V Domingo da Quaresma (ciclo C)
João 8,1-11


Lent 5th C

Referências bíblicas

  • 1ª leitura: “Eis que farei coisas novas, darei de beber a meu povo” (Isaías 43,16-21)
  • Salmo: Sl 125(126) – R/ Maravilhas fez conosco o Senhor, exultemos de alegria!
  • 2ª leitura: “Por causa de Cristo, eu perdi tudo, tornando-me semelhante a ele na sua morte” (Filipenses 3,8-14)
  • Evangelho: “Quem dentre vós não tiver pecado seja o primeiro a atirar-lhe uma pedra” (João 8,1-11)

Queridos irmãs e irmãos,
(…) S. Gregório de Nissa dizia que “A nossa vida é uma sucessão de começos.” E há nesta frase uma sabedoria espiritual imensa que nós precisamos de recuperar para cada um de nós. Porque se vivemos ligados unicamente ao fio do passado, nós facilmente ficamos sequestrados pelo ajuste de contas, pelas coisas que não ficaram bem resolvidas, por aquilo que fizemos, por aquilo que não demos, por aquilo que não nos deram e a nossa vida torna-se um diálogo com uma floresta de fantasmas.

O passado é passado. Por isso, é tão importante ouvirmos hoje o que disse o profeta Isaías, e o que nos diz S. Paulo, que é dizer assim: “Vamos esquecer o passado, vamos esquecer, deixar para trás o passado.” Ou como diz S. Paulo: “Eu estou numa corrida.” Ele utiliza a imagem do atletismo no tempo das maratonas do mundo helénico, do qual Paulo foi um viajante, um morador. Ele diz: “Deixando o que está para trás eu atiro-me para a frente para poder chegar à meta.” E este gesto de deixar é um gesto espiritual prioritário. Nós temos de deixar, temos de fazer cair, temos de esquecer.

Dentro de nós somos muito rezingões e temos de continuar a pleitear e a disputar: “Ah, porque é que não aconteceu assim, porque é que não foi desta maneira, porque é que não foi daquela? E por isto e por aquilo.” Deixa, deixa. Temos de deixar, foi o que foi. Se nós estamos sempre a esburacar no passado perdemos o futuro, perdemos a possibilidade de acolher a novidade da graça que nos transforma. Deixa, deixa. O julgamento do passado não é a coisa mais importante, ao contrário daquilo que pensamos, não é coisa mais importante. O importante, o mais importante é esta oportunidade de vida que o Senhor concede a cada um e que nos pede que concedamos a nós próprios e uns aos outros.

Eu hoje vou começar de novo, não vou viver agarrado ao passado mas vou sentir-me consequência do futuro. O peso no coração de um cristão não é o peso do passado mas é o peso leve daquilo que está para vir, daquilo que está para chegar. Daquilo que Deus quer fazer, quer inaugurar, quer recriar dentro de nós. Essa é a nossa amarra principal. Senão, nós vamos ficar completamente presos a um passado que não nos salva, que não liberta. Há um passado que amarra, há um passado que condena e não damos a abertura, não damos o salto que a fé nos pede para recomeçarmos agarrados, confiados, à misericórdia de Deus.

No evangelho de S. João esta mulher, apanhada em adultério, está para ser julgada, para ser condenada por todos. Gera-se ali um movimento de condenação daquela mulher. Nós sabemos como são as lógicas de grupo, quando nós nos juntamos para condenar alguém não há remissão possível, porque vence esta lógica totalitária do juízo fácil que condena. E Jesus devolve a questão: “Quem de vós estiver sem pecado atire a primeira pedra.” Então, o que é que Jesus faz? Pede a cada um para fazer o exercício de entrar em si mesmo, entrar na sua própria vida, olhar para a sua própria condição, que é uma coisa que nós ignoramos tanto, ignoramos tanto.

