6° Domingo do Tempo Comum (ciclo C)
Lucas 6,17.20-26

Naquele tempo, Jesus desceu do monte, na companhia dos apóstolos, e deteve-Se num sítio plano, com numerosos discípulos e uma grande multidão de toda a Judeia, de Jerusalém e do litoral de Tiro e Sidónia. Erguendo então os olhos para os discípulos, disse: Bem-aventurados vós, os pobres, porque é vosso o reino de Deus. Bem-aventurados vós que agora tendes fome, porque sereis saciados. Bem-aventurados vós que agora chorais, porque haveis de rir. Bem-aventurados sereis, quando os homens vos odiarem, quando vos rejeitarem e insultarem e proscreverem o vosso nome como infame, por causa do Filho do homem. Alegrai-vos e exultai nesse dia, porque é grande no céu a vossa recompensa. Era assim que os seus antepassados tratavam os profetas. Mas ai de vós, os ricos, porque já recebestes a vossa consolação. Ai de vós, que agora estais saciados, porque haveis de ter fome. Ai de vós que rides agora, porque haveis de entristecer-vos e chorar. Ai de vós quando todos os homens vos elogiarem. Era assim que os seus antepassados tratavam os falsos profetas.
Referências Bíblicas:
- 1ª leitura: «Bendito o homem que confia no Senhor» (Jeremias 17,5-8).
- Salmo: Sl. 1 – R/ É feliz quem a Deus se confia!
- 2ªleitura: «Se Cristo não ressuscitou, a vossa fé não tem nenhum valor» (1 Coríntios 15,12.16-20)
- Evangelho: Discurso inaugural de Jesus: as Bem-aventuranças (Lucas 6,17.20-26)
E JESUS DESCEU PARA O MEIO DE NÓS
António Couto
1. Conta-nos São Lucas que Jesus saiu para a MONTANHA para ORAR, e estava a noite inteira em ORAÇÃO (Lucas 6,12). Note-se que Jesus se separa para rezar. E a expressão usada indica que Jesus rezou, sem parar, a noite inteira. O Evangelho de Lucas recorda-nos que Jesus reza sempre nos momentos importantes da sua missão. Quando amanheceu, continua São Lucas, Jesus chamou os discípulos e escolheu «Doze» a quem chamou Apóstolos, seguindo-se logo a lista dos seus nomes (Lucas 6,13-16). De notar que também Mateus 10,2 e Marcos 6,30 sabem que os Doze são Apóstolos, mas apenas Lucas refere que foi o próprio Jesus a dar-lhes este nome (Lucas 6,13). Notemos ainda que o Apóstolo é o enviado autorizado, que fala em nome de quem o envia. Não está autorizado a dizer palavras suas ou a expressar a sua opinião. Fica totalmente vinculado àquele que o envia. A primeira nota que o caracteriza é a fidelidade.
2. Depois desta introdução, parece-me oportuno, pela sua importância, inserir o texto do Evangelho que hoje será proclamado (Lucas 6,17.20-26), sem o corte dos v. 18-19:
«Tendo descido com eles, ficou de pé num lugar plano, e um grupo numeroso dos seus discípulos e uma multidão numerosa do povo (laós) de toda a Judeia e de Jerusalém e do litoral de Tiro e de Sídon, que tinham vindo para o escutar e fazer-se curar das suas doenças. E aqueles que eram atormentados por espíritos impuros eram curados, e toda a multidão procurava tocá-lo, porque uma força saía dele e curava todos. E tendo levantado os seus olhos para os seus discípulos, dizia:
Felizes vós, os pobres,
porque vosso é o reino de Deus;
Felizes vós que tendes fome agora,
porque sereis saciados;
Felizes vós que chorais agora,
porque rireis;
Felizes sois vós, quando os homens vos odiarem, e quando vos expulsarem e insultarem e rejeitarem o vosso nome como mau por causa do Filho do Homem.
