XXXII DOMINGO DO TEMPO COMUM (B)
Marcos 12,38-44

Referências bíblicas:
- 1ª leitura: «A mulher foi e fez como Elias lhe tinha dito» (1 Reis 17,10-16)
- Salmo: Sl 145(146) – R/ Bendize, minha alma, bendize ao Senhor!
- 2ª leitura: «Cristo, oferecido uma vez por todas para tirar os pecados da multidão…» (Hebreus 9,24-28)
- Evangelho: «Esta pobre viúva deu mais do que todos os outros» (Marcos 12,38-44 ou 41-44)
Deram tudo o que tinham!
Marcel Domergue
Aparências e realidade
A viúva de Sarepta, à primeira vista, é uma mulher pobre, que, junto com seu filho, está condenada a morrer de fome. Elias é um viajante desprovido de tudo e que, por isso, pede esmola. Os escribas são pessoas ilustres que gozam de prestígio e acham-se muito além de qualquer apreciação ou julgamento a seu respeito. Quanto àquelas duas “pequenas moedas” depositadas no cofre pela pobre viúva, são simplesmente ridículas, se tomadas em relação às despesas do Templo. Assim é o mundo das aparências. Falamos do que é importante e do que não é, do que tem valor e do que não tem. Ora, que importância terá a ovelha perdida, em relação ao conjunto do rebanho? Um por cento? Não é muito! E, no entanto, revela-se a mais preciosa aos olhos de Deus, a que lhe dá a maior alegria, quando encontrada. Imersos na espontaneidade, sem maior reflexão, vivemos no universo das aparências. Num primeiro tempo isto é normal, porque, como a palavra mesmo indica, a aparência é o que exatamente nos salta aos olhos, em primeiro lugar. A realidade é como se fosse um tesouro muitas vezes escondido debaixo da terra e que só se deixa descobrir ao preço de escavação trabalhosa. Até mesmo aqueles gestos, palavras e ações que parecem exprimir um amor indiscutível podem esconder o desejo de possuir ou de se ver aprovado por quem deles é testemunha. Os atores mesmos podem se enganar com isto: a viúva de Sarepta não sabe que possui um tesouro; nem que aquele mendicante que lhe pede o pão é justamente quem lho pode dar.
Questão de vida ou morte
O evangelho diz que os escribas – e todos os que se lhes assemelham -, aparentando dar (conselhos, sabedoria, discernimento, etc.), são na realidade tomadores do alheio. E tomam (“devoram”) particularmente o que possuem as viúvas, ou seja, todos os que não contam com ninguém para defendê-los. Sabemos que as viúvas, junto com as crianças e os enfermos, são figuras da necessidade. Por ora, deixemos de lado o sistema social e as manobras jurídicas de cobrança dos impostos. Notemos que, em certos casos, tomar os bens corresponde a tomar a vida. Não é isto exatamente o que, na primeira leitura, Elias parece fazer? Ao dar a ele os seus parcos recursos, a viúva e o filho nada mais têm de seus; só lhes resta morrer. O mesmo vale para a viúva do evangelho, uma vez que, como diz Jesus, “ela ofereceu tudo aquilo que possuía para viver”. E, já que falamos de aparências e realidade, devemos compreender que, sob uma aparência de anedota ou de um caso menor, esta passagem do evangelho nos põe diante de uma questão de vida ou morte. A morte e o que causa a morte não podem nos aparecer afinal sob uma máscara da vida e do alimento? Não pode a vida assumir um semblante de morte? Se o relato da primeira leitura acaba bem, pois triunfa a vida, o da pobre viúva do evangelho, contudo, fica sem conclusão: o texto não diz como as coisas irão terminar para ela. Há aí, como acabamos de ver, uma verdade que nos diz respeito.
