II Domingo da Quaresma (ciclo C)
Lucas 9,28-36


Estrelas

Referências Bíblicas

  • 1ª Leitura – Gn 15,5-12 17-18 – Deus fez Aliança com Abraão homem de fé.
  • Salmo: 26(27) – R/ O Senhor é minha luz e salvação.
  • 2ª leitura: «Ele transformará o nosso corpo humilhado e o tornará semelhante ao seu corpo glorioso» (Filipenses 3,17-4,1)
  • Evangelho: «Enquanto rezava, seu rosto mudou de aparência e sua roupa ficou muito branca e brilhante» (Lucas 9,28-36)

Jesus em sua beleza e em sua dor
Marcel Domergue, s.j.

A luz e a obscuridade

Misteriosa, a oração de Jesus! Pois, faz-se um só com o Pai e ele mesmo é pessoa divina. Mas, nele, Deus se fez passar à natureza e à condição de um ser humano, semelhante a cada um de nós. Nele, a nossa liberdade de seres criados deve escolher fazer-se uma só com a liberdade divina. Há, por isso, um caminho a percorrer, até que retorne à glória de onde veio. Intrigados pelo tempo que passa em oração, os discípulos pedem-lhe que lhes ensine a rezar (Lucas 11). Responde dando-lhes o Pai Nosso.

Será que estas poucas frases resumem as longas orações de Jesus? Sou tentado a crer que sim, mas ainda é preciso alcançar o significado todo destas breves fórmulas. Visam ao resultado feliz das nossas existências; projetam-nos a um final glorioso de nossas trajetórias tão trabalhosas e desconcertantes. Pois eis que esta glória final se inscreve fugidiamente no semblante de Jesus, também em suas vestes e neste corpo humano em que vive para sempre. É a mais perfeita união entre o homem e Deus.

Os três discípulos o entreveem numa espécie de êxtase, do qual não podem captar imediatamente o significado, mas que os desperta e deslumbra. Pedro, esquecendo o caminho que resta por percorrer, quer instalar-se e erguer a tenda, no resplendor da luz divina. Mas a “nuvem escura”, a mesma que acompanhava os Hebreus em sua longa e dura marcha de Êxodo, é que lhe vai responder. À felicidade do versículo 33 sucede o terror do versículo 34. Vinda desta nuvem, cujas trevas contrastam com a glória da transfiguração, a voz de Deus fez-se ouvir, para glorificar Jesus. E este volta imediatamente a ser o Jesus de todo dia.

No horizonte, a Páscoa.

O rosto de Moisés, ao descer de novo a montanha, resplandecia de luz. Pois o mesmo não se deu com Jesus. A luz da transfiguração perdeu-se na nuvem e, dali em diante, ficou visível apenas para a fé na Palavra que acabara de designá-lo como Filho. Só furtivamente fora revelado como a luz do mundo, como a luz que brilha nas trevas das nossas vidas, mas que são trevas que não podem ser detidas (ver João 1,1-14). Acabamos de fazer alusão a Moisés. Justamente, ei-lo aqui na montanha, com Elias. Estes dois homens representam a Lei (Moisés) e os Profetas (Elias), ou seja, tudo o que, na Bíblia, comanda a história.

Falam com Jesus do «Êxodo que ele deveria cumprir até Jerusalém». De diversos modos, a Escritura inteira é preparação e imagem da Páscoa do Cristo. É que toda a história humana caminha para este desfecho, do qual ainda esperamos a última revelação, expressa na Bíblia pelo tema da volta de Cristo. Não esqueçamos que o relato da transfiguração está enquadrado entre os dois primeiros anúncios da Paixão e que o ponto de partida para Jerusalém e para a Páscoa é mencionado nas primeiras linhas do capítulo seguinte.

A luz que inunda Jesus na montanha é profética, com respeito à sua ressurreição. Por isso é que, sem dúvida, na versão de Mateus (17,9), Jesus diz aos três discípulos: «Não conteis a ninguém essa visão, até que o Filho do homem ressuscite dos mortos.» Em sua segunda carta (1,16-21), Pedro falará da transfiguração como do fundamento de sua fé. É que o Cristo ressuscitado não emitia nenhuma luz e ficou difícil identificá-lo: não se podia reconhecê-lo imediatamente.

Os três discípulos

Pedro, Tiago e João foram chamados juntos, quando ainda eram pescadores de peixes. Foram os três primeiros discípulos. Sem hesitação alguma, deixaram os seus barcos, as suas redes e o seu pai. Os três estão juntos na transfiguração e nós os encontraremos de novo juntos no Getsemani. Vimos que, ao serem chamados, estavam ocupados com outra coisa, enquanto toda a multidão escutava Jesus. Na transfiguração como em Getsemani, adormecem; o que é uma maneira de se ausentar. É verdade que, nos dois casos, era noite. Mas a noite não é somente uma consequência da rotação da terra.

