O Pão do III Domingo da Quaresma (ciclo C)
Lucas 13,1-9

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Referências bíblicas:

  • 1ª leitura: “Assim responderás aos filhos de Israel: ‘Eu sou’ enviou-me a vós” (Êxodo 3,1-8.13-15)
  • Salmo: Sl. 102(10,3) – R/ O Senhor é bondoso e compassivo.
  • 2ª leitura: A Escritura conta a vida de Moisés com o povo no deserto para nos advertir (1Co 10,1-6.10-12)
  • Evangelho: “Se não vos converterdes, ireis morrer todos do mesmo modo” (Lucas 13,1-9)

Naquele tempo, vieram contar a Jesus que Pilatos mandara derramar o sangue de certos galileus, juntamente com o das vítimas que imolavam. Jesus respondeu-lhes: «Julgais que, por terem sofrido tal castigo, esses galileus eram mais pecadores do que todos os outros galileus? Eu digo-vos que não. E se não vos arrependerdes, morrereis todos do mesmo modo. E aqueles dezoito homens, que a torre de Siloé, ao cair, atingiu e matou? Julgais que eram mais culpados do que todos os outros habitantes de Jerusalém? Eu digo-vos que não. E se não vos arrependerdes, morrereis todos de modo semelhante. Jesus disse então a seguinte parábola: «Certo homem tinha uma figueira plantada na sua vinha. Foi procurar os frutos que nela houvesse, mas não os encontrou. Disse então ao vinhateiro: ‘Há três anos que venho procurar frutos nesta figueira e não os encontro. Deves cortá-la. Porque há de estar ela a ocupar inutilmente a terra?’. Mas o vinhateiro respondeu-lhe: ‘Senhor, deixa-a ficar ainda este ano, que eu, entretanto, vou cavar-lhe em volta e deitar-lhe adubo. Talvez venha a dar frutos. Se não der, mandá-la-ás cortar no próximo ano».

Os dois episódios relatados em Lc 13,1-5 são encontrados exclusivamente em Lucas. O tema central é constituído pelo convite ao povo de Israel a converter-se acolhendo a ocasião do perdão que Deus oferece àqueles que aderem ao Evangelho. Os dois episódios tristes narrados no início do capítulo (v.1-5), que servem como uma introdução à parábola a seguir (v. 6-9), formam uma unidade literária de caráter apotegmático, escrita de forma simétrica: a primeira parte (v. 2-3) corresponde à segunda (v. 4-5); ambas incluem um logion quase idêntico de Jesus (v. 3-5).

Há uma ligação lógica entre as duas perícopes (v.1-5. 6-9), que ilustram os dois elementos essenciais da conversão: romper com o pecado, dar frutos. Através da boca de João Batista, Lc havia sublinhado como a conversão deve ser seguida pelos frutos (3,8.10ss.). A novidade do evangelho emerge nos v.8-9 da parábola, onde Jesus destaca a paciência do dono e a iniciativa preveniente do agricultor, para aludir à misericórdia de Deus, que dá salvação por meio de sua missão.

Lc apresenta Jesus reagindo à notícia das mortes na cidade no clássico estilo profético: os desastres são apresentados como exemplos de alerta para seus ouvintes. “Por terem sofrido tal sorte”: o “por” traduz uma expressão sugerida por hoti (“porque eles têm imediatamente esse destino”). Na piedade popular (com base em promessas deuteronômicas, cf. Dt 28-30) os desastres foram interpretados como uma punição pelos pecados (cf. Jó 4,17; Ez 18,26) e essa convicção se reflete em Jo 9,2-3, bem como em algumas das curas descritas por Lc (p.ex. 5,20-24). Jesus não contesta a equação pecado-punição, mas apenas se pergunta se os pecados deles foram piores do que os dos outros. As pessoas que morreram não mereciam morrer mais do que os outros. De uma morte repentina e violenta não se pode inferir a gravidade do pecado. Na verdade, o próprio Jesus irá encontrar uma morte que terá toda a aparência de um castigo pelos pecados. Mas o que o Messias quer dizer é que a própria morte, com o julgamento concomitante de Deus, está sempre muito perto. Isso pode acontecer enquanto alguém está realizando um sacrifício ritual. Isso pode acontecer enquanto a pessoa está passando por baixo de uma torre. E quando chega tão de repente, não há mais tempo para se converter. A conversão a que chama Jesus não consiste em apenas evitar o pecado, mas é uma aceitação da visita de Deus na proclamação de seu reino.

Para o/a leitor/a, porém, a notícia dessas mortes serve para lembrá-lo/a de que o próprio Senhor está inexoravelmente se dirigindo para a cidade em que essas terríveis coisas podem acontecer facilmente.

