitas vezes fica por dizer, fica por nomear. Mas a mesa é o lugar onde podemos tocar mais profundamente a vida uns dos outros, nesse gesto arcaico, selvagem e sagrado que é comer. Que é colocar uma coisa que está fora dentro do nosso corpo e ela transforma-se no nosso corpo. É uma coisa primitiva, mas ao mesmo tempo é o gesto mais radical de uma hospitalidade mais radical. E não é por acaso que Jesus identifica a hospitalidade do ato de comer, e do ato de comer em companhia à hospitalidade de Deus, à hospitalidade que Deus nos oferece. Porque é assim: Deus torna-nos seus, Deus dá-Se-nos, Deus oferece-Se como alimento para que nós O comamos e para que a nossa vida se torne uma vida transformante e transformada por essa presença divina; que, na mesa, de uma forma sacramental nós podemos tocar, nós podemos beber.
Façamos, queridos irmãos, o elogio da mesa e que nas nossas vidas nós percebamos que a Eucaristia não é simplesmente um ritual estanque que fica aqui. Esta mesa é um porto, esta mesa é um ponto de partida. Desta mesa nós partimos para as nossas mesas, esta mesa é uma multiplicadora de mesas, é uma reconciliadora de mesas, é uma inventora de mesas. Cada um de nós tem de ser a mulher mesa, o homem mesa que é capaz de dizer: “Olha, estou aqui ao serviço. Ofereço-me, dou um passo em frente, estou contigo. Se posso ajudar, se posso solidariamente estar a teu lado, estou aqui.” Isso é perceber a lição fundamental de Jesus.
É claro, esta mesa, nós só percebemos iluminada pela cruz. Porque não há mulheres mesa nem homens mesa que não aceitem viver essa forma radical de amor que nós lemos hoje no Evangelho de S. João como introdução ao Tríduo Pascal. “Antes da festa, sabendo Jesus que chegara à Sua hora, Ele que amara os Seus que estavam no mundo, amou-os até ao fim.” Até onde nós estamos dispostos a levar o nosso amor? Até onde nós estamos dispostos a levar a nossa dádiva?
O que nós vamos viver neste Tríduo Pascal é seguirmos Jesus. Como as mulheres e os homens, os discípulos seguiram Jesus. Um bocado desalentados, acabrunhados, desorientados, sem saber bem, amedrontados mas seguindo Jesus como puderam. Sigamos Jesus como pudermos, sigamos. Mas, coloquemos o olhar, vejamos o que Ele faz. Porque, como Ele diz no Evangelho: “Eu deixei-vos um exemplo. Eu deixei-vos um exemplo.” Queridos irmãos, nós vamos continuar a nossa celebração. Hoje é um dia de festa, porque à volta desta mesa nós sabemos o que é a comunidade, nós sabemos que não estamos sós. E sabemos que Ele é para nós o alimento que nos ajuda a ser alimento, para os outros.
Ainda a semana passada, passei no Colégio Moderno, fui lá falar a um grupo grande de jovens, mais de 200, miúdos do décimo primeiro, décimo segundo. Uma grande conversa sobre o mundo, a sociedade, a Igreja. E no final, uma miúda veio ter comigo, com aquela timidez bonita da puberdade e disse-me: “E o que é a vocação? Pode falar-me um pouco da vocação?” E eu disse-lhe: “Olha, a vocação é aquele lugar onde tu vais sentir que a vida é mais feliz, essa é a tua vocação.” E ela disse: “Eu quero ser feliz. Eu quero muito ser feliz.” E eu disse: “Se eu te posso dar um conselho, à luz daquilo que Jesus nos ensina é este: se queres mesmo, mesmo, mesmo ser feliz torna feliz o maior número de pessoas à tua volta. Porque, a felicidade dos outros vai-te contagiar para a felicidade que tu buscas, que tu anseias e que tu mereces.”
Esta é a história da mesa, estão a ver? Nós estamos sempre à volta de uma mesa.
