Domingo de Ramos
e da Paixão do Senhor (C)
Lucas 22,14-23,56

Leituras do dia
- A entrada messiânica do Senhor em Jerusalém: Lucas 19,28-40.
- 1ª leitura: “Não desviei o rosto dos bofetões e cusparadas… Sei que não sairei humilhado” (Isaías 50,4-7)
- Salmo: Sl. 21(22) – R/ Meu Deus, meu Deus, por que me abandonastes?
- 2ª leitura: “Humilhou-se a si mesmo, por isto Deus o exaltou” (Filipenses 2,6-11)
- Evangelho: Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo (Lucas 23,1-49 – mais breve)
Queres segui-lo caminho à cruz ?
P. Raymond Gravel
A Paixão segundo São Lucas tem suas particularidades:
1. É uma paixão a ser meditada ao longo de nossas experiências humanas nas quais Cristo se junta a nós, como ocorreu com os discípulos de Emaús, nos quais ardia o coração, ao ser proclamada, interpretada e atualizada a Palavra. Eles o reconheceram ao partir o pão (Lc 24.30-31). Ao longo deste caminho doloroso que leva à cruz, encontramo-nos com Jesus mediante os personagens que Lucas nos apresenta:
- Estamos entre os apóstolos que discutem entre si acerca de quem dentre eles é o maior (Lc 22,24).
- Somos Pedro, cujo amor ao Senhor o faz dizer: “Estou pronto, Senhor a ir contigo até a prisão e mesmo até a morte” (Lc 22,33) mas que, na primeira ocasião, renegará o seu mestre: “Eu te declaro, Pedro, antes que o galo cante hoje, negarás, por três vezes, que me conheces” (Lc 22,34).
- Somos Judas, à frente de uma multidão de pessoas, querendo traí-lo (Lc 22,47).
- Somos Simão Cirineu, discípulo de todos os tempos, que caminha após Jesus, levando também ele a sua cruz (Lc 23,26).
- Somos as mulheres de Jerusalém que o lamentam (Lc 23,27).
- Somos um dos malfeitores crucificados com ele: “Senhor, lembra-te de mim, quando estiveres no teu reino” (Lc 23,42) e a quem Jesus responde: “Em verdade, hoje mesmo estará comigo no paraíso” (Lc 23,43).
2. A narração da Paixão segundo Lucas está repleta de delicadeza e de ternura do evangelista para com o Senhor Jesus. Lucas não narra certos detalhes mais cruéis: não relata a flagelação (estamos longe do filme de Mel Gibson). Judas não abraça Jesus, mas aproxima-se apenas para fazê-lo. Ao longo de todo o caminho da cruz, o Jesus de Lucas dá provas de sua paciência e perseverança. O mais difícil de sua Paixão acontece no Getsemani, quando, numa profunda angústia e agonia interior, ele é confrontado com angústias extremas: “Cheio de angústia, ele orava intensamente e o seu suor caía por terra como gotas de sangue” (Lc 22,44). Reconfortado por um anjo, como o profeta Elias (1Rs 19,5ss), Jesus já é o vencedor do que o aguarda.
Lucas suaviza também as situações e os acontecimentos: no jardim de Getsemani, diz que Jesus encontra os discípulos dormindo de tristeza (Lc 24,25). Acolhe Judas com delicadeza: “Judas, é por um beijo que entregas o Filho do homem?” (Lc 22,48). Converte o coração de Pedro com seu olhar de amor e de ternura (Lc 22,61). Fala às filhas de Jerusalém que lamentava a sua sorte (Lc 23,28-31). Perdoa os seus carrascos: “Pai, perdoa-os, porque não sabem o que fazem” (Lc 23, 34). Faz entrar no paraíso o ladrão crucificado com ele: “Em verdade eu te digo: hoje mesmo estarás comigo no paraíso” (Lc, 23,43).