Particularmente interessante é o uso que Lc faz da tradição da figueira (13,6-9). Mateus e Marcos descrevem Jesus encontrando uma árvore de figos que não dá fruto. Mas em Lc este encontro é uma parábola que cumpre claramente a função de interpretar esta parte de sua história. A árvore não foi cortada sumariamente. Ele ganha mais um ano, apesar de já ter tido tempo de dar frutos. O encorajamento para os ouvintes de Jesus é que o Messias ainda está a caminho da cidade; há ainda há tempo para dar frutos a ele. A ressalva é que, se não o fizerem, eles serão certamente cortados. Com esta parábola, a necessidade urgente de conversão é reafirmada.

A figueira estéril simboliza a falta de frutos por parte do povo judeu. Há ameaça de condenação escatológica, isto é, de exclusão do reino, se ele não se apressar em se converter. No entanto, o adiamento do corte da planta indica que a resipiscência ainda é possível. No contexto de Mt e Mc, o veredicto divino já foi pronunciado e é definitivo. De acordo com Lc, no entanto, Jesus com sua atividade ministerial concedeu ao povo de Israel uma última oportunidade de penitência e conversão. Era, no entanto, essencial aproveitar o momento certo (kairós), constituído da sua presença e pregação.

Jesus toma o exemplo de dois eventos trágicos para reiterar a urgência da decisão pela conversão. Segundo a tradicional tese da retribuição do pecado com um castigo, os ouvintes de Jesus viam nestes eventos a punição divina sobre os pecadores e o fato de alguns serem poupados os tranquilizava e confirmava sobre sua justiça. Jesus rechaça esta visão simplista e admoesta todos ao arrependimento das próprias culpas, de outra forma o juízo divino será inexorável. Na mesma linha, deve ser lida a parábola da figueira estéril.

Subsídio elaborado pelo grupo de biblistas da Escola Superior de Teologia e Espiritualidade Franciscana – ESTEF
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Depois dos dois primeiros domingos da Quaresma, que sempre fazem memória das tentações de Jesus no deserto e da sua transfiguração na montanha, a Igreja nos leva a percorrer um itinerário diferente em cada ciclo. Neste ano (ciclo C), seguindo o Evangelho segundo Lucas, o tema dominante nos trechos do Evangelho é o da misericórdia-conversão, caminho a ser renovado especialmente no tempo de preparação para a Páscoa.

Essa página contém duas mensagens: a primeira sobre a conversão, a segunda sobre a misericórdia de Deus. Os ouvintes de Jesus receberam uma notícia sobre um massacre ocorrido na Galileia: enquanto eram oferecidos sacrifícios para pedir ajuda e proteção a Deus, a polícia do governador Pilatos cometera uma chacina, misturando o sangue das vítimas oferecidas com o dos oferentes. Os presentes querem que Jesus se expresse sobre a opressiva e persecutória dominação romana, sobre a situação daqueles galileus talvez revolucionários, sobre a culpa daqueles seus concidadãos que haviam sido massacrados tragicamente. A mentalidade corrente, de fato, considerava toda desgraça ocorrida como castigo por uma culpa cometida.

Mas Jesus, que faz um juízo negativo sobre os dominadores deste mundo – que oprimem, dominam e se fazem chamar de benfeitores (cf. Lc 22,25 e par.) – responde envolvendo os ouvintes em outro nível, indicando como decisiva não a morte física, mas sim a hora escatológica.

De fato, ele diz: “Vós pensais que esses galileus eram mais pecadores do que todos os outros galileus, por terem sofrido tal coisa? Eu vos digo que não. Mas se vós não vos converterdes, ireis morrer todos do mesmo modo”.

Ele responde no nível da fé e do conhecimento de Deus. É como se dissesse: “Vós pensais que o pecado cometido pelo homem desencadeia automaticamente o castigo por parte de Deus, mas não é assim. Desse modo, dais a Deus um rosto perverso!”.

De fato, Jesus sabe que todo ser humano é habitado profundamente por um senso de culpa ancestral, que emerge prepotentemente todas as vezes que ocorre uma desgraça ou aparece a força do mal. Quando uma doença vem ao nosso encontro, quando um fato doloroso nos ocorre, imediatamente nos fazemos a pergunta: “Mas o que eu fiz de errado para merecer isso?”. Está enraizada em nós a dinâmica bem expressada pelo título do célebre romance de Fiódor Dostoévski, “Crime e castigo”: onde há crime e pecado, deve chegar a punição e a pena, pensamos nós…

Jesus quer destruir essa imagem do Deus que castiga, tão cara aos homens religiosos de todos os tempos, em Israel assim como na Igreja. Para fazer isso, ele mesmo menciona outro fato ocorrido, que não se devia à violência e à responsabilidade humana, mas que ocorreu por acaso, e o acompanha com o mesmo comentário: “E aqueles dezoito que morreram, quando a torre de Siloé caiu sobre eles? Pensais que eram mais culpados do que todos os outros moradores de Jerusalém? Eu vos digo que não. Mas, se não vos converterdes, ireis morrer todos do mesmo modo”.