Pe. José Tolentino Mendonça, Quinta-feira Santa – Missa da Ceia do Senhor
http://www.capeladorato.org
SANTA MISSA “IN COENA DOMINI” (2008)
HOMILIA DO PAPA BENTO XVI
Queridos irmãos e irmãs!
São João começa a sua narração sobre como Jesus lavou os pés aos seus discípulos com uma linguagem particularmente solene, quase litúrgica: “Antes da festa da Páscoa, sabendo Jesus que chegara a sua hora de passar deste mundo para o Pai, Ele que amara os seus que estavam no mundo, levou até ao extremo o Seu amor por eles” (13, 1). Chegou a “hora” de Jesus, para a qual a sua obra estava orientada desde o início. O que constitui o conteúdo desta hora, João descreve-o com duas palavras: passagem (metabainein, metabasis) e agape amor. As duas palavras explicam-se reciprocamente; ambas descrevem a Páscoa de Jesus: cruz e ressurreição, crucifixão como elevação, como “passagem” para a glória de Deus, como um “passar” do mundo para o Pai. Não é como se Jesus, depois de uma breve visita ao mundo, agora simplesmente partisse de novo e voltasse para o Pai. A passagem é uma transformação. Ele leva consigo a sua carne, o seu ser humano. Na Cruz, ao entregar-se a si mesmo, Ele é como que fundido e transformado numa nova maneira de ser, na qual agora está sempre com o Pai e contemporaneamente com os homens.
Transforma a Cruz, o acto da morte, num acto de doação, de amor até ao fim. Com esta expressão “até ao fim” João remete antecipadamente para a última palavra de Jesus na Cruz: tudo foi levado até ao fim, “tudo está consumado” (19, 30). Mediante o seu amor a Cruz torna-se metabasis, transformação do ser homem no ser partícipe da glória de Deus. Nesta transformação Ele envolve todos nós, arrebatando-nos para dentro da força transformadora do seu amor a ponto de, no nosso ser com Ele, a nossa vida se tornar “passagem”, transformação. Assim recebemos a redenção ser partícipes do amor eterno, uma condição para a qual tendemos com toda a nossa existência.
Este processo essencial da hora de Jesus é representado no lava-pés numa espécie de profético acto simbólico. Nele Jesus evidencia como um gesto concreto precisamente o que o grande hino cristológico da Carta aos Filipenses descreve como o conteúdo do mistério de Cristo. Jesus depõe as vestes da sua glória, entreita-nos com o “manto” da humanidade e faz-se servo. Lava os pés sujos dos discípulos e torna-os assim capazes de aceder ao banquete divino para o qual Ele os convida. As purificações cultuais e exteriores, que purificam o homem ritualmente, deixando-o contudo tal como ele é, são substituídas pelo banho novo: Ele torna-nos puros mediante a sua palavra e o seu amor, mediante o dom de si mesmo. “Vós já estais limpos, devido à palavra que vos tenho dirigido”, dirá aos discípulos no sermão sobre a videira (Jo 15, 3). Lava-nos sempre de novo com a sua palavra. Sim, se acolhemos as palavras de Jesus em atitude de meditação, de oração e de fé, elas desenvolvem em nós a sua força purificadora. Dia após dia somos como que cobertos de várias formas de sujidade, de palavras vazias, de preconceitos, de sabedoria limitada e alterada; uma múltipla semifalsidade ou falsidade aberta infiltra-se continuamente no nosso íntimo.
Tudo isto ofusca e contamina a nossa alma, ameaça-nos com a incapacidade para a verdade e para o bem. Se acolhermos as palavras de Jesus com o coração atento, elas revelam-se verdadeiras lavagens, purificações da alma, do homem interior. É para isto que nos convida o Evangelho do lava-pés: deixarmo-nos sempre de novo lavar com esta água pura, deixar-nos tornar capazes da comunhão convivial com Deus e com os irmãos. Mas do lado de Jesus, depois do golpe da lança do soldado, saiu não só água, mas também sangue (Jo 19, 34; cf. 1 Jo 5, 6.8). Jesus não apenas nos falou, não nos deixou só palavras. Ele ofereceu-Se a Si mesmo. Lava-nos com o poder sagrado do seu sangue, isto é, com o seu doar-se “até ao extremo”, até à Cruz. A sua palavra é mais que um simples falar; é carne e sangue “pela vida do mundo” (Jo 6, 51). Nos sagrados Sacramentos, o Senhor ajoelha-se sempre de novo diante dos nossos pés e purifica-nos. Rezemos-Lhe para que do banho sagrado do seu amor sejamos cada vez mais profundamente penetrados e assim deveras purificados!