O Jesus de Lucas é tão cheio de bondade e de misericórdia que converte os seus algozes e os que o condenam. Pilatos, por três vezes, o inocenta (Lc 23,4.14.22), as mulheres (23,27), o povo (Lc 23,48) o ladrão (Lc 23,42) e o centurião (Lc 23, 47) declaram-no justo. Na cruz, as suas palavras não são um grito de sofrimento, mas uma oração da tarde: “Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito” (Lc 23,46). Desse modo, Lucas nos convida a entrar com Jesus em sua Paixão, a reconhecer nossas fraquezas e, com Pedro, nossas fragilidades, a sentirmos sobre nós o olhar do Senhor, a levarmos, seguindo-o como Simão Cirineu, a sua cruz e a nos abandonarmos com ele nos braços do Pai.
Para terminar, no início do relato de sua Paixão, a Ceia (Lc 22,14-38) é, a uma vez, a refeição do adeus de Jesus e a inauguração da nova Aliança. E, no final do relato, após a morte de Jesus, Lucas nos diz que as mulheres, acompanhando José de Arimateia, preparam com afeto o sepultamento. Mas com todos os seus perfumes, elas querem conservá-lo morto. Entretanto, precisa, o evangelista: “Era o início da Preparação e já se aproximava o sábado” (Lc 23,54). Portanto, as luzes do sábado já brilhavam. Mais: estas luzes já anunciavam as luzes da Páscoa. Mas as mulheres não sabiam disso.
Tentação e perdão
Enzo Bianchi
Os Evangelhos nos entregam quatro relatos da paixão de Jesus, narrativas que concordam sobre o desenvolvimento dos fatos, mas também nos parecem diferentes entre si.
No relato de Lucas, proclamado este ano na liturgia, há episódios ausentes nos outros Evangelhos e são registrados detalhes eloquentes, que contribuem para nos apresentar um Christus patiens com características que o terceiro evangelista quer evidenciar para os leitores da sua obra.
Na celebração da ceia pascal, Jesus entrega aos Doze um ensinamento sobre o fato de ele ser “servo” em meio aos discípulos e profetiza uma grande tentação por parte de Satanás em relação à comunidade da qual está prestes a ser arrancado. Ao mesmo tempo, assegura a Simão uma oração por ele e pela sua fé vacilante, confiando-lhe a missão de confirmar os seus irmãos.
Na agonia do Getsêmani, Jesus é assaltado por uma forte angústia, até suar o sangue por aquela tensão-medo diante da morte. Porém, um anjo vem em sua ajuda, um mensageiro de Deus que aparece como um sinal da interpretação salvífica daquela paixão. Durante o processo junto ao procurador romano Pilatos, nada menos do que três vezes Jesus é declarado inocente e imediatamente depois se encontra com o tetrarca Herodes, diante do qual ele silencia absolutamente. As mulheres discípulas encontram Jesus no caminho para o Gólgota e recebem uma palavra dele.
Por fim, na cruz, com as suas últimas breves palavras, Jesus perdoa o malfeitor ao seu lado e entrega a sua respiração, o seu espírito, de volta nas mãos do Pai.
Podemos notar que quase um terço dos versículos do relato da paixão são redigidos por Lucas, enquanto os outros são tirados da sua fonte, Marcos. Não podendo comentar todo o relato lucano, escolhemos, portanto, evidenciar apenas os episódios próprios desse evangelista, de modo a compreender, através desse caminho, a rica diversidade dos relatos evangélicos, capazes de alimentar e aprofundar a nossa fé.
Para Lucas, a paixão é, acima de tudo, a hora da tentação que assalta Jesus, assalta os discípulos e, portanto, também a Igreja. Quando o menino Jesus foi apresentado ao templo para ser oferecido ao Senhor, o ancião Simeão, que aguardava a libertação messiânica, reconhecendo-o por revelação do Espírito Santo, proclamou: “Ele será um sinal de contradição para que sejam revelados os pensamentos de muitos corações” (Lc 2, 34-35). Agora, durante a paixão, Jesus aparece como sinal diante do qual ocorre a queda nas tentações ou a ressurreição, a salvação.
Para Lucas, a hora paixão é também “o tempo oportuno” (Lc 4, 13), em que o diabo voltaria a ele para tentá-lo. Ele não o havia vencido no deserto (cf. Lc 4, 1-12), mas agora ele retorna, colocando na boca dos perseguidores de Jesus as suas próprias palavras: “Se tu és o Cristo, salva-te a ti mesmo…”.