Qual é, portanto, o caminho indicado por Jesus? Acima de tudo, ele nos ensina a ter um olhar diferente sobre a vida: toda vida é precária, é contraditada pela violência, pelo mal, pela morte. Por trás desses eventos, não devemos ver Deus como castigador e juiz – porque Deus poderá, eventualmente, fazer isso apenas no juízo final, quando tivermos passado pela morte –, mas sim discernir as nossas fragilidades, os nossos erros inevitáveis, a precariedade da vida.

Ninguém é tão pecador a ponto de merecer tais desgraças enviadas por Deus, que não é um espião à espera de ver o nosso pecado para nos castigar! Porém, entre pecado cometido e responsabilidade na culpa, existe uma relação que se manifestará no juízo final.

Aqueles assassinatos e aquelas mortes são, no entanto, um sinal de outra morte possível, que aguarda aqueles que não se convertem, porque quem continua fazendo o mal caminha por uma estrada mortífera e, consequentemente, obtém sozinho o mal que já encontrará aqui na terra e, depois, no juízo último de Deus. Além da morte biológica do corpo, que sempre pode nos surpreender, há outra perdição eterna, provocada pelo mal que escolhemos fazer na nossa vida.

Jesus, como profeta, não fornece, portanto, uma explicação teológica para o mal, mas convida à conversão. Não nos esqueçamos dos significados dessa palavra. De acordo com o Antigo Testamento, converter-se (shuv/teshuvah) significa “retornar”, isto é, voltar ao Senhor, retornar à lei rompida, para renovar a aliança com Deus. O caminho exigido diz respeito à mente e ao agir, e se manifesta também como arrependimento/penitência no tempo presente, último espaço antes do juízo.

Por isso, Jesus pregou: “Convertei-vos e crede no Evangelho” (Mc 1,15; cf. Mt 4,17), ou seja, “convertei-vos crendo e, crendo, convertei-vos”. Jesus é um profeta e, como tal, sabe que os humanos são pecadores e cometem o mal; por isso, pede-lhes que façam a sua adesão à boa notícia do Evangelho e acolham a misericórdia de Deus que vai ao seu encontro, oferecendo o perdão.

E, para que seus ouvintes compreendam a novidade trazida pelo Evangelho, Jesus lhes conta uma belíssima parábola. Um homem plantou com esforço uma figueira na própria vinha e, com muita confiança, todos os verões, vai buscar os seus frutos, mas não os encontra, porque essa árvore parece estéril. Impulsionado por essa decepção que se repetiu por nada menos do que três anos, ele pensa, portanto, em cortar a figueira, para plantar outra. Então, chama o agricultor que está na vinha e lhe expressa a sua frustração, intimando-lhe a cortar a árvore: por que deve explorar inutilmente o solo e roubar o alimento de outras plantas?

Todos nós compreendemos essa decisão do dono da vinha, inspirada no nosso conceito de justiça retributiva e meritocrática: não se paga a quem não dá fruto, enquanto os outros são pagos proporcionalmente ao fruto que cada um dá!

Mas o agricultor, que trabalha naquela terra, ama aquilo que plantou, capinou, regou e fertilizou. O vinhateiro, como se sabe, ama a vinha como uma esposa; por isso ousa interceder junto ao dono: “Senhor (Kýrie), deixa a figueira ainda este ano. Vou cavar em volta dela e colocar adubo. Pode ser que venha a dar fruto. Se não der, então tu a cortarás!”.

É extraordinário o amor do vinhateiro pela figueira: ele tem paciência, sabe esperar, dedica-lhe o seu tempo e o seu trabalho. Promete ao dono que vai tomar um cuidado particular dessa árvore infeliz; em todo o caso, não vai cortá-la, mas vai deixar que o dono a corte, se quiser: “Tu a cortarás, não eu!”. Esse “tu a cortarás” é mais uma intercessão, que equivale a dizer: “Eu estou pronto para esperar de novo e de novo até que ela dê frutos”.

Aqui, estão frente a frente a justiça humana retributiva e a justiça de Deus, que não só contém em si a misericórdia, mas é sempre misericórdia, paciência, espera, sentir grande (makrothymía). O agricultor concede a confiança, sabe esperar os tempos dos outros.