Mas ai de vós os ricos,
porque tendes a vossa consolação;
Ai de vós, que estais saciados agora,
porque tereis fome;
Ai de vós, que rides agora,
porque andareis aflitos e chorareis;
Ai de vós, quando todos os homens disserem bem de vós:
era assim que os seus pais tratavam os falsos profetas» (Lucas 6,17-26).
3. O Evangelho deste Domingo VI do Tempo Comum começa com esta descida para um lugar plano, que não tem de ser necessariamente a planície ao nível do mar da Galileia; pode muito bem tratar-se de um planalto acessível a uma grande multidão, doentes incluídos. Vê-se e compreende-se bem que o Discurso de Jesus é, em Lucas, mais breve e apresentado num cenário plano (Lucas 6,17-7,1), bem diferente do Sermão da Montanha de Mateus, mais longo e encenado nas alturas (Mateus 5,1-7,19). Se Lucas quer pôr Jesus em contacto com toda a gente, inclusive com os doentes, é fácil compreender que Jesus tem de descer ao nível deles, e não os pode obrigar a subir à Montanha.
4. É significativo que o evangelista descreva esta grande multidão como POVO (laós) oriundo de toda a Judeia, Jerusalém, Tiro e Sídon (Lucas 6,17), que veio para escutar Jesus e ser por Ele curado (Lucas 6,18). Ao contrário dos outros evangelistas que praticamente o ignoram, Lucas introduz este POVO (laós) profusamente no seu Evangelho. Este POVO (laós) tem conotação religiosa: é o Povo de Deus que o II Concílio do Vaticano consagrará. O que faz e define este POVO (laós) não é nenhum elemento étnico, nacionalista ou histórico, mas a eleição e a graça de Deus. Qualquer pessoa, de qualquer língua, nação, raça, cultura, que oiça a Palavra de Deus e lhe responda passa a fazer parte deste Povo. Neste sentido, esta multidão pode ter no seu seio elementos estrangeiros (Tiro e Sídon), mas não deixa, por isso, de ser um POVO (laós), o Povo de Deus. É igualmente significativo que todos tenham vindo ouvir Jesus! Aos olhos dos Apóstolos, que Jesus acabara de escolher, está ali indicado proleticamente o caminho da futura evangelização.
5. Então, Jesus, de pé, e «tendo levantado os olhos» como um profeta (em Mateus «sentou-se» como um mestre), declarou de forma direta e incisiva, em 2.ª pessoa, como fazem os profetas (Mateus usa a 3.ª pessoa, estilo sapiencial, sereno e pedagógico), bem-aventurados por Deus os POBRES, os FAMINTOS de agora, os que CHORAM agora, os REJEITADOS ou DESCARTADOS de agora. Lucas é mais radical e direto do que Mateus. Às quatro bem-aventuranças junta, em contraponto, quatro mal-aventuranças, declarando malditos por Deus os RICOS de agora, os FARTOS de agora, os que RIEM agora, os que RECEBEM APLAUSOS agora. As mal-aventuranças são introduzidas por um «Ai», fórmula técnica para introduzir anúncios de desgraça no discurso profético.
6. Lucas esclarecerá mais à frente, quando for contada a história do RICO FARTO e do POBRE LÁZARO (16,19-31), que os FARTOS não são demovidos pelos profetas nem tão-pouco por um morto que ressuscite! E esta parábola do homem Rico e do pobre Lázaro, que escutaremos no Domingo XXVI, é também o melhor comentário ao texto das bem-aventuranças e mal-aventuranças de hoje.
7. Jeremias 17,5-8 faz boa companhia ao Evangelho de hoje. O profeta expõe em discurso profético, abrindo com a clássica fórmula do mensageiro que soa: «Assim disse o Senhor», um refrão de tipo sapiencial que percorre toda a Escritura de lés a lés: «MALDITO o homem que confia no homem, afastando-se do Senhor;/ BENDITO o homem que confia no Senhor, pondo nele toda a sua confiança». O primeiro assemelha-se ao tamarisco do deserto, mirrado e amargo, que mora numa terra salitrada e estéril; o segundo é como uma árvore viçosa plantada junto da água boa.