Com facilidade julgamos os outros disto e daquilo, e esquecemos o que vai dentro de nós, aquela que é a nossa realidade vital. “Quem de vós estiver sem pecado atire a primeira pedra.” E eles, um a um, vão–se afastando, sem condenar a mulher. E Jesus pergunta à mulher: “Filha, ninguém te condenou? Também eu não te condeno. Vai e não tornes a pecar.” Esta é a palavra da misericórdia: “Vai, e não tornes a pecar.” Isto é, dar uma nova oportunidade, dar uma nova oportunidade. A vida de cada um de nós, a vida dos outros, que no fundo dependem de nós, da relação connosco, precisa muitas vezes disto, de uma nova oportunidade. E se nós, viciados no passado, feridos pelo passado, recusamos dar essa oportunidade aos outros, nós perdemos os outros e perdemo-nos a nós mesmos. E a nossa vida torna-se muito mais um cemitério, e a gestão das perdas e dos ferimentos e daquilo que não foi, e não rasgamos a nossa vida ao futuro de Deus. “Vai e não tornes a pecar.” Isto é, sente que a vida é de novo colocada nas tuas mãos.

Queridos irmãos e irmãs, nós temos muitas vezes de esvaziar as nossas mãos, esvaziar o nosso coração para que a vida os torne a encher. Às vezes, o que trazemos são queixas, são ressentimentos. Uma vida mal-amada é o peso insustentável do que não aconteceu, do que não foi. Deixemos, deixemos, deixemos. Façamos realmente esta conversão, esta transformação que é uma abertura de coração. Quer dizer, fujamos à tentação de julgar, à tentação de condenar. Mas procuremos a oportunidade, procuremos o começar de novo. E, dentro de nós próprios, procuremos o esquecimento.

Nós sabemos que, em relação ao perdão, muitas vezes o esquecimento é impossível, nós não conseguimos esquecer. Até porque são feridas tão grandes, realidades tão grandes que mesmo que nós quiséssemos não conseguíamos esquecer. O perdão não é esquecer, mas o perdão ajuda a esquecer. O perdão é acreditar que a lógica do amor é superior à lógica da violência, a lógica da resposta. É dar ao outro não o que ele merece mas aquilo que está no coração de Deus, é acreditar no amor em si, ponto final. É acreditar no valor da reconciliação em si mesma, ponto final. E depois, viver assim, viver assim. E aos poucos, quando nós vivemos dessa maneira, nós percebemos que já estamos livres, já estamos desprendidos. Isto é, não estamos ainda agarrados a um passado, a discutir, a dialogar com uma coisa que aconteceu há vinte anos e nós ainda estamos a discutir com isso. Ou que aconteceu há setenta anos, e ainda estamos presos àquilo. E perdemos o hoje, perdemos o aqui e o agora, perdemos a oportunidade da graça que nos é dada, que nos é dada.

“Vai e não tornes a pecar.” Que cada um de nós sinta esta palavra motivadora de Jesus na sua vida e cada um de nós possa dar esta palavra uns aos outros. Este é um exercício da misericórdia.

Queridos irmãs e irmãos, aquela visão maravilhosa do profeta Isaías que vê uma nova terra, que vê uma realidade transformada, que vê como é possível um reflorescimento, uma revitalização, seja de facto uma palavra para cada um de nós. O nosso coração não tem de ser um inverno gelado, cada vez mais gelado, impecavelmente um inverno. O nosso coração é chamado a um degelo e o degelo é a misericórdia. O fim do inverno e a chegada da primavera, isso é misericórdia. Aprendamos, trabalhemos o desprendimento interior, a liberdade interior.

O espírito dá-nos liberdade interior. E é muito difícil, é um ponto muito exigente da nossa vida esta liberdade interior, esta liberdade de coração. Penso que ela só vem num caminho espiritual quando nos colocamos na dependência de Deus, quando suspendemos o nosso juízo e entregamos tudo a Deus. Custa-te perdoar? Entrega a Deus, deixa ser Ele a gerir. Custa-te uma coisa do teu passado? Entrega a Deus, deixa ser Ele a gerir e não penses mais nisso. Custa-te uma relação com uma pessoa? Entrega a Deus, não penses mais nisso. É este entregar e este libertar-se, este desprender-se interiormente, que permite que a nossa vida passe a uma revitalização, passe a um começo, a um recomeço. E como precisamos disso neste tempo de quaresma, como precisamos da arte de recomeçar. Mesmo quando até a nossa vida parece que está toda bem, parece que tudo flui, parece que é só alegria, só louvor.