Esse agricultor é Jesus, que veio à vinha (cf. Lc 20,13 e par.) de Israel capinada, liberta das pedras, plantada por Deus como videira excelente: “E Deus esperou que produzisse uvas” (Is 5,2)…

Sim, o Filho de Deus veio à vinha, fez-se vinhateiro entre os outros vinhateiros, amou verdadeiramente a vinha e cuidou dela, elevando intercessões por ela em todas as situações, colocando-se entre a vinha-Israel e o Deus vivo, dando um passo comprometendo a si mesmo no cuidado da vinha, aumentando o seu trabalho e o seu esforço por amor à vinha, fazendo todo o possível para que dê fruto e viva.

É estando “in medio vineae”, no meio da vinha, que ele diz a Deus: “Deixa-a, deixa-a mais um pouco, espere pelos seus frutos; eu, enquanto isso, assumo o seu cuidado, que é responsabilidade!”. Assim, a vinha-Israel e a vinha-Igreja, às vezes atingidas pela esterilidade, são conservadas até mesmo quando não dão os frutos esperados por Deus, porque Jesus, o Messias, é o vinhateiro em seu meio (cf. Jo 15,1-8), é o seu esposo (cf. Lc 5,34-35 e par.) e sabe esperar com aquela expectativa que é a “paciência de Cristo” (2Ts 3,5).

João Batista havia pregado: “O machado já está posto na raiz das árvores. E toda árvore que não der bom fruto, será cortada e jogada no fogo” (Lc 3,9; Mt 3,10). Isso acontecerá no fim dos tempos, no dia do juízo, mas agora, enquanto isso, Jesus continua dizendo a Deus: “Tenha paciência, tenha misericórdia, espere ainda para arrancar a figueira. Eu vou trabalhar e farei todo o possível para que dê frutos”.

Mas atenção: esse tempo de espera termina para cada um de nós com a morte.

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Existe uma forma diferente de encarar as desgraças? Pode ser um convite à conversão do coração? Vítimas nas Torres Gémeas, terramotos, tsunamis, ciclones, mais um acidente sábado à noite, Auschwitz e Hiroshima… E todas as vítimas de atentados, massacres, acidentes, catástrofes, violência, exploração, cancros, epidemias, sida… De quem é a culpa destes males? Deus tem a ver com isso? Que pensa Ele disso? Como interpreta Jesus acontecimentos do género? São algumas das muitas perguntas que ocorrem perante males como estes. Também Jesus está atento aos factos e informado sobre os acontecimentos do dia (Evangelho): reflecte sobre eles, julga-os com critérios próprios, não segundo a mentalidade corrente, faz sobre eles uma análise crítica, comenta-os de uma forma que hoje diríamos politicamente incorrecta, incómoda, desconcertante.

Alguns queriam envolver Jesus numa crítica pública a Pilatos por um acto sem dúvida sanguinário e sacrílego (v. 1). A lição que Jesus tira daquele acontecimento, como também da morte de 18 pessoas devido à queda da torre de Siloé, vai muito para além da interpretação comum da maioria, para ver aí o convite de Deus a uma mudança de vida, para não perecer todos do mesmo modo (v. 3.5). A tentação era dúplice: no caso de Pilatos, pensar que bastaria revoltar-se e suplantar o procurador romano; no caso das vítimas da torre, pensar de imediato num castigo devido a um pecado, ou em acção de agentes externos (Deus, incluído). É a reacção mais frequente e mais cómoda: apontar o dedo a outros, procurar um culpável externo, pensar que o mal está nas coisas fora de nós, relacionar doenças ou desgraças a culpas cometidas ou a um castigo divino… São atitudes típicas da mentalidade pagã, que os missionários encontram frequentemente em ambientes não cristãos, mas também em cristãos não totalmente convertidos.

Tal mentalidade, por um lado, impede de chegar às verdadeiras causas dos problemas que nos acontecem e leva-nos ao fatalismo e à passividade; e, por outro, induz-nos à falsa ideia de um Deus castigador e intervencionista. Jesus liberta-nos dessa mentalidade; Ele vai à raiz dos problemas: convida à conversão, a mudar o coração para que as coisas melhorem. As coisas correrão melhor se as pessoas mudarem desde dentro; só pela mudança do coração é que haverá um melhoramento das estruturas humanas, religiosas, socio-políticas. É esta a notícia boa e nova, o Evangelho que transforma a mentalidade, o coração, a vida. Aquele comentário de Jesus sobre os acontecimentos de noticiário não é uma evasão, mas uma leitura mais profunda. O Evangelho não passa ao lado da história, não se limita a tocá-la ao de leve, mas entra dentro dos acontecimentos, chega à consciência das pessoas: é aqui que Deus constrói o seu Reino de amor e de liberdade. «O Reino de Deus não é algo de paralelo à história, mas interpela-a e interpreta-a. Os acontecimentos da nossa vida permitir-nos-ão compreender melhor o alcance da mensagem» (Gustavo Gutiérrez). Tocamos aqui a relação, sempre misteriosa, entre a Providência divina e a autonomia da história com os seus acontecimentos, que não são, por si mesmos, portadores de castigo ou de prémio. Pelo contrário, o cristão, com discernimento iluminado pela fé, sabe ler neles uma mensagem, um convite à conversão, uma oportunidade de arrependimento, o sentido da existência humana…