8. A mesma temática e até as mesmas imagens vegetais enchem o Salmo Responsorial de hoje (Salmo 1): o homem que recita a instrução do Senhor dia e noite é como a ÁRVORE plantada e que dá fruto; o malvado é como a PALHA que o vento dispersa. A ÁRVORE plantada está de pé, respira o vento, como o homem, e dá fruto; a PALHA não respira o vento, mas é levada pelo vento; e não dá fruto, mas é a casca do fruto. É também fácil entender que é a mesma lição que encontramos na antítese das «bem-aventuranças / mal-aventuranças» do Evangelho de hoje.
9. A leitura semi-contínua do Apóstolo (1 Coríntios 15,12.16-20) prossegue hoje com a temática fundamental da ressurreição, tratada de forma notável em 1 Coríntios 15, cuja primeira parte foi lida no Domingo passado. Aí, Paulo expunha o acontecimento da Ressurreição de Jesus Cristo como centro da pregação apostólica e da fé das comunidades cristãs.
10. Hoje, Paulo começa por constatar que alguns membros da comunidade de Corinto não dão ouvidos aos conteúdos da pregação apostólica e negam simplesmente a ressurreição. E fazem-no em nome da mentalidade platónica, que considera a «carne» como elemento mau e desprezível, condenado à destruição, sendo a «alma» um elemento divino que, libertado da «carne», voltará a formar uma espécie de deus cósmico. Vê-se bem que segundo esta concepção errónea, a criação é má, ao contrário da declaração de Deus, que lhe apõe, por sete vezes, o carimbo de «boa» (Génesis 1). Paulo reage vigorosamente contra esta mentalidade instalada na comunidade, e prega aquilo que os Padres chamarão a «Economia da carne». «Cristo ressuscitou, primícias dos que adormeceram». Ele é, portanto, o primeiro Homem a ser ressuscitado. E se é o primeiro, então constitui certeza para os «outros» depois dele, que abre a série. Nele a morte foi vencida para todos. A esperança fundamenta-se na certeza deste Acontecimento principal da Vida do Senhor, que dá significado a todos os outros acontecimentos da sua Vida, ao inteiro Antigo Testamento, à Igreja e à vida dos homens.
11. É este acontecimento fundante que a Igreja Una e Santa, Esposa do Senhor, celebra jubilosamente Domingo após Domingo. Também hoje, portanto.
https://mesadepalavras.wordpress.com
Que felicidade? Para quando?
Marcel Domergue
A montanha
Seja em Lucas seja em Mateus, as Bem-aventuranças estão sempre ligadas à montanha. Por quê? Porque, segundo o Êxodo, Moisés recebeu a Lei na solidão da montanha. Só depois desceu à planície, para comunicá-la ao povo. Em Mateus, Jesus, vendo as multidões, subiu a montanha somente com os discípulos. Já em Lucas, pelo contrário, Jesus desceu à planície para aí encontrar a multidão. Na Bíblia, a montanha é o lugar das manifestações divinas, com certeza por causa da solidão e da proximidade do céu, símbolo da transcendência divina. Nuvens e tempestades… Lucas faz-nos compreender que, agora, esta transcendência faz-se imanência, proximidade. Em Mateus, os discípulos receberam a missão de transmitir a mensagem para o povo. Já em Lucas, mesmo que esta tenha sido endereçada diretamente aos discípulos, a mensagem foi-lhes entregue na presença da multidão. Nos dois casos, é Deus quem fala: até mesmo a palavra de Cristo só chega a nós através dos intermediários. Uma observação, contudo, se impõe: Moisés desceu da montanha empunhando uma Lei, enquanto que, com os evangelistas, esta Lei torna-se uma Boa Nova. Não se trata mais de um conjunto de exigências, mas de um dom. A recompensa que estava prometida à perfeição moral, cede lugar agora à compensação dos males todos que atingem os homens. Teria Deus mudado de ideia? Não, é claro. Mas, primeiro, era preciso que aprendêssemos que somos pecadores e que, por consequência, o amor com o qual Deus nos ama é totalmente gratuito. O «odiaram-me sem motivo» de João 15,25 provoca uma consequência: Deus que nos ama, sem ter motivo nenhum para isso.