Todos nós precisamos de recomeçar, sempre, em alguns aspetos da nossa vida. Por isso, abramos o nosso coração com confiança ao Senhor, e como diz S. Paulo belas palavras na Carta aos Filipenses: ”Só penso numa coisa, esquecendo o que fica para trás, lançar-me para a frente, lançar-me para a frente. Continuar a correr para a meta em vista do prémio a que Deus, lá do alto, me chama em Cristo Jesus.” O nosso prémio não é daqui, não é daqui. Às vezes o nosso erro é querer ter já o prémio, o nosso prémio não é daqui, o nosso prémio é dado lá do alto, por Cristo Jesus.

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“Coisas novas”: um mundo novo está aí!

Esta expressão, retirada da primeira leitura, combina bem com as últimas linhas da segunda, em que Paulo diz: “Esquecendo o que fica para trás, (…) corro direto para a meta.” O que Paulo havia deixado para trás? O que tinha vivido até ali, com certeza: como podemos ler no início desta passagem, uma vida centrada na “obediência à Lei de Moisés“, mas que, dali em diante, foi substituída pela fé em Cristo e na justiça que ele nos traz. Justiça que nos torna conformes à Lei, mas que a ultrapassa.

Porque o que buscamos não é mais obedecer à sua letra, mas ao próprio Cristo. E isto se traduz no nosso amor, em resposta ao amor de Cristo por nós. Não se trata mais de um dever, mas de uma comunhão. De que forma, porém, tudo isto diz respeito à mulher adúltera?

É que no centro do relato, vemos Jesus inclinar-se para “escrever com o dedo sobre a terra” (tradução literal). Está tudo aí: Deus inclina-se sobre nós, sobre a terra de onde viemos e para onde haveremos de voltar. E escreve: “escreve com o dedo”. Ora, a expressão “escreve com o dedo” aparece somente três vezes nas Escrituras. A primeira, em Êxodo 31,18: o dedo de Deus escreveu a Lei sobre as tábuas de pedra. Deuteronômio 9,10 repete a mesma cena.
Por fim, Daniel 5 nos mostra a mão de Deus escrevendo no muro do palácio real as três palavras que significam a condenação do rei Baltazar, em nome da Lei de Deus. Agora, é Jesus quem escreve sobre a terra uma nova Lei, a última Lei: a Lei do amor. Lei que se inicia pelo perdão; perdão que chegará ao ponto de nos absolver do assassinato do Filho de Deus.

A nova Lei

Eis aí a mulher adúltera. Sozinha! Enquanto a Lei de Moisés prescreve também ao homem a condução à morte (Levítico 20,10). Por que tanta severidade? Se para os Hebreus o adultério se mostra como passível de morte, é porque tem algo a ver com o assassinato: o marido e a mulher enganados são, de alguma forma, postos de lado, são esquecidos, eliminados. É um assassinato virtual, se podemos dizer assim.

Foi preciso estar diante do que há de pior, para que Jesus escrevesse sobre a terra a nova Lei, a Lei de um amor capaz de absolver todas as faltas de amor. Notemos que, no início do relato, ninguém se dirige à mulher: ela é apenas um pretexto para uma discussão a respeito da Lei. E Jesus, levantando-se, pronuncia as suas primeiras palavras para devolver os acusadores a si mesmos.

Assim, o foco passa da mulher aos que a querem lapidar. E são eles mesmos confrontados com a Lei de Moisés: “Quem dentre vós não tiver pecado seja o primeiro a lhe jogar uma pedra”. A responsabilidade é pesada: ficam todos à espera desta pedra, para, também eles, por sua vez, iniciarem a lapidar. Ora, existe um homem apenas sobre a terra que é sem pecado: este que se inclinou novamente sobre o chão, para escrever a nova Lei, a lei do perdão por amor.

Os outros todos que a querem lapidar se encontram injustos, em conformidade com esta Lei, mesmo se fossem inocentes, o que não é o caso. Os mais velhos são certamente os mais culpados, ou os mais lúcidos. Escolham.