Perante acontecimentos dolorosos e atrozes, ocorre a pergunta: onde estava Deus com a sua omnipotência? Mas corre-se o risco de esquecer os amplos espaços de liberdade e de responsabilidade humana que Deus confia ao homem. Se o homem não muda, se não se converte em construtor de aliança e de liberdade, esta terra desabará porque fundada sobre a areia da violência e da injustiça. «Se não vos converterdes, morrereis todos do mesmo modo» (v. 3.5). Por isso Deus usa connosco de misericórdia e paciência: oferece-nos o tempo como realidade na qual se concretiza a salvação. Melhor, concede-nos um tempo suplementar, «ainda este ano», para dar fruto (v. 7-9). No homem que quer cortar a árvore (v. 7) podemos ver a nossa ideia falsa de um Deus castigador, duro, impaciente. Ao contrário, Ele identifica-se com o agricultor que poda e cultiva as videiras para dêem mais fruto (cf. Jo 15,1-2); Ele é o vinhateiro, que espera com paciência, disposto a fazer intervenções de tratamento e manutenção (cava e aduba: v. 8). Jesus vai ainda mais longe: é o novo grão de trigo que cai e morre nos sulcos da humanidade para produzir muito fruto (Jo 12,24).

Que a experiência do povo de Israel, aconselha Paulo (II leitura), sirva de exemplo e advertência para nós (v. 6.11): apesar de todos terem sido testemunhas e participantes de inúmeras obras de Deus a seu favor, muitos não corresponderam às expectativas de Deus e perderam-se (v. 5). A advertência é clara: ninguém se leve de ilusões por presumíveis méritos, mas viva humildemente em coerência (v. 12). Sempre com a confiança posta em Deus, amante e libertador do seu povo. Foi assim que Deus se auto-revelou a Moisés na sarça que ardia sem se consumir (I leitura): Deus da vida, Deus dos antepassados (v. 6), Deus que vê a situação miserável do seu povo, houve o seu clamor, conhece as suas angústias, aproxima-se para o libertar (v. 7-8). Ele é Aquele que é (v. 14), Deus presente sempre, por toda a parte, para todos. Emanuel. Uma presença criadora e libertadora. O empenho evangelizador dos grandes missionários nasce sempre, como para Moisés (v. 4-5), de uma forte experiência de Deus e do envolvimento pessoal no sofrimento dos outros: tal foi o caminho de Francisco Xavier, Pedro Chanel, Daniel Comboni, Francisca Xavier Cabrini, Teresa de Calcutá…

Queridos irmãs e irmãos,
O primeiro anúncio desta Palavra é um anúncio feliz, é um anúncio de que Deus não é indiferente à nossa condição. Deus não olha de fora, de modo neutral, para a história dos homens. O nosso Deus é um Deus que, no amor e na misericórdia, se compromete. É um Deus que toma a iniciativa de manifestar o Seu amor e de transformar o inaceitável da história numa história nova, numa história aberta, numa história onde a vida é verdadeiramente possível.

Deus toma a iniciativa nos primórdios da Revelação de falar a Moisés e apresentar-Se como: “Eu Sou Aquele que é para vós, para vós.” Deus não é apenas um Deus perdido nos confins da sua divindade mas Deus é um Deus que Se derrama em amor e em misericórdia, em solicitude, em cuidado para cada um de nós.

E aqui cada um de nós, queridos irmãs e irmãos, tem de saber no fundo do seu coração que pode confiar em Deus. Cada um de nós pode confiar em Deus. Deus é um Deus credível, é um Deus no qual cada um de nós pode confiar inteiramente porque o Seu amor é um amor incondicional. É Ele quem toma a iniciativa de nos amar e amar-nos quando mais nós precisamos, quando mais nós precisávamos desse amor. Estávamos no Egito, eramos escravos, eramos perseguidos, estávamos abatidos, oprimidos e Deus vem ao nosso encontro.