Acima de tudo, no Monte das Oliveiras, Jesus, justamente para não cair em tentação, reza, prostrando-se até de joelhos e pede: “Pai, se queres, afasta de mim este cálice; contudo, não seja feita a minha vontade, mas a tua!”. Eis a agonia, o combate que ocorre dentro de uma oração mais intensa. O medo da morte vivido por Jesus atesta inequivocamente a sua pertença em tudo à condição humana. Jesus não tem uma vontade diferente ou contrária à do Pai e até o fim procura apenas realizar essa vontade; mas, como homem igual a nós em tudo, exceto no pecado (cf. Hb 4, 15), ele sente angústia diante da morte, apesar de tê-la anunciado como resultado necessário da sua vida, em conformidade com o amor de Deus (cf. Lc 9, 22,43-45; 18, 31-34).
Se Jesus vence toda tentação, seus discípulos não conseguem fazer o mesmo e, entre eles, em particular, Pedro. Um dos Doze, Judas, trai Jesus a ponto de entregá-lo nas mãos dos seus adversários, os chefes dos sacerdotes do templo que haviam decretado a sua morte. Os outros discípulos, precisamente enquanto Jesus anuncia a traição por parte de um membro da sua comunidade, começam a discutir quem entre eles era o maior. E Pedro, quando lhe é anunciada a prova por parte de Satanás, o fato de terem passado pelo crivo como o trigo, de modo presunçoso, promete uma fidelidade a Jesus que, poucas horas depois, desmentirá, declarando que nunca o conheceu.
Essa é a queda na hora da tentação: os Doze não souberam rezar para entrar na tentação e sair vencedores dela, ao contrário de Jesus, que, precisamente nesse combate, precisamente naquela escuta da palavra do Pai e naquela invocação repetida, conseguiu ler (o anjo intérprete de Lc 22, 43!) o sentido daquela sua morte e, portanto, torná-la um ato preciso, uma doação nas mãos do Pai: “Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito!”, significativa citação das palavras de um salmo (31, 6) por ele rezado tantas vezes.
Em Lucas, além do tema da tentação e da oração para combatê-la e vencê-la, podemos entrever uma ênfase particular no perdão que Jesus sabe dar também nessa hora, a hora dos seus inimigos, a hora que ele mesmo define como a das trevas.
Quando ocorre a sua captura e um dos discípulos saca a espada para defendê-lo, ferindo a orelha de um servo do sumo sacerdote, Jesus não só se opõe a tal comportamento, mas imediatamente toca a orelha sangrando e o cura, com um gesto que é muito mais do que uma declaração de perdão.
Também chama a atenção uma anotação unicamente lucana sobre o olhar dirigido por Jesus a Pedro depois da sua tríplice negação. O apóstolo que quisera tranquilizar Jesus sobre o seu seguimento fiel, na realidade, nega tê-lo conhecido por nada menos do que três vezes e faz isso diante de uma serva e de outras duas pessoas anônimas presentes no pátio do sumo sacerdote. Então, o galo canta, e, no mesmo instante, Jesus se vira, procura Pedro com o seu olhar de misericórdia e provoca nele um pranto de arrependimento, um pranto amargo que nasce da consciência de não ter sido capaz de permanecer firme como uma Rocha, firme como a sua vocação lhe exigiria.
Mas é sobretudo na cruz que Jesus revela a sua misericórdia e torna epifânico o seu perdão. Enquanto já está levantado entre dois malfeitores, um à direita e outro à esquerda, olhando para os seus algozes, os seus inimigos e a multidão que assiste àquela execução, Jesus reza dizendo: “Pai, perdoa-lhes! Eles não sabem o que fazem!”.
Enquanto os humanos o estão matando, Jesus invoca sobre eles o perdão de Deus, faz-se instrumento de reconciliação. Não desculpa os malfeitores, mas denuncia a sua ignorância, o fato de não saberem o que fazem nem o que dizem contra ele e contra o Pai, que o enviou e o declarou Filho eleito e amado.