A felicidade “agora”
Lucas insiste no «agora». Trata-se do agora, momento de provação; o fim de todos os males é para o futuro. Significa que a alegria anunciada só pode chegar a nós, «agora», através da fé e da esperança. E isto nos permite usar tudo o que temos de suportar como meio para atingir o amor, que é a única Lei que permanece. Assim podemos ser felizes mesmo quando somos atormentados pela fome e pelas lágrimas. A nossa compensação está no futuro, mas a felicidade é imediata. Só que isto não nos parece evidente. Exatamente por isso Jesus faz questão de revelá-lo, repetindo “felizes” ou “bem-aventurados” quatro vezes em Lucas e oito vezes em Mateus. Uma insistência significativa, pois é difícil fazer passar esta Boa Nova. A fé sempre exige que se vá além das aparências. Depositemos nossa fé neste que nos fala, sabendo que ela começa por reconhecer nele a Palavra de Deus. Resulta daí que nada verdadeiramente pode nos fazer mal. Paulo diz que nem a vida nem a morte podem nos separar de Cristo. Ora, fazermo-nos um só com Cristo é fazermo-nos um só com o Ressuscitado. Devemos compreender que podemos sofrer o que há de pior neste mundo sem que sejamos infelizes por causa disso. A verdadeira felicidade se confunde com a certeza de sermos amados, desejados e esperados. Ela deve se conjugar com a paciência. Nossa fé, que obviamente pode muito bem estar presente quando tudo vai bem, estará sendo verificada quando tudo vai mal. Por ela, já estamos na posse do Reino de Deus. Isto não significa que devamos nos entristecer se, no momento, nada temos de sofrer. As nossas alegrias também são imagem e antecipação do Reino, desde que não caiamos na idolatria do que elas nos proporcionam.
A Boa Nova
Jesus nos vem revelar que nem a riqueza nem o sucesso nem o poder nem a celebridade e nem mesmo a saúde podem fazer-nos entrar na Vida. Todos estes bens podem até mesmo provocar em nós comportamentos idolátricos, e devotar-lhes um culto equivale a adorar-nos a nós mesmos. Uma adoração sutil e secreta. Ela se manifesta quando frustramos outro ser humano para obter alguma vantagem, quando alteramos a qualidade da nossa relação com quem quer que seja, para dela tirarmos proveito. Esta qualidade tem o nome de amor. Ela manifesta a presença e o Reino de Deus que é Ele mesmo, amor. O que chega até ao dom da própria vida, para que o outro viva. Jesus viveu este dom, por isso pode nos falar dele. Isto explica a menção em nosso texto da perseguição aos crentes «por causa do Filho do homem». Mesmo se não fazem barulho nas mídias, estas perseguições acontecem em nossos dias. Em geral, as pessoas contentam-se com dar de ombros ao ouvirem a mensagem de Cristo. Eis que chegou o tempo do desprezo, tal como assinala a nossa leitura. Será que temos fé bastante para ficarmos felizes com isso e exultarmos de alegria (versículo 23)? Mas não devemos esquecer que estas palavras de Jesus são uma revelação: ensinam-nos algo que à primeira vista não aparece. Os que sofrem com a pobreza, que têm fome e que choram têm necessidade de alguém que lhes diga não perderem por isso as razões de ser feliz. Mas podemos acaso dizer-lhes isto sem que venhamos em sua ajuda? Jesus mesmo dirigiu-lhes estas palavras somente após ter curado as doenças daquela multidão de toda proveniência, judeus e não judeus. Sua mensagem diz respeito a todos, homens e mulheres: não se trata de nenhuma religião, qualquer que seja ela, mas da nossa adesão ao Filho do homem.
http://www.ihu.unisinos.br
A felicidade escondida nas bem-aventuranças
Adroaldo Palaoro, sj
“Ser feliz”: não há outra meta mais importante na vida de todos nós. De fato, é tão importante que se converteu em um desejo que repetimos de maneira muito frequente e, de forma especial, para as pessoas que mais amamos. Proferimos os votos de felicidade em qualquer evento, em todos os aniversários, no início de cada ano… Não podemos desprezar o excesso de nossas felicitações, por mais rotineiras que nos pareçam. Elas expressam um desejo profundo, talvez o desejo mais íntimo de nós mesmos.