Na Bíblia, é uma alusão às trevas que cobriam o abismo do nada antes que Deus tivesse criado a luz, separando-a das trevas, para dar lugar ao primeiro dia. O sono noturno é uma imagem da morte: noite dos sentidos, noite da inteligência, noite do espírito. Os três discípulos retiram-se da marcha da história e do itinerário da salvação da humanidade. Eles, no fundo, retornam ao nada original. Mas é aí que a luz vem visitá-los.

Em Lucas 24,9-12, a mensagem das mulheres que tiveram a coragem de ir até o túmulo que haviam encontrado aberto e vazio, é que irá despertá-los das trevas a que estavam aprisionados desde o Getsemani. O que aconteceu com estes três apóstolos é típico do que acontece com todos nós. Há momentos privilegiados em que, com frequência sem qualquer aviso prévio, vemos tudo claro. É quando a luz nos inunda! Mas, um instante depois, recaímos nas trevas da incompreensão. É então que, com os olhos fechados, temos que escolher acreditar nas palavras que ouvimos e que nos designaram este Jesus como sendo o Filho de Deus.

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Queridos irmãs e irmãos,
A história da salvação, podemos dizer, é uma história em contra círculo, completamente inesperada. Porque se cada um de nós tivesse, imaginemos, de rodar um filme, escrever uma história, preparar um argumento em que se iniciasse uma aventura, que ator é que nós íamos escolher para viver uma aventura exigente, mesmo em termos físicos, que exigisse uma liberdade de movimento, andar de um sítio para o outro, viver façanhas destemidas como aquelas que a Escritura nos conta? Certamente nós íamos escolher uma pessoa jovem, uma pessoa que não tivesse ainda grandes compromissos, pudesse ir de um sítio para o outro com a energia, com a vitalidade, com a capacidade de sonhar que nós temos aos 18 ou aos 20 anos.

Mas o que é curioso é que ator é que Deus vai escolher. Ele vai escolher não um jovem de vinte anos mas um reformado, e vai fazê-lo protagonista da Sua aventura. Um homem que já tinha a sua vida em grande medida vivida, já se tinha estabelecido de novo na terra dos seus parentes, um homem que olhava para a sua existência e dizia: “Bem, está feito, está completo, está acabado.” Ou, por ventura, até: “Eu estou acabado, vou viver tranquilamente a vida que me resta.” E é a este homem, que fazia consigo estas contas, que Deus vai dizer: “Olha, sai da tua terra, sai da tua tenda.” E mais: “Olha para as estrelas, se as puderes contar.”

Nós sabemos como a tendência (até porque a nossa coluna vai cedendo) não é olharmos para o alto, a tendência é à medida que os anos avançam começarmos a olhar para os nossos sapatos, para o chão, para o nosso umbigo. Esta capacidade de olhar para as estrelas e enamorar-se delas, e perceber que as estrelas falam connosco e dizem-nos alguma coisa do que a vida pode ser é normalmente um tempo da vida. Isso é bom para os enamorados, para quem ainda não passou por determinadas experiências, que tem uma certa naïveté, uma certa ingenuidade. Isso é bom para essa fase. Mas depois, ninguém tem mais tempo para as estrelas. E, contudo, é assim, a homens e mulheres já vividos, a homens e mulheres numa idade adulta, que nós dizíamos que já são o homem velho, já são a pessoa velha, que Deus escolhe.

Deus não desiste nunca da nossa vida. E precisamente a este reformado Deus vai dizer: “Olha, sai e olha para as estrelas e sente que a vida é promessa.” A vida não é aquilo que a gente consegue contar, a vida não é o que a gente conquistou, a vida não é o que a gente vê, o que a gente consegue administrar, gerir. A vida é mais do que isso, a vida é além, a vida está para lá, a vida é promessa, a vida é caminho. E, nesse sentido, como diz o Papa Francisco: “Nós temos de nos entender em saída.” Não podemos dizer: “Ah, já não consigo mais, já está feito.” Não, nós temos de viver superando-nos, indo além de nós. E é este o sentido profundo da quaresma. O sentido profundo da quaresma é semear, atiçar dentro de nós o fogo da inquietação, do desassossego. Cada um de nós tem de dizer no seu coração: “Não pode ser só isto, não me posso contentar com a vidinha que vivo, com aquilo que já faço, com aquilo que já tenho, há de haver mais.” E é esta capacidade deste gesto disruptivo, deste gesto que nos atira para lá de nós mesmos, que é voltar a olhar para as estrelas.

Este tempo da quaresma, queridos irmãs e irmãos, é um tempo em que nós, ousadamente, voltamos a olhar para as estrelas e a sentir a que a nossa vida está não sob o domínio de uma fatalidade: “tem de ser assim, agora é assim, não pode ser de outra forma, com realismo, com pragmatismo, eu tenho de perceber que é assim e não há mais conversa.” Não, nós temos de sentir que a nossa vida se liga a uma promessa que é maior do que nós, e que nos mobiliza e que diz ao nosso coração: “Tu és capaz, tu és possível, Deus prepara-te outra coisa, Deus pede mais de ti. Tu estás em transformação, a vida está em movimento, não estás cristalizado.” É este movimento exodal, esta saída de nós mesmos que dá a este tempo que estamos a viver um sentido pascal, um sentido verdadeiramente cristão.