Da justiça ao amor

Na primeira Aliança, o povo inteiro é que muitas vezes é acusado de adultério: abandona Deus para voltar-se a outros deuses. A mulher do nosso evangelho, que não tem nome, representa, portanto, todo o seu povo. E mais: seu adultério é uma imagem de todas as nossas idolatrias: idolatria do sexo, mas também do dinheiro, do consumo, da notoriedade, do poder.

Idolatria da “justiça”, no sentido de que desejamos e até mesmo exigimos que os culpados sejam punidos. O nosso sistema penal não procura somente a reeducação dos culpados e o retorno à ordem, mas uma revanche, do tipo “olho por olho, dente por dente”. Nesta exigência é que se apegam os acusadores da mulher adúltera. Além do mais, acusar o outro é um modo de afirmar-se a si mesmo como “um justo”. E é isto, precisamente, o que Jesus vai levá-los a questionar.

Terão de descobrir que não existe “justo nenhum, nem um só”. Corrigindo: neste relato, há sim um justo: este mesmo que escreve sobre a terra. Para ele, sua justiça, em lugar de condenar, comunica-se aos injustos, tornando justos os que não o são. Pois este homem, precisamente, o único em quem a Lei não poderia encontrar qualquer defeito, é que será levado à morte.

Sua condenação não resultará de nenhuma infração à Lei: dará a sua vida gratuitamente. Saboreemos a ternura tranquila deste diálogo final entre Jesus e a mulher. Saímos aqui dos domínios do justo e do injusto, para penetrarmos no do amor verdadeiro. Saboreemos este diálogo final, que restitui àquela mulher a dignidade de pessoa humana.

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Este trecho Jo 8,1-11 teve um destino muito particular, que atesta o seu caráter escandaloso e embaraçoso: de fato, ele foi “censurado” pela Igreja! Está ausente nos manuscritos mais antigos, é ignorado pelos padres latinos até o século IV, durante cinco séculos não foi proclamado na liturgia e não existem comentários a ele por parte dos padres gregos do primeiro milênio.

Ao término de um longo e turbulento migrar entre os manuscritos, ele foi inserido no Evangelho segundo João, depois do sétimo capítulo e antes do versículo 15 do oitavo. Não é uma cena incomum: muitas vezes, os Evangelhos anotam que os adversários de Jesus tentam colocá-lo em contradição com a Lei de Deus, para poder acusá-lo de blasfêmia, de desobediência ao Deus vivo.

Para aqueles escribas e fariseus, na realidade, a mulher não lhes importava nada; para eles, era importante encontrar motivos de condenação contra Jesus: eles não queriam apedrejar a adúltera, mas apedrejar Jesus! Esses homens religiosos irrompem na audiência de Jesus, levante diante d’Ele uma mulher pega em flagrante adultério, colocam-na no meio de todos e se apressam a declarar: “Moisés, na Lei, nos mandou apedrejar mulheres como essa”.

Tal declaração parece formalmente impecável, porque cita a Lei; a um olhar atento, porém, capta-se que o seu recurso à Torá é parcial. A Lei, de fato, previa a pena de morte para ambos os adúlteros e atestava a mesma pena, mediante apedrejamento, enquanto, se já fossem casados, então se recorria ao estrangulamento.

Porém, é altamente significativo que apenas ela tenha sido capturada e levada diante de Jesus, enquanto o homem que cometeu adultério com ela e, de acordo com a Lei, é tão culpado quanto ela não é nem imputado nem levado a julgamento!

Tentemos nos deter por um momento nessa cena. Há alguns que levaram uma mulher a Jesus, para que seja condenada. Mas Jesus começa a responder aos acusadores falando com o corpo, não com palavras: inclina-se, abaixando-se, rompe o círculo da “violência mimética” (René Girard), despedaça a cara a cara com aqueles fariseus e põe-se a escrever no chão, em absoluto silêncio.