Um dos delinquentes crucificados junto com Jesus o insulta, provoca-o, tenta-o do mesmo modo que os chefes do povo e os soldados: “Tu não és o Cristo? Salva-te a ti mesmo e a nós!”. Mas o outro malfeitor, que sabe reconhecer o próprio pecado contraposto à justiça de Jesus, grita: “Jesus, lembra-te de mim, quando entrares no teu reinado”. Jesus então lhe responde: “Em verdade eu te digo: ainda hoje estarás comigo no Paraíso”. Não no fim dos tempos, não na hora da parousía, mas hoje, na hora da morte, ele poderá seguir o Senhor e Messias no seu reino. Desse modo, Jesus não preservou nem a si mesmo nem ao malfeitor da morte, mas fez dessa morte uma passagem para a verdadeira vida, a em Deus.
Se essas são as características específicas de Lucas ao nos dar o ícone do Christus patiens, é apenas esse evangelista que ousa falar da crucificação como theoría, contemplação. Esta é a contemplação cristã: o crucificado! Olhando para ele, pode-se passar da contemplação ao arrependimento e à conversão, que é sempre um retorno sobre as suas pegadas.
As multidões que se reuniram para aquele espetáculo-visão, tendo visto como Jesus vivera a sua morte violenta e tendo constatado o seu amor muitíssimo capaz de invocar sobre todos o perdão, retornam batendo em seus peitos.
Por sua vez, o centurião pagão – e nós somos convidados a fazer isto com ele! – reconhece a glória de Deus nesse evento que dava a morte a “um homem justo”, sem pecado como Filho de Deus (cf. Sb 1, 16-2,20).
RECRIADOS NO SEU AMOR
José Tolentino Mendonça
Queridos irmãs e irmãos,
Umas breves palavras neste domingo da Paixão do Senhor, em que o mais importante é de facto escutarmos esta história. Hoje lemos a Paixão no relato segundo S. Lucas, que é o evangelista deste ano. Ouvimos a história da Paixão do Senhor. Ouvir esta história é tornar-se testemunha dela, ouvir esta história é ficar na posse do que ela significa, do seu conhecimento. A grande questão é o que é que cada um de nós vai fazer com esta história? O que é que cada um de nós é chamado a fazer com esta história?
É muito belo aquilo que hoje nos sabemos: que antes dos Evangelhos serem escritos propriamente com todos os relatos da vida de Jesus, já o núcleo central era precisamente este relato da Paixão, que quando se reuniam à volta da eucaristia os cristãos recordavam a Paixão do Senhor. Por isso, a Paixão é o núcleo vital, o núcleo central dos acontecimentos de Cristo. É esta história que nos funda, que nos dá identidade, que nos faz ser.
Marguerite Yourcenar, a grande escritora, dizia que é uma das mais belas histórias do mundo, e é. Está aqui tudo, está o mundo inteiro, estão os personagens, está a nossa vida. Mas é mais do que isso, é mais do que uma bela história, é o lugar onde a nossa vida se reflete, se vê mais profundamente, e onde a nossa vida encontra o seu resgate, encontra a sua luz.
Eu queria de modo muito telegráfico sublinhar apenas três palavras daquelas que ouvimos neste longo relato da Paixão, para que elas continuem a reverberar ao longo desta Semana Maior, desta semana das semanas que nós somos como cristãos chamados a viver e que é o nosso útero. Nós cristãos somos formados nesta semana, é a semana da nova criação, da nossa recriação como mulheres e como homens cristãos.
A primeira palavra é uma palavra que Jesus cita da própria Escritura. Jesus diz aos discípulos: “Estejam tranquilos com toda esta violência ao vosso redor, deixai acontecer para que se cumpra o que de Mim está escrito: «fui contado entre os malfeitores».” Jesus é aquele que desce até à ínfima condição humana. Ele aceitou voluntariamente ser assim. Como lembra o grande hino cristão que S. Paulo nos recorda hoje na Carta aos Filipenses: “Ele esvaziou-se a si mesmo.” Jesus esvaziou-se e quis ser contado entre a miséria humana, entre os infernos da nossa vida. Quis ser contado, quis ser encontrado no meio da nossa fragilidade para que nada nos possa separar do amor de Deus. Hoje, cada mulher e cada homem, hoje, cada um de nós sabe que qualquer que seja o lugar em que se situe Jesus está a seu lado e abraça-o. Jesus abraça a nossa condição pecadora, Jesus abraça a nossa miséria, Jesus abraça a nossa inconsistência, Jesus abraça o inacabamento da nossa vida, Jesus abraça o que gostamos e o que não gostamos, Jesus abraça o que lamentamos que tenha acontecido, Jesus abraça tudo em nós.