Se ouvirmos o Evangelho com atenção, podemos aperceber-nos de dois aspectos diversos no acontecimento do lava-pés. O lava-pés que Jesus doa aos seus discípulos é antes de tudo simplesmente acção sua o dom da pureza, da “capacidade para Deus” que lhes ofereceu. Mas depois o dom torna-se um modelo, a tarefa de fazer a mesma coisa uns pelos outros. Os Padres qualificaram esta duplicidade de aspectos do lava-pés com as palavras sacramentum e exemplum. Sacramentum significa neste contexto não um dos sete sacramentos, mas o mistério de Cristo no seu conjunto, da encarnação até à cruz e à ressurreição: este conjunto torna-se a força restabelecedora, a força transformadora para os homens, torna-se a nossa metabasis, a nossa transformação numa forma nova de ser, na abertura para Deus e na comunhão com Ele. Mas este novo ser que Ele, sem merecimentos nossos, simplesmente nos doa deve depois transformar-se em nós na dinâmica de uma nova vida. O conjunto de dom e exemplo, que encontramos na perícope do lava-pés, é característico para a natureza do cristianismo em geral. O cristianismo não é uma espécie de moralismo, um simples sistema ético. No começo não estão as nossas acções, a nossa capacidade moral. Cristianismo é antes de tudo dom: Deus doa-se a nós não dá algo, mas doa-se a si mesmo. E isto acontece não só no início, no momento da nossa conversão. Ele permanece continuamente Aquele que doa. Oferece-nos sempre de novo os seus dons. Precede-nos sempre. Por isso a acção principal do ser cristão é a Eucaristia: a gratidão por termos sido gratificados, a alegria pela vida nova que Ele nos dá.
Mas com isto não permanecemos destinatários passivos da bondade divina. Deus gratifica-nos como parceiros pessoais e vivos. O amor doado é a dinâmica do “amar juntos”, deseja ser em nós vida nova a partir de Deus. Assim compreendemos a palavra que, no final da narração do lava-pés, Jesus diz aos seus discípulos e a todos nós: “Um novo mandamento vos dou: que vos ameis uns aos outros; assim como Eu vos amei, também vós vos deveis amar uns aos outros” (Jo 13, 34). O “novo mandamento” não consiste numa norma nova e difícil, que até então não existia. O aspecto novo é o dom que nos introduz na mentalidade de Cristo. Se considerarmos isto, percebemos como com muita frequência estamos distantes com a nossa vida desta novidade do Novo Testamento; quanto pouco damos à humanidade o exemplo do amar em comunhão com o seu amor. Assim permanecemos-lhe devedores da prova de credibilidade da verdade cristã, que se demonstra no amor. Precisamente por isto desejamos muito mais rezar ao Senhor para que nos torne, através da sua purificação, maduros para o mandamento novo.
No Evangelho do lava-pés o diálogo de Jesus com Pedro apresenta ainda outro aspecto da prática de vida cristã, ao qual queremos por fim dirigir a nossa atenção. Num primeiro momento, Pedro não quisera que o Senhor lhe lavasse os pés: esta inversão da ordem, isto é, que o mestre Jesus lavasse os pés, que o senhor assumisse as funções do servo, contrastava totalmente com o seu temor reverencial para com Jesus, para com o seu conceito de relação entre mestre e discípulo. “Nunca me lavarás os pés”, diz a Jesus com a sua habitual veemência (Jo 13, 8). O seu conceito de Messias incluía uma imagem de majestade, de grandeza divina. Tinha que aprender sempre de novo que a grandeza de Deus é diversa da nossa ideia de grandeza; que ela consiste precisamente em descer, na humildade do serviço, na radicalidade do amor até ao total autodespojamento. E também nós devemos aprendê-lo sempre de novo, porque sistematicamente desejamos um Deus do sucesso e não da Paixão; porque não somos capazes de nos apercebermos que o Pastor vem como Cordeiro que se doa e assim nos conduz ao prado justo.