Então, não há limite, não há separação, não há momento nenhum na nossa vida no qual o amor de Deus e a Sua misericórdia não se possam manifestar. Não há obstáculos para o amor de Deus, Ele pode amar-nos sempre, e pode amar cada uma das Suas criaturas sempre, em todo o tempo. Esta é a mensagem libertadora dirigida ao nosso coração: nós não estamos sós, o nosso Deus não é um Deus que não vê, não é um Deus que assiste de longe, não é um Deus impávido. É um Deus que vê, é um Deus que ouve, que escuta o nosso sofrimento, a nossa miséria e vem ao nosso encontro.

Por isso, cada um de nós se sinta verdadeiramente envolvido, tocado, mergulhado no mistério da misericórdia de Deus. A nossa vida não está sob o signo da fatalidade, a nossa vida está sob a luz de uma bênção, sob a luz de uma promessa. Por isso, cada um de nós é chamado a confiar, a confiar. Confiemos, confiemos neste amor que Deus nos oferece, confiemos naquilo que Deus pode realizar em nós. Por maior que seja a nossa dificuldade, o emaranhado da nossa vida, o nó, a fragilidade, Deus pode, Deus pode. Confiemos, acreditemos nesta misericórdia, nesta mão estendida que Deus lança à vida de cada um de nós. Esta é a palavra mais importante.

Nós hoje ouvimos hoje o salmo 102: “Bendiz, ó minha alma o Senhor e não esqueças nunca os seus benefícios porque Ele perdoa os teus pecados e coroa-te de graça e misericórdia.” No fundo, o salmo 102 lembra-nos que o caminho do Povo de Deus ao longo da história é o caminho de uma memória sempre presente do amor de Deus e da sua misericórdia. A nossa biografia, a nossa autobiografia crente, o património de vida que construímos juntos é um património que pode atestar e documentar como Deus é misericordioso para nós.

Queridos irmãos, nesta Quaresma sintamo-nos apóstolos da misericórdia de Deus, chamados a ser misericordiosos. Cada um de nós tem de ser testemunha da misericórdia, aprendermos a arte da misericórdia que é uma arte de reconciliar, de restaurar, de abrir portas fechadas, de quebrar isolamentos, de testemunhar que é possível, de acordar a esperança, de não apagar a pequenina chama entre as cinzas, mas pelo contrário fazer tudo para que aquela chama não morra. Que cada um de nós se sinta um enviado da misericórdia na sua vida, no seu contexto familiar, no seu mundo de trabalho, com os seus amigos, com os próximos e os distantes, com aqueles com quem estamos bem e com aqueles com quem temos problemas, com quem temos conflitos. Podermos testemunhar neste  tempo de Quaresma que é um tempo de intensificação espiritual, sermos apóstolos da misericórdia: vermos, ouvirmos.

A Sophia de Mello Breyner, sem dúvida inspirada nesta teologia, depois escreveu: ”Vemos, ouvimos e lemos, não podemos ignorar.” A misericórdia é esta impossibilidade de ignorar o sofrimento dos outros. Não ignoramos e não julgamos, não julgamos. O Evangelho de hoje, neste capítulo XIII de S. Lucas é muito nessa linha. Nós não podemos julgar ninguém, não podemos julgar, só nos podemos compadecer, sabemos lá, sabemos lá. Às vezes ouvimos falar de coisas e é tão fácil julgar, é mais difícil colocar-nos no lugar do outro, na pele do outro.

Isso acontece muito, por exemplo, quando visitamos as prisões ou quando visitamos pessoas em situações de grande miséria, de grande sofrimento. É uma lição de humildade porque com muita facilidade a gente percebe que podia estar naquele lugar. Nós podíamos ser aquela pessoa, naquela situação. Só não somos nós que estamos ali porque fomos muito poupados, porque fomos muito protegidos, porque tivemos muitas graças, porque nos encontramos com as pessoas certas, porque fomos embalados por uma mão protetora. Porque senão, todos somos feitos da mesma matéria, da mesma massa, passamos pelas mesmas tentações. Às vezes colocamo-nos numa posição de superioridade mas é só porque não estamos a ver bem, não estamos a ver bem. Porque quando olhamos bem para aquilo que somos, com verdade, nós percebemos que somos quem somos apenas por graça, apenas por misericórdia, apenas porque fomos amparados. E isso aumenta a nossa responsabilidade e é disso que Jesus também fala no Evangelho de hoje. Sentirmo-nos responsáveis.

Mas responsáveis no melhor dos sentidos, responsáveis no sentido de comprometidos com uma missão libertadora, comprometidos com uma missão messiânica, comprometidos com uma tarefa transformadora da realidade. Não é para nos culparmos. Aquela frase do Dostoievski, “Nós somos responsáveis por tudo perante todos”, que é uma frase cristianíssima, que é uma frase evangélica, mas não é uma frase para nos esmagar com a culpa: “Ah, eu sou responsável, eu merecia, eu não tenho, eu merecia um castigo e fui poupado.” Não, isso não é evangélico, isso não é cristão, são as nossas culpas, é o labirinto do nosso interior que também precisamos arrumar interiormente.