“Eu fui contado entre os malfeitores.” Quer dizer: “Eu estive a teu lado, Eu estava a teu lado, nunca estive longe de ti, nunca nada nem ninguém te separou do meu amor.” E é esta promessa de amor, é esta aliança de amor que cada um de nós é chamado a sentir.
Depois a palavra que as autoridades, até um dos ladrões que está pregado ao lado de Jesus numa cruz, grita a Jesus: “Salvou os outros, salve-Se a Si mesmo!” É uma boa entrada para perceber o mistério de Jesus. Porque é que Jesus salvou os outros e não Se salva a Si mesmo? Porque para salvar os outros nós temos de nos esquecer de nós mesmos. Para salvar os outros, para colocar os outros em primeiro lugar, para levar os outros aos ombros, para encher os outros do excesso de amor que é a misericórdia, para dar vida aos outros, para entusiasmar os outros, tantas vezes nós temos de morrer, temos de ficar para trás, temos de ficar em último lugar, temos de permanecer em silêncio, temos de dar o que temos e o que não temos, temos de esvaziar-nos, temos de ficar sem nada para poder dar aos outros a vida, para poder gerar a vida nos outros.
Salvou os outros, não pode salvar-Se a Si mesmo. Esta impotência de Jesus, esta incapacidade de Jesus ser, esta imobilidade de Jesus, esta passividade de Jesus, este silêncio de Jesus durante a sua Paixão, estes braços amarrados a uma cruz que já não podem fazer nada. Jesus não pode fazer nada, não pode dizer nada, mas este nada é o princípio da vida.
Por isso, queridos irmãos, a grande escritora brasileira Clarice Lispector dizia: “A Paixão de Cristo é a Paixão do Homem.” Porque Nele nós temos a lição, no Crucificado, Naquele que levantamos da cruz, nós temos o caminho, temos o mapa da nossa viagem. Salvou os outros não pode salvar-se a si mesmo: não conheço melhor definição para o amor.
A terceira palavra é a última palavra de Jesus: “Pai, em Tuas mãos entrego o meu espírito.” Lembro-me de uma peça musical escrita pelo nosso querido João Madureira que se intitulava “Pai”, “Pater”. A mim tocou-me muito a forma como o João interpretou a palavra “Pai”, porque um artista é capaz de nos fazer perceber muitas coisas. Quando eu rezava o Pai Nosso, eu dizia apenas uma vez a palavra “Pai”, depois de ouvir a composição do João Madureira eu perco a maior parte do tempo a repetir: “Pai, Pai, Pai, Pai, Pai, Pai, Pai, Pai, Pai…” E depois é que vem tudo o resto, mas eu percebi que a parte mais importante é o Pai. E agora imaginemos o que é que Jesus sentia, com que emoção, com que dramatismo, com que verdade, com que sopro de vida Jesus disse pela última vez a palavra “Pai”, o que foi esta palavra que o mundo ouviu Jesus a dizer pela última vez, a palavra “Pai” pouco antes de expirar.
E é isso o grande testamento de Jesus, a grande herança, o que Ele nos oferece. Jesus dá-nos um Pai, dá-nos a possibilidade de chamarmos a Deus “Pai”. Não um pai teórico ou abstrato, mas um pai, pai, pai, pai todas as vezes, todos os tons da voz, todas as horas da nossa vida, com todos os silêncios, com toda a leveza, com toda a transparência e com toda a noite escura. Nós em Deus temos um pai, Jesus mostrou-nos o rosto do Pai.