“Que sejas feliz!” Que melhor sentimento que isso podemos desejar a alguém, seja ele(ela) quem for?
A proposta evangélica de felicidade tem algo a nos dizer em nosso momento atual?
A impressão que temos é que a vivência de muitos cristãos está longe de apresentar a Deus como amigo da felicidade humana, fonte de vida, alegria, saúde; na experiência de fé de muitas pessoas, o seguimento de Jesus, muitas vezes, não se associa com a ideia de “felicidade”.
Predomina, em certos ambientes ou grupos cristãos, uma doutrina dolorida e uma catequese afastada da busca humana da felicidade. O cristianismo se apresentou, durante muito tempo, como a religião da cruz, da dor, do sofrimento, da renúncia, da repressão ao prazer e à felicidade neste mundo.
Diante de tal situação, Jesus, no Evangelho de hoje, afirma categoricamente: “Felizes sois vós!”
Jesus, ao “descer à planície”, promulga seu programa “com” vida, fundado não numa ética de “deveres e obrigações”, mas numa ética de “felicidade e ventura”.
Aqui está a surpreendente novidade do projeto oferecido por Jesus. Sem sombra de dúvida, o significado das bem-aventuranças e, portanto, do programa de Jesus, é algo mais humano, mais próximo e mais ao alcance de ser entendido e vivido por qualquer pessoa de boa vontade.
O Evangelho, a “boa notícia”, é o tesouro que enche o ser humano de uma felicidade indescritível. Com efeito, a primeira característica que aparece nas bem-aventuranças é que o programa de Jesus para os seus é um “programa de felicidade”. Cada afirmação de Jesus começa com a palavra “makárioi”, “ditosos”. Essa palavra, significa, em grego, a condição de quem está livre de preocupações e atribulações cotidianas.
As bem-aventuranças substituem os mandamentos que proíbem por um anúncio que atrai para a felicidade. E a promessa de felicidade não é para depois da morte. Jesus fala da felicidade nesta vida.
Conhecemos duas listas de Bem-aventuranças: a de Lucas e a de Mateus. São bastante distintas, porque uma fala dos pobres e a outra fala dos pobres “em espírito”; uma fala de fome e outra de fome de “justiça”… Costuma-se dizer que as Bem-aventuranças de Lucas são bem-aventuranças “de situação”, e as de Mateus são “de atitude”. Ou seja, enquanto Lucas diz: os que se encontram assim, os que estão nesta situação, são bem-aventurados (os que estão chorando, os que tem fome, os que são pobres…), Mateus diz: os que reagem desta maneira diante dos que choram, dos que são pobres, dos que tem fome… são bem-aventurados. É como a atitude que se toma frente aqueles que Lucas descreveu.
Antes de proclamá-las, Jesus vive intensamente as bem-aventuranças; elas são a expressão daquilo que é mais humano no seu interior; elas são seu auto-retrato. Jesus é o bem-aventurado. Ele personaliza tais atitudes: é o pobre, aquele que se comoveu diante da dor e misérias humanas, que expressa uma fome e sede de plenitude e humanização, que é incompreendido e perseguido por causa dos seus sonhos.
O Jesus que os Evangelhos nos apresentam deixa transparecer, permanentemente, um sentimento sereno e agradecido diante da vida. Ele vive apaixonado pelo Reino do Pai; Ele é um homem aberto e próximo das pessoas, com uma enorme capacidade de relação, de maneira especial diante dos mais pobres e excluídos. Mostra uma infinita confiança nas pessoas que encontra, seja qual for sua situação existencial. Ele é o portador definitivo de boas notícias. O evangelho da salvação chega até às barreiras e fronteiras humanas. Seu tempo é tempo de alegria; é a festa das bodas. Jesus nos convida a entrar na nova vida de felicidade e fraternidade. As bem-aventuranças são o caminho da felicidade.