Quando o Senhor diz a Pedro que sem o lava-pés não teria podido ter parte alguma com Ele, Pedro imediatamente pede impetuoso que lhe sejam lavadas também as mãos e a cabeça. A isto segue-se a palavra misteriosa de Jesus: “Aquele que está lavado não necessita de lavar senão os pés” (Jo 13, 10). Jesus faz alusão a um banho que os discípulos já tinham feito; para participar no banquete agora só era necessário o lava-pés. Mas naturalmente esconde-se nisto um significado mais profundo. Ao que se faz alusão? Não sabemos com certeza. Contudo tenhamos presente que o lava-pés, segundo o sentido de todo o capítulo, não indica um único Sacramento específico, mas o sacramentum Christi no seu conjunto o seu serviço de salvação, a sua descida até à cruz, o seu amor até ao extremo, que purifica e nos torna capazes de Deus. Mas aqui, com a distinção entre banho e lava-pés, torna-se ainda perceptível uma alusão à vida na comunidade dos discípulos, à vida Igreja. Parece claro que o banho que nos purifica definitivamente e não deve ser repetido é o Baptismo o ser imerso na morte e ressurreição de Cristo, um facto que transforma profundamente a nossa vida, dando-nos como que uma nova identidade que permanece, se não a deitarmos fora como fez Judas. Mas também na permanência desta nova identidade, doada pelo Baptismo, para a comunhão convival com Jesus temos necessidade do “lava-pés”. De que se trata? Parece-me que a Primeira Carta de São João nos dê a chave para o compreender. Nela lê-se: “Se dissermos que não temos pecados, enganamo-nos a nós mesmos e não há verdade em nós. Se confessarmos os nossos pecados, Ele é fiel e justo para nos perdoar os pecados e purificar-nos de toda a iniquidade” (1, 8s.). Precisamos do “lava-pés”, de lavar os pecados de todos os dias, e para isto temos necessidade da confissão dos pecados, da qual fala São João nesta Carta. Devemos reconhecer que também na nossa nova identidade de baptizados pecamos. Precisamos da confissão do modo como ela ganhou forma no Sacramento da reconciliação. Nele o Senhor lava-nos sempre de novo os pés sujos e nós podemos sentar-nos à mesa com Ele.
Mas assim assume um novo significado também a palavra, com a qual o Senhor alarga o sacramentum fazendo dele o exemplum, um dom, um serviço pelo irmão: “Ora, se Eu vos lavei os pés, sendo Senhor e Mestre, também vós deveis lavar os pés uns aos outros” (Jo 13, 14). Devemos lavar-nos os pés uns aos outros no recíproco serviço quotidiano do amor. Mas devemos lavar-nos os pés também no sentido de que nos perdoamos sempre de novo uns aos outros. A ofensa que o Senhor nos perdoou é sempre infinitamente maior do que todas as ofensas que outros poderão ter em relação a nós (cf. Mt 18, 21-35). A isto nos exorta a Quinta-Feira Santa: a não deixar que o rancor para com o próximo se torne no fundo um envenenamento da alma. Exorta-nos a purificar continuamente a nossa memória, perdoando-nos reciprocamente de coração, lavando os pés uns dos outros, para assim podermos ir juntos ao banquete de Deus.
A Quinta-Feira Santa é um dia de gratidão e de alegria pelo grande dom do amor até ao extremo, que o Senhor nos fez. Neste momento rezemos ao Senhor para que gratidão e alegria se tornem em nós a força de amar juntos com o seu amor. Amém.
Basílica de São João de Latrão
Quinta-feira Santa, 20 de Março de 2008