O dom total do ser
Podemos projetar este conflito, de aparência-realidade, sobre o que acontece na cruz. Temos ali o justo que aparece sob os traços de um malfeitor, o todo poderoso que assume a máscara da fraqueza e, enfim, a vida que irrompe na humanidade com o semblante da morte. Não nos adiantemos muito, falando imediatamente na Ressurreição. Porque, se a crucifixão foi visível, constatável, atestada por um ou outro autor pagão, ninguém viu Jesus levantar-se do túmulo. A Ressurreição chegou até nós pela audição, não pela visão. Não é possível aqui, no quadro deste comentário, explicarmos os relatos da aparição, falarmos sobre este gênero literário e as suas significações. A Ressurreição, para nós, é da ordem do crer sem ver. Em outras palavras, não temos diante dos olhos senão as aparências da Paixão do Cristo. Por isso Paulo diz que somente na esperança é que somos salvos (Romanos 8,24). Se Marcos não nos disse nada do que aconteceu com a viúva que deu tudo, é para nos fazer compreender que também nós estamos aí, neste mesmo ponto. Temos de crer que a vida vem ao nosso encontro através de tudo o que nos acontece, apesar das aparências em contrário. E vamos mais longe: não se trata só de suportar; trata-se, do mesmo modo que as viúvas das nossas leituras, de dar e, finalmente, de dar-se a si mesmo. Foi o que fez Cristo em sua Paixão. Mas estejamos atentos: não é porque é sofrimento e morte que a Paixão nos dá a vida, mas porque é dom de si, é dom de amor.
”Esta pobre viúva deu toda a sua vida”
Enzo Bianchi
O trecho do Evangelho deste domingo nos testemunha um ataque muito duro de Jesus aos escribas e aos fariseus, que se tornaram figuras tipológicas no mundo cristão, que encarnam perfídia, hipocrisia, orgulho. Cuidado, porém, porque aqui se requer, de nossa parte, um exercício hermenêutico sábio, que saiba também ser “justo”.
Os escribas eram os especialistas nas Sagradas Escrituras, homens que, desde a infância, se dedicavam à leitura e ao estudo da tradição de Israel. Quando chegavam à idade madura, tornavam-se pessoas de autoridade, rabinos, “mestres”, dotados de poderes jurídicos nas diversas instituições judaicas.
Os fariseus – já salientamos isto outras vezes –, por sua vez, eram um “movimento eclesial”, um grupo que tentava viver zelosamente a Lei de Moisés e os preceitos elaborados pelos pais rabínicos. Eram simples fiéis, pertencentes ao povo e representavam um componente forte, muito presente e também missionário dentro de Israel.
Certamente, os escribas e também alguns fariseus foram adversários de Jesus, mas a polêmica de Jesus, reatualizada pelos evangelistas em um contexto de duro confronto e de perseguição dos cristãos, considerados pelos fariseus como uma seita heterodoxa, dizia respeito especialmente à sua postura de “pessoas religiosas”. Ao retomar essa polêmica, os evangelistas também pretendiam denunciar aqueles que, na Igreja cristã, já haviam assumido o mesmo estilo.
Portanto, cuidado para não acabar lendo os Evangelhos de modo antijudaico: nem todos os escribas eram arrogantes, nem todos os fariseus eram hipócritas, ao contrário, às vezes os Evangelhos testemunham escribas próximos do reino de Deus (cf. Mc 12, 34) e fariseus retos e justos que estavam bem-dispostos para com Jesus (cf. Lc 13, 31).
Sim, houve um conflito duro, mas Jesus hoje poderia dirigir as mesmas duras advertências a tantos eclesiásticos… Basta ler com atenção as palavras dirigidas por Jesus à multidão, que poderiam ser assim parafraseadas e atualizadas: “Desconfiem dos escribas, dos especialistas em Bíblia e em teologia! Quando saem, aparecem com vestes longas, filetadas, até mesmo coloridas, vestem hábitos espalhafatosos, adornam-se com correntes, com cruzes gemadas e preciosas, procuram os rostos de quem passa para serem saudados e reverenciados, sem discernir as pessoas na sua necessidade e no seu sofrimento: rostos que não são olhados, mas chamados a olhar! Nas assembleias litúrgicas, eles têm lugares proeminentes, cátedras e tronos semelhantes aos dos faraós e dos reis, e são sempre convidados aos banquetes dos poderosos”.
Realmente, essas invectivas de Jesus são mais do que nunca atuais: são palavras que deveriam nos fazer corar e nos levar a nos interrogar no coração sobre onde fomos parar…
Quando se adota essa postura de arrogância, inevitavelmente assume-se um estilo que pede admiração, que deseja adeptos, que exige aplausos das pessoas devotas. Para manter tal atitude, além disso, é preciso ter muito dinheiro, e assim acaba-se devorando as casas das viúvas e exigindo dinheiro justamente dos mais pobres, dinheiro roubado! Foi assim e ainda é assim aqui e ali na Igreja, e cada um de nós, no seu coração, conhece de que modos, talvez diferentes dos estigmatizados por Jesus, tentou-se aparecer, mostrar-se, receber reconhecimento e aplausos também na vida eclesial!