A responsabilidade tem de ser não vivida como culpa mas vivida como missão, vivida como envio. Significa: agora, torna à tua volta o mundo melhor, enche-o de pequenos gestos, acende pequenas luzes, modifica, altera, renova, faz o que está ao teu alcance em todos os dias. É esta mobilização ativa para o bem que a Quaresma pede a cada um de nós em vista da Páscoa. É este rejuvenescimento da alma que a responsabilidade pelos outros, pelo mundo, nos dá. E não ficarmos esmagados por uma culpa ou por um sentido de responsabilidade que nos paralisa, que nos imobiliza completamente e nos prende as mãos e os pés e as palavras e os ouvidos e o coração para nos colocarmos como cuidadores, como servidores da Humanidade ferida.

Aquela palavra de Paulo, “Quem está de pé esteja atento para não cair”, significa: vigiemos sobre nós próprios, não nos fechemos em nós, no nosso conforto, no nosso egoísmo, nos nossos problemas, nos nossos: ‘Eu tenho isto, eu tenho aquilo’, nas nossas dores: ‘doí-me aqui, doí-me ali’ e de repente nós perdemos a capacidade de amar.

Eu lembro-me da pedagogia do Padre Américo. Ele fundou uma instituição chamado “Calvário” precisamente para doentes em estado muito avançado, pessoas com grandes problemas de saúde. Mas ao lado do “Calvário” ele colocava uma “Casa do Gaiato”. Quer dizer, ao lado das pessoas que estão já com muitas limitações, muitos sofrimentos, colocava crianças. No fundo para que cada um se sentisse responsável pelos outros e pudesse sair um bocadinho de si próprio. Sair um bocadinho de si próprio, deixar de pensar no que dói e entusiasmar-se pela vida, pelo cuidado. Porque no fundo o grande milagre é esse até ao fim, o grande milagre é a possibilidade de amarmos.

Porque a nossa fragilidade vai acompanhar-nos sempre. “Ah, eu tenho um feitio muito mau.” Vais corrigi-lo, vais altera-lo mas se calhar tu vais ser sempre uma pessoa com um feitio um bocadinho difícil. Mas não desistas é de, com o feitio que tu tens, fazer outras coisas, fazer o milagre do amor. Esforça-te! “Ah, eu falo muito das minhas doenças.” Vais continuar a falar disso mas esforça-te um bocadinho por ouvir das doenças dos outros calado, sem comentar: “Eu também tenho, também me dói.” Não, ouve calado. Ouve o sofrimento dos outros, as doenças dos outros. E no fundo, é um método, é um método. Quer dizer, a nossa vulnerabilidade vai acompanhar-nos sempre e nós também se somos água não nos vamos tornar azeite, sejamos realistas. Mas dentro do realismo não desistamos de ir ao encontro dos outros, do milagre do amor, do milagre do serviço, do colocar os outros em primeiro lugar. E este esforço transforma-nos, coloca luz dentro de nós.

“Bebamos – como diz S. Paulo- do rochedo que é Cristo.” Bebamos dessa nascente. O tempo da Quaresma, queridos irmãs e irmãos, é para colocarmos os olhos em Jesus. Que Ele seja para cada um de nós o modelo. Isso implica também que cada um de nós se coloque perante Ele. É muito importante que o tempo da Quaresma seja um tempo de oração, que cada um de nós, sozinho, olhe para Ele. E Ele fala a cada um de nós, Ele diz coisas concretas à nossa vida. Cada um de nós se coloque perante Ele, perante os Seus braços abertos capazes de acolher por inteiro a nossa vida, capazes de nos abraçar e capazes de reprogramar a nossa vida, os nossos sentimentos, as nossas prioridades, a nossa agenda. Isto é quaresma, quaresma é dar-se que fazer, quaresma é desinstalação, quaresma é renovação.

“É possível renascer” começamos nós por cantar. Seja este um tempo mobilizado, um tempo para sentir que temos uma tarefa por fazer e essa primeira tarefa é o amor, e a segunda tarefa é o amor e a última tarefa ainda é o amor.

http://www.capeladorato.org 

Apesar do livro de Jó e de várias outras passagens da Bíblia, os hebreus ligavam facilmente o mal que nos aflige ao pecado. Quando se é testemunha de uma catástrofe, é reconfortante poder dizer das vítimas que elas não procuraram aquilo. A imagem de um Deus que pune não desapareceu totalmente de nossas mentalidades, e ainda se escuta pais que dizem a um filho culpado por alguma bobagem: “Deus castiga”. Nada disso! Deus não pune nem provoca de jeito nenhum o mal que nos aflige.