Da posição de quem está sentado, Ele passa para a de quem se inclina para o chão; além disso, desse modo, se inclina diante da mulher que está de pé diante d’Ele! No entanto, como os acusadores insistem em interrogá-Lo, depois daquele longo e, para eles, desconfortável silêncio preenchido apenas pela sua mímica profética, Jesus se levanta e não responde diretamente à questão que lhe foi feita, mas faz uma afirmação que contém em si mesma também uma pergunta: “Quem de vocês não tiver pecado, atire nela a primeira pedra”. Depois, inclina-se de novo e volta a escrever no chão.

Assim, uma palavra de Jesus, uma única palavra, mas incisiva (a ponto de ter se tornado proverbial) e autêntica, uma daquelas perguntas que nos agitam e nos fazem ler em profundidade a nós mesmos, impede que aqueles homens façam violência em nome da Lei. Só Deus e, portanto, só Jesus poderia condenar aquela mulher.

Pois bem, aqui, Jesus – que se me permita dizer – “evangeliza” Deus, isto é, torna Deus Evangelho, boa notícia para aquela mulher. Jesus, o único homem que narrou Deus em plenitude, que foi a Sua exegese viva, afirma que, diante do pecador, da pecadora, Deus tem apenas um sentimento: não a condenação, não o castigo, mas o desejo de que se converta e viva.

Jesus, enviado por Deus “não para condenar o mundo, mas para salvar o mundo”, aqui também, age como tinha anunciado no início do Seu ministério: “Eu não vim chamar os justos, mas os pecadores”.

Somente quando todos foram embora, Ele se levanta e se coloca diante da mulher. Ela, posta ali de pé no meio de todos, agora é finalmente restituída à sua identidade de mulher e vê Jesus de pé diante de si: assim, é possível o encontro verdadeiro.

Por fim, Jesus conclui esse encontro com uma afirmação extraordinária: “Eu também não a condeno. Pode ir, e não peque mais”. São palavras absolutamente gratuitas e unilaterais.

Eis a gratuidade dessa absolvição: Jesus não condena, porque Deus não condena, mas, com esse seu ato de misericórdia preventiva, oferece à mulher a possibilidade de mudar.

Não sabemos se essa mulher perdoada, depois do encontro com Jesus, mudou de vida; sabemos apenas que, para que ela mudasse de vida e voltasse a viver, Deus, que não quer a morte do pecador, perdoou-a através de Jesus e a enviou para a liberdade: “Vá, vá para você mesma e não peque mais”…

As pessoas religiosas gostariam que, nesse ponto, Jesus tivesse dito à mulher: “Você se examinou? Sabe o que fez? Compreende a gravidade disso? Está arrependida da sua culpa? Detesta-a? Promete que não vai mais fazer isso? Está disposta a sofrer a pena justa?”.

Essas omissões nas palavras de Jesus escandalizam ainda, hoje como ontem! Nenhuma condenação, apenas misericórdia: aqui está a grandeza e a unicidade de Jesus. Esse encontro entre Jesus e a mulher surpreendida em adultério não nos revela apenas a misericórdia de Jesus, mas também a Sua capacidade de defender a mulher de um círculo de homens, sempre prontos para justificar a si mesmos e condenar as mulheres.

Infelizmente toda a história dos fiéis, da antiga como da nova aliança, testemunharia esse “olho espião, exigente e condenador” dos homens religiosos contra as mulheres, consideradas culpadas pela sua condição – dizem os homens – de criaturas sempre tentadoras e fáceis à tentação.

Esse exemplo de Jesus seria pouco compreendido e ainda menos vivido, mas, mesmo assim, seria memorizado no Evangelho, e sempre haverá leitores que encontrarão nele uma boa notícia.

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A «vida nova» é o tema das três leituras deste domingo. Jesus no Evangelho dá novamente a vida à adúltera: «Vai e não tornes a pecar» (v. 11). Já o profeta Isaías (I leitura) falava de vida aos exilados na Babilónia predizendo o regresso à pátria: «Olhai, vou realizar uma coisa nova, que já começa a aparecer» (v. 19). A promessa era acompanhada de dois sinais eloquentes: um caminho no deserto e rios de água na terra árida. Para Paulo (II leitura) a vida nova é uma pessoa, Cristo Jesus, o único tesouro, perante o qual tudo o mais é perda e lixo (v. 8). É Ele a única meta a conquistar correndo com todas as forças. Paulo sente esse empenho não como um peso, mas como uma resposta de amor a Cristo que o conquistou (v. 12). Desta experiência nasce o impulso missionário de Paulo.