Como é que isto acontece nós não sabemos. É interessante a pergunta que Abraão faz: “Senhor, mas como é que sei que vai ser assim?” Deus diz-lhe: “Olha, prepara um sacrifício.” Ele preparou os animais, mas depois vem o sono sobre ele e vem o medo, vem o terror sobre ele. E quando o fogo de Deus passou por meio dos animais, quando Deus manifestou a Sua glória, Abraão não estava preparado para isso porque a vida é mistério. Como é que Deus vai resolver a nossa vida? Como é que Ele vai manifestar a sua glória? Só Ele sabe. O que nós temos é de viver na confiança, atirar mais para longe o nosso coração.

A Carta aos Filipenses é um texto muito especial dentro da epistolografia de S. Paulo. Porque S. Paulo tinha uma relação de grande amizade com a comunidade de Filipos, possivelmente era aquela comunidade com quem Paulo criou uma relação afetiva mais forte. E Paulo está preso quando escreve esta carta aos Filipenses que hoje nós lemos. Está preso em Éfeso e escreve esta carta, com uma grande ternura, uma grande cumplicidade afetiva, em que Paulo diz aos Filipenses: “Sede meus imitadores e não vos torneis pesados a pensar apenas nas coisas terrenas. Fazendo do ventre o vosso Deus e fazendo das coisas do mundo o único sentido, o único significado, o único horizonte para interpretar a vida.”

E disse esta coisa fantástica: “A nossa cidadania está nos céus.” É interessante a palavra Políteuma, a palavra grega que podemos traduzir por cidadania. Podemos também traduzir por pátria, como hoje nós ouvimos: “A nossa pátria está nos céus.” Podemos também traduzir pela conversa que mantemos uns com os outros: “A nossa conversa não está aqui, não acaba aqui, a nossa conversa está nos céus, nós dependemos do alto.” A vida não é só isto que a gente consegue gerir e meter em sacos plásticos e nos armários, e nas horas, e na vida burocrática que todos nós temos. A vida não é só isto, é outra coisa. No fundo, aquilo que nos é pedido é a capacidade de pequenos gestos, de gestos com confiança. Ligar, ligar ao alto, dizer: “Não, não pode ficar só por aqui, temos de ligar.”

É claro que às vezes sobrevém ao nosso coração o medo e às vezes nós desconfiamos de que seja possível. É possível eu morrer para mim mesmo? Para o meu egoísmo? É possível eu sendo velho nascer de novo? É possível voltar a olhar para as estrelas? É possível o amor em mim? É possível a fé? É possível a esperança? É, é possível. E ao nosso coração vem o peso do desalento, do desânimo e até do medo de ir até ao fim. Mas a festa que hoje nós celebramos, a festa da Transfiguração, é uma festa que se celebra para curar o medo da cruz, para curar o escândalo da cruz. Quando os discípulos estavam com Jesus nesta fase e estão à beira de subir para Jerusalém e já percebem que o desfecho não vai ser como o que eles gostariam, o seu coração fica apertado e eles estão ao lado de Jesus mas já estão longe, estão a escapar, estão a fugir. E a Transfiguração é eles verem verdadeiramente Jesus, verem com um olhar espiritual, perceberem quem é Jesus e perceberem quem é que eles são à luz da pessoa de Jesus. E isso vence o medo que eles têm no seu coração.

Queridos irmãos, nós também precisamos de uma visão assim. Precisamos de olhar verdadeiramente para Jesus, colocar Nele os nossos olhos, os olhos do nosso coração. E com esse olhar, olharmos para nós próprios e dizermos: “A confiança tem de vencer o medo. O chamamento de Deus, a Sua promessa, tem de vencer a imobilidade, as nossas resistências, a nossa instalação.” Neste tempo da quaresma nós temos de nos descobrir com uma juventude de coração, uma juventude interior, e temos de trocar os nossos sapatos por sandálias, temos de trocar os nossos lugares parados, os nossos lugares “Daqui ninguém me move, daqui não saio” por um desejo de estrada, por um desejo de caminho.

Vamos tentar, vamos recomeçar, vamos acreditar na conversão, na transformação interior, nessa requalificação da nossa vida. Requalificação espiritual, ética, ontológica, viver com maior autenticidade. Isso é o grande desafio, é o desafio que o próprio Deus com a Sua força, a Sua misericórdia, sustenta em cada um de nós. Por isso, amados irmãos, confiemos no Senhor e que este tempo da quaresma seja para nós de facto um tempo em que semana a semana, dia a dia nós vamos sentindo que estamos a caminhar. E se aconteceu que fizemos belos propósitos na quarta-feira de cinzas e já nos esquecemos deles ou achamos que já não somos capazes e foi um erro sequer pensar em propósitos, vamos recomeçar hoje, vamos recomeçar agora. Que das nossas quedas, das nossas falhas, a gente possa sempre reencontrar um coração inteiro, um coração que acredita.

Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo II da Quaresma

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