Jesus, ao proclamar “bem-aventurados” os pobres, os famintos, os que choram, os que são perseguidos… jamais quis sacralizar a dor humana. Ao contrário, são bem-aventurados, sim, os pobres, porque, vazios de apegos e cheios de esperança, anunciam o sonho de Deus para a humanidade, uma nova sociedade baseada na solidariedade e na partilha; são bem-aventurados, sim, os famintos, porque trazem nas entranhas a fome de liberdade e sabem que o ser humano e o mundo carregam infinitas possibilidades de crescimento; são bem-aventurados, sim, os que choram porque suas lágrimas demonstram que eles ainda não perderam a sensibilidade, que eles sentem o mundo como injusto e que, por isso, são verdadeiramente os únicos a sonharem, a buscarem e a lutarem por um mundo novo; são bem-aventurados, sim, os que são perseguidos porque seguem corajosamente a estrela do Reino e são sinal de grande transformação realizada por Deus.
As bem-aventuranças nos revelam que somos habitados por um impulso que nos torna “buscadores de felicidade”. A sociedade de consumo que invadiu tudo, realça a felicidade como a meta imediata de nossas buscas, algo ao qual temos direito e que depende de fatores externos. Esta felicidade é passageira, pois quando a alcançamos, invade de novo a insatisfação, a inquietude, o ressentimento, a inveja… e de novo empreendemos nossa busca. Assim, pois, a felicidade nos escapa quando a buscamos “fora”, como fim em si mesma, para saciar nosso ego insaciável.
A felicidade nasce dentro de nós: daquilo que sentimos, que valorizamos, que vivemos…
Por isso, as bem-aventuranças não são algo externo, mas atitudes que plenificam nossos corações.
A chave da felicidade está em permitir que se revele o sentido da luminosidade que se encontra no fundo de nosso ser. O que nos tira a energia e nos torna impotentes é afastar-nos desse princípio vital que é o Divino em cada ser.
Ser o que somos, em serenidade e profundo sentido. A felicidade, tal como a verdade e a beleza, ao se revelar a nós, desata a potencialidade daquilo que somos e de tudo o que é.
Nesse sentido, felicidade pode ser entendida como um “estado de espírito”; felicidade é viver sem chegada, sem partida; é experimentar uma sensação de renascimento de satisfação interior… ou sentir des-pertar em si um potencial de bondade, de compaixão, de solidariedade…muitas vezes desconhecida.
A verdadeira felicidade coincide com a paz interior; é o prazer de descobrir, cada dia, que a vida se inicia novamente em cada amanhecer; é fazer da mesma vida uma grande aventura… Por isso, a felicidade está relacionada com a gratuidade e com a gratidão.
Para meditar na oração
– “empalavrar” (pôr em palavras) as bem-aventuranças que brotam do seu coração, aquelas que lhe inspiram e dão sentido à sua existência, como seguidor(a) de Jesus.
As Bem-aventuranças: retrato de Jesus e do Missionário
Romeo Ballan, mccj
«O discurso da Montanha foi directo ao meu coração. Foi graças a este discurso que aprendi a amar Jesus», afirmava Gandhi, pai da Índia moderna e promotor da estratégia da não-violência activa. A admiração provém em particular das Bem-aventuranças, que são o coração do programa de Jesus. É uma mensagem a compreender no contexto bíblico mais amplo sobre o sentido da existência. Acertar ou errar, vencer ou perder, conseguir ou fracassar, acomodar-se ou ir contra a corrente, terminar com um “bendito” ou com um “maldito”… A lista de alternativas contrapostas poderia continuar. Jesus acrescenta a sua alternativa no discurso programático das Bem-aventuranças (Evangelho): «Bem-aventurados sereis… ai de vós…» (v. 20.24). O estilo literário usado por Jesus é semelhante ao de Jeremias (I leitura). Ensinar com imagens contrastantes, paralelas e repetitivas, é prática corrente entre os mestres da época, para facilitar a aprendizagem por parte de povos de cultura oral. É um método didáctico que os missionários conhecem bem e verificam ainda hoje junto de numerosos grupos humanos.