«Ao raiar do dia» (Evangelho), na esplanada do templo de Jerusalém, teve início a vida nova também para uma mulher «surpreendida em flagrante adultério» (v. 4). Uma mulher a lapidar, segundo a lei, lançada como um farrapo diante de Jesus, a única acusada de uma culpa que, por definição, supõe um cúmplice, que todavia se escapuliu habilmente… Jesus salva-a do apedrejamento com atitudes surpreendentes, que provocam uma mudança absoluta da situação: antes de mais, o silêncio desarmante de Jesus; depois o «escrever com o dedo no chão» (v. 6.8) com sinais que a história não conseguirá decifrar; e por fim o desafio a atirarem-lhe a primeira pedra (v. 7), desmascarando a hipocrisia daqueles acusadores legalistas de coração de pedra.

No fim, a mulher e Jesus ficam sós: «a mísera e a misericórdia», comenta Santo Agostinho. Jesus fala à mulher: nenhum lhe tinha falado, tinham-na arrastado entre empurrões e acusações. Jesus fala-lhe não com os nomes da rua, mas com respeito, reconhecendo a sua dignidade; chama-lhe «mulher», como Ele costuma chamar a sua mãe (Jo 2,4; 19,26). Jesus distingue entre ela – mulher frágil, sem dúvida – e o seu erro, que Ele contudo não aprova: o adultério é e permanece pecado (Mt 5,32), até mesmo no caso de um desejo desonesto (Mt 5,28; e IX Mandamento). Jesus condena o pecado mas não a pecadora; não fica a analisar o passado, mas relança a vida, reabre o futuro. O âmago do relato não é o pecado, mas o coração de Deus que chama e quer que nós vivamos. A imagem de Deus-amor que Jesus quer fazer passar é esta: que a mulher experimente que Deus a ama tal como ela é. Desse modo a mulher, sentindo-se respeitada, amada, protegida, é capaz de acolher o convite de Jesus a «não tornar a pecar» (v. 11). Deus salva amando. Só o amor converte e salva!

Este desconfortável trecho do Evangelho teve uma história atormentada: é omitido em vários códigos antigos, está deslocado noutros. Há quem pense que o autor não seja João mas Lucas, dado o estilo e a mensagem muito semelhante à parábola do pai misericordioso (ver Lucas 15, no Evangelho de domingo passado), com as várias personagens da parábola: a mulher no lugar do filho mais novo; os escribas e fariseus em linha com o filho mais velho; e Jesus no perfeito papel do Pai. Sublinha-o também um conhecido autor moderno: «Texto insuportável, que falta em vários manuscritos. A consciência moral, e também a consciência religiosa dos homens não pode admitir que Cristo recuse condenar a mulher… Ela foi surpreendida em flagrante delito; cometeu um dos pecados mais graves que a Lei conheça… Cristo atrapalha os acusadores recordando-lhe a universalidade do mal: também eles, espiritualmente, são adúlteros; também eles duma maneira ou doutra, traíram o amor. ‘Quem está sem pecado…’. Ninguém está sem pecado, e ele conclui dizendo: “Vai e não tornes a pecar”: uma frase que abre um novo futuro» (Olivier Clément).

O trecho evangélico constitui uma intensa página de metodologia missionária para o anúncio, a conversão, a educação à fé e aos valores da vida. O amor gera e regenera a pessoa, torna-a livre; Jesus educa ao amor vivido na liberdade e na gratuidade. Só mediante estas condições se compreende que é preciso deixar cair das mãos as pedras que gostaríamos de atirar aos outros. E depois o facto de os mais velhos começarem a sair (v. 9), revela neles sentido de culpa, de vergonha, ou de ter aprendido a lição? Por fim resulta claro que quem quer que trabalhe e lute por iguais oportunidades entre mulher e homem, tem em Jesus um precursor ideal, um pioneiro e um aliado.