“Pai, nas Tuas mãos entrego o meu espírito.” Queridos cristãs e cristãos, vamos começar esta que é a semana que nos define, é a Semana Maior. Não há cristãos sem a recriação que acontece nesta semana. Não são só as liturgias mais longas, é a oportunidade de estarmos no ventre de Deus, no ventre de Deus e estarmos a ser gerados, recriados no Seu Amor e na Sua Misericórdia, colocando em Jesus os nossos olhos, aprendendo Dele a ser, o que significa ser, o que significa acreditar, o que significa amar, o que significa perdoar, o que significa aceitar e o que significa entregar-se por inteiro, entregar-se no Espírito, completamente nas mãos do Pai.
Semana Santa:
com um «coração tão grande como o mundo»
Romeo Ballan, MCCJ
A entrada na Semana Santa, a semana maior do amor até ao extremo (Jo 13,1), é marcada este ano pela narração da paixão e morte de Cristo, narrada pelo evangelista Lucas (Evangelho). Aquela Paixão não é apenas história do passado: os mesmos acontecimentos repetem-se hoje. As personagens de então (Caifás, Herodes, Pilatos, fariseus, sacerdotes, Pedro, Judas, Cireneu, mulheres piedosas, soldados, Centurião, José de Arimateia…) são emblemáticas do que acontece hoje em relação a Cristo e aos sofredores, com os quais Ele se identifica (cf. Mt 25,35s). Cada pessoa, cada um de nós pode encontrar-se, hoje, no bem ou no mal, a ser uma ou outra das personagens da paixão de Jesus. Hoje, cada um de nós pode ser, por exemplo, como as mulheres piedosas, que acompanham Jesus na dor; ou como o Cireneu, pessoa capaz de carregar o fardo dos outros; como Maria aos pes da cruz…
Três testemunhas actuais do mundo missionário são-nos de ajuda na compreensão e na celebração do Mistério pascal próprio da Semana Santa. A sua palavra nasce da experiência pessoal de identificação com Cristo morto e ressuscitado. Por isso, tais testemunhas têm uma ressonância universal: ajudam a viver a Páscoa segundo a amplitude e a profundidade próprias do coração de Cristo.
«Sempre de olhos postos em Jesus Cristo»
São Daniel Comboni (1831-1881), missionário apaixonado pela salvação da África, nas Regras para o seu Instituto (1871), recomendava vivamente aos futuros missionários que contemplassem com amor Cristo crucificado, para se formarem no necessário «espírito de sacrifício»:
«O pensamento, sempre dirigido ao grande fim da sua vocação apostólica, deve suscitar nos alunos do instituto o espírito de sacrifício. Fomentarão esta disposição essencialíssima, tendo sempre os olhos postos em Jesus Cristo, amando-o ternamente e procurando entender cada vez melhor o que significa um Deus morto na cruz pela salvação das almas. Se com viva fé contemplam e saboreiam um mistério de tanto amor, serão felizes por se oferecerem e perderem tudo e morrer com Ele e por Ele».
(Dos Escritos de Daniel Comboni, n. 2720-2722)
«Tenho sede!»
A total dedicação da Beata Madre Teresa de Calcutá (1910-1997) à causa missionária nasceu da contemplação das palavras de Jesus na Cruz: «Tenho sede!» A atenção aos últimos na escala social brotava nela do desejo de satisfazer a sede de Cristo.
«Tenho sede! Disse Jesus quando, na cruz, estava privado de qualquer consolação. Renovai o vosso ardor para saciar a sua sede nas dolorosas semelhanças dos mais pobres dos pobres: “Foi a mim que o fizestes”. Nunca desligueis estas palavras de Jesus: “Tenho sede” e “foi a mim que o fizestes”».
(Dos escritos da Madre Teresa de Calcutá)
Celebrar a Páscoa com um «coração tão grande como o mundo»
É este o ensinamento do Servo de Deus, Mons. Óscar Arnulfo Romero (1917-1980), arcebispo de São Salvador, assassinado enquanto celebrava a Eucaristia na tarde de 24 de Março de 1980.
«Só celebra a Páscoa com Cristo aquele que sabe amar, que sabe perdoar, que sabe explorar a maior força que Deus colocou no seu coração de homem: o amor. A Igreja sente que o seu coração é como o de Maria, tão grande como o mundo, sem inimigos, sem ressentimentos».
(Das catequeses de Mons. Óscar A. Romero, na Semana Santa de 1978)