Não podemos aqui deixar de dar testemunho do Papa Francisco pelos seus chamados e pelos seus esforços em vista de uma Igreja pobre, na qual “os primeiros”, aqueles que governam ou presidem, não recaiam nos vícios dos homens religiosos, que pedem aos outros que deem glória a Deus dando glória justamente a eles, que se acham seus representantes…
Jesus faz esses discursos no templo, na frente da sala do tesouro, onde os fiéis, os peregrinos que subiam a Jerusalém, colocam as suas moedas em “caixas para as ofertas”. Como sempre, Jesus observa, vê, compreende e discerne: sabe o que acontece ao seu lado, é vigilante e tira lições de vida da realidade concreta.
O que ele vê aqui? Ele nota que há alguns que colocam grandes somas de dinheiro: são os ricos, aqueles que, sem grande esforço e sem se privar de algo essencial, na sua devoção, podem colocar até muito dinheiro no tesouro do templo. Também fizemos e fazemos experiência disso na Igreja. Há apenas 50 anos, os primeiros bancos na igreja tinham a placa de latão com a gravação dos nomes dos ricos que haviam feito grandes ofertas, e aqueles bancos eram reservados para eles. E os pobres? No fundo da igreja, de pé, porque até as cadeiras que eram postas à disposição eram pagas. Nada de novo, portanto!
Mas Jesus vê e discerne entre todos uma mulher – além disso, viúva –, isto é, uma pessoa que não importa nada em um mundo dominado por homens, que também sentem o templo como algo que lhes pertence: as mulheres, de fato, não faziam assembleia diante de Deus como eles e com eles.
Essa pobre mulher avança entre muitos outros, na sua humildade, e parece que ninguém pode notá-la. Jesus, ao contrário, nota-a e aponta para ela como “a verdadeira oferente”, a verdadeira pessoa capaz de fazer uma doação, de dar glória ao Senhor. Ela joga apenas dois trocados, duas pequenas moedas de cobre, isto é, um quadrante, um quarto de soldo: uma soma insignificante!
Mas eis que Jesus comenta o seu gesto e faz isso de modo solene, introduzindo as suas palavras com: “Amém”, isto é: “É assim, é a verdade e eu a digo a vocês”. “Amém, em verdade vos digo, esta pobre viúva deu mais do que todos os outros que ofereceram esmolas. Todos deram do que tinham de sobra, enquanto ela, na sua pobreza, ofereceu tudo aquilo que possuía para viver” (hólon tòn bíon autês; literalmente, “toda a sua vida”). E assim ela ama a Deus de todo o coração, com toda a alma e com todos os seus bens, como pede o Shema’ Jisra’el (cf. Dt 6, 5).
Essa viúva, que se dirigiu ao templo para dizer o seu amor a Deus, não entra em contato com Jesus, não recebe nenhuma palavra direta dele e – podemos supor – nem sequer se dá conta de que Jesus está presente e a vê. Não é uma mulher que conhece Jesus e crê nele, é uma filha de Israel, que busca apenas observar a vontade de Deus, que se confia totalmente a ele, que não grita sobre os telhados aquilo que faz, que não foca a trombeta à sua frente para ser notada (cf. Mt 6, 2), mas adere às palavras dos profetas que proclamam os pobres privilegiados e amados por Deus.
Ela é um ícone do Israel pobre e fiel, que depende somente de Deus (cf. Sf 2, 3; 3, 12-13); é a contrafigura dos homens religiosos que aparentemente observam a Lei, esquecendo-se, ao contrário, da “justiça, misericórdia e fidelidade” (Mt 23, 23) e, de fato, devorando justamente as casas das viúvas…
Mas ela também é semelhante a tantos pobres da terra que, na sua prática religiosa ou mesmo na sua “irreligiosidade”, tentam fazer aquilo que é bom de acordo com a sua consciência, e Jesus a indica como exemplar, como operadora do bem, como exemplo de dom total.
Essa mulher, de fato, não dá, como os outros, migalhas daquilo que possui; não dá a oferta sem que isso gere um sofrimento para ela; não oferece dinheiro de que não precisa, porque tem muito mais: não, essa mulher se despoja daquilo que lhe era necessário para viver, de tudo aquilo que tinha, não de uma porção mínima disso.
Essa viúva é, para Jesus, uma imagem do amor que sabe renunciar até mesmo àquilo que é necessário: eis uma mulher anônima, mas uma verdadeira discípula de Jesus.