Mais do que o estilo literário, é importante colher a mensagem. O que está em jogo nas duas alternativas expressas por Jeremias e por Jesus é a vida, a salvação, a própria salvação eterna. Ser como um cardo na estepe (isto é, viver num deserto sem frutos e sem vida), ou ser como uma árvore plantada à beira da água (cheia de vigor e de frutos) são o resultado de duas opções de vida. São escolhas que o profeta classifica com um juízo contundente: maldito… ou bendito… Para Jeremias, a razão moral de tal sentença está na opção de confiar no homem (V. 5), ou de confiar no Senhor (v. 7). “Confiar” é o verbo da fé: isto é, fixar o ponto de solidez da casa, colocar o fundamento do edifício sobre a rocha. O salmo responsorial retoma o mesmo tema com abundância de imagens tomadas da vida agrícola e dos hábitos sociais.
Jesus propõe um programa idêntico (Evangelho): organizar a vida, tendo Deus como ponto de referência, para que o resultado definitivo seja um «bem-aventurados sereis…», e não um «ai de vós…». Optar por Jesus significa agir em favor dos necessitados, descobrir a bem-aventurança mesmo no meio das realidades consideradas habitualmente negativas, perdedoras, segundo as opiniões da maioria: felizes de vós os pobres, felizes de vós os que agora tendes fome, de vós que agora chorais, de vós que sois insultados e rejeitados… Alegrai-vos! (v. 20-23). O paralelismo de Lucas continua com imagens opostas, intercaladas pelo «ai de vós» (v. 24-26). O «ai de vós», porém, não é uma ameaça ou um castigo, é a lamentação de Jesus, a amargura pela situação dos que seguem projectos mundanos de opulência, satisfações egoístas, prepotências, predomínio, honras… Jesus amargura-se face a isso: ai de mim por vós!
Só quem confia plenamente em Deus consegue viver a gratuitidade, partilhar sem acumular, alegrar-se com poucas coisas, encontrar «perfeita alegria» mesmo nos insultos, rejeições e perseguições. A alegria espiritual das bem-aventuranças não tem nada a ver com satisfações masoquistas. Todavia não elimina o comum sofrimento inerente às situações difíceis, mas sabe descobrir aí uma mensagem superior, uma sabedoria nova, um caminho de salvação, uma misteriosa fecundidade pascal, um «sinal da humanidade renovada» (oração colecta). Mesmo se não é de fácil e imediata compreensão.
As Bem-aventuranças são um auto-retrato de Jesus: pobre, sofredor, perseguido… Escolheu o caminho da paixão, morte e ressurreição para dar a vida ao mundo (II leitura). O programa que Jesus confia aos apóstolos – e aos missionários de todos os tempos – não pode ser diferente: o missionário é o homem/mulher das Bem-aventuranças, como os definiu João Paulo II: Em especial nas Bem-aventuranças da perseguição e da pobreza, vividas na partilha de vida. A confirmá-lo estão as dezenas de missionários que todos os anos caem vítimas da violência. Ao seu testemunho deve-se associar o de tantos outros (voluntários, jornalistas, forças da ordem…) caídos em serviço. Na origem de tais mortes encontram-se muitas vezes bandidos e assaltantes; outras vezes são evidentes as motivações religiosas e sociais. Optar por Cristo significa actuar sempre a favor dos fracos e dos necessitados, com os quais Ele se identifica: famintos, andrajosos, doentes, presos, estrangeiros… Temos a certeza disso com as duas sentenças finais: «vinde, benditos de meu Pai», ou «afastai-vos de mim, malditos» (Mt 25,34.41). Existe coerência entre o Evangelho das Bem-aventuranças e o teste do juízo final. O caminho das Bem-aventuranças conduz à Bem-aventurança definitiva. À felicidade verdadeira e duradoira!