Gênesis 1 diz que, no final da criação, “Deus viu que era bom”. Mas, sempre no mesmo capítulo, lemos que este universo foi confiado ao homem para que ele o administrasse e o humanizasse. Ora, não poderia o próprio Deus humanizá-lo desde o início? Não, porque assim não teríamos sido feitos à sua imagem e semelhança. Para isso é necessário que também o ser humano seja criador.

Um detalhe, porém: para sermos imagem de Deus temos de fazer coisas boas sim, mas sempre livremente. Não poderíamos ser forçados, estar condenados a «fazer o bem». Foi Pilatos e não Deus, quem escolheu o mal e a morte, fazendo com que os galileus fossem massacrados enquanto ofereciam um sacrifício. É o seu pecado que está na origem desta tragédia e não o das vítimas. A vontade de Deus é fazer viver, não fazer morrer. Refratários à verdade que proclama estar tudo no mundo submetido ao homem, ainda há quem se pergunte por que Deus “permite” isto ou aquilo…

Ora, Deus não permite nada, em absoluto; não permite nem proíbe. Deus simplesmente nos prescreve o amor, amor pelo qual chegaremos à sua semelhança. A justiça de Deus não é a que pensamos. Para nos justificar, foi preciso que um justo desse sua vida e, assim, sofresse a mesma sorte do culpado. Um excesso de injustiça que o Filho, imagem perfeita do Pai, iria subscrever: Deus não quis arrolar-Se entre os nossos assassinos, mas sim entre as suas vítimas.

Homens em conflito

Não existem somente os males pelos quais somos responsáveis. Também existem terremotos, inundações, acidentes… Hoje se busca sempre alguma falha humana na origem dos sinistros. Mas nos encontramos com frequência diante do imprevisível e da impossibilidade de designar os responsáveis. E, então, Deus é o responsável? A Bíblia vê as coisas de outro modo. No capítulo 3 do Gênesis, Deus constata que o pecado do homem, a sua vontade de decidir por si mesmo o que é bom e o que é mau, colocou-o num conflito multiforme: conflito entre o homem e a mulher (3,16), conflito dos homens com a natureza (3,17-19) e conflito dos homens entre si (4,9). A Bíblia toda está cheia dessas diversas oposições, até o dia em que o Mestre, na Cruz, colocou-se na posição de escravo.

Então, agora sim, Paulo vai poder escrever que (do ponto de vista do estatuto social) não há mais nem homem nem mulher, nem escravo nem homem livre, nem judeu nem pagão… Agora há somente o Cristo, que é tudo em todos. Temos aí então outro conflito mais fundamental; aquele que Gênesis 3 simboliza pela imagem da hostilidade entre a descendência da mulher e a da serpente, figura do mal. Esta descendência, no horizonte, é o Cristo, o “Filho do homem”. Ele se fará serpente (João 3,14) para que o mal do homem seja crucificado.

A injustiça de Deus

Mas o que quer Jesus nos fazer compreender quando diz: “Se não vos converterdes, ireis morrer todos do mesmo modo”? Não voltamos aqui, assim, à ideia da punição divina? Absolutamente! Converter-nos significa: ir em direção á nossa verdade de homens e mulheres, humanizar-nos.

Fora isso, não há para nós outra opção que não seja o nada. Ou somos imagem e semelhança de Deus ou não somos nada, ou seja, destinados à morte. Somente o amor, pelo qual nos assemelhamos a Deus, pode nos fazer superar a morte. Ao amor, portanto, é que temos de nos converter, a este amor que nos faz superar as divisões e os conflitos. Foi este amor que conduziu o Cristo a submeter-se à morte que nos espera a todos nós, solidários que somos, de diversas maneiras, do mal -do anti-amor- que envenena o mundo.

Eis que ele, contudo, é o único justo, o único não destinado à morte. O único que mantém perfeito acordo com a natureza e com os seus semelhantes (é este um dos sentidos das curas e de outros “sinais”). Por ele, crucificado, fomos postos sob o regime da injustiça de Deus, injustiça que paga a mesma quantia ao operário da última hora e ao que trabalhou desde manhãzinha. Segundo a lógica da justiça, deveríamos todos “morrer do mesmo modo”. Mas, no caminho da nossa morte, encontramos o Cristo crucificado. Ele venceu a morte e, por ter-se feito solidário conosco em nosso destino de pecadores, somos solidários com Ele em sua ressurreição.

Da parte do homem, é impossível entrar no reino de Deus. Mas o que é impossível ao homem é possível a Deus (Lucas 18,27). A paciência do vinhateiro para com o sarmento estéril é inesgotável.

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