Hoje, quando falamos de “Igreja dos pobres”, devemos fazer memória dessa mulher, discípula de Jesus na Igreja dos pobres por ela inaugurada, e devemos nos interrogar sobre o que damos àqueles menos munidos do que nós, aos mais pobres. Nós que facilmente jogamos fora comida, às vezes damos aos pobres algo que nos force a sentir uma necessidade, a abrir mão daquilo que gostaríamos de possuir ou de consumir? Apressamo-nos a dizer “Igreja pobre” ou “dos pobres”: mas nós fazemos parte dela ou dela somos excluídos?
Crer é arriscar crer
José Tolentino Mendonça
O que é que a fé nos ensina? A que é que a fé nos leva? A onde é que ela nos conduz? A que gestos? A que atitudes? A que horizontes novos a fé nos coloca?
A fé contemplada no Evangelho é, sobretudo, uma arte do risco, uma arte de arriscar. Crer é arriscar crer, como amar é arriscar amar. Arriscar crer. Lembro-me de dois comentadores dos textos bíblicos, de pontos de vista diferentes, que sublinham precisamente isso e nos podem ajudar hoje a lermos a Palavra de Deus como um desafio para as nossas vidas.
O primeiro é uma psiquiatra e psicanalista, Françoise Dolto, que analisa uma das parábolas mais complicadas, um verdadeiro quebra-cabeças do ponto de vista moral, contada por Jesus que é aquela do administrador infiel. Aquele homem que era corrupto e sabendo que ia ser despedido começa a chamar os clientes do seu patrão a dizer “Olha, eu favoreço-te nisto: tu deves cinquenta, escreve aqui quarenta.”, para que ainda conseguisse, depois de ser despedido, uma boa aceitação junto daquela rede de fornecedores. Jesus conta esta parábola elogiando a esperteza do administrador infiel. Para nós que a ouvimos é um verdadeiro quebra-cabeças, porque como é que se pode elogiar a esperteza daquele ‘Chico esperto’?
Contudo, no comentário, na interpretação que Françoise Dolto faz, ela valoriza sobretudo a tomada de iniciativa. Aquele homem perante uma situação limite, que é o facto de ser despedido e a sua vida mudar radicalmente, ele faz alguma coisa, ele arrisca. Faz uma idiotice, continua no mesmo, mas ele arrisca. E o que ela sublinha é isto: o que Jesus nos ensina é a arriscar. Não arriscar fora da lei, ou fora da moral, fora da ética, mas valorizar o risco.
Na mesma linha, o escritor Chesterton valorizava aquela palavra de Jesus que é dizer: “Se queres seguir-Me renuncia a ti mesmo, toma a tua cruz todos os dias e segue-Me, porque quem quiser salvar a vida há de perdê-la, e quem aceitar perder a vida por Mim e por causa do Reino há de salvá-la.” Ele diz: “Esta Palavra podia estar inscrita num clube de socorro a náufragos.” É assim, o nosso barco está a naufragar. Temos duas escolhas: ou permanecemos no barco, temerosos, e arriscamos também o naufrágio, ou, sem ter certezas mas obedecendo ao chamamento da vida, ao risco da vida, nós atiramo-nos, e atiramo-nos ao mar largo. Quem quiser salvar a sua vida, perdê-la-á. Se permanecemos agarrados ao navio perdemos a nossa vida. Mas é aceitando o risco de poder perder a vida que a salvamos verdadeiramente.
A fé é isto. Porque a fé não é caminhar num território cheio de garantias, onde está tudo certo, está tudo assegurado e a consequência mais lógica mais racional que eu tiro é esta, e é por isso que a sigo. Não, a fé não é do território da lógica. Santo Agostinho dizia: “É absurdo, por isso eu creio.” A fé muitas vezes é tomar a iniciativa da confiança, do abandono no meio de situações que são o absurdo, que são o contrário da lógica, o contrário da razão. Mas a fé é viver o risco de acreditar. Não é somar 2+2 são 4. Não, as contas da fé são sempre tudo ao contrário, tudo ao inverso. A fé implica sempre esse salto, esse abandono confiante. Crer é o risco de crer.
A mesma coisa nós podemos dizer do amor. O amor não é um caminho feito na evidência, não é um caminho feito na certeza de que vai ser assim ou vai ser de outra forma, tudo muito assegurado. O amor é a ousadia de amar, é a ousadia de atirar-se à frente.
Temos nas leituras de hoje dois exemplos de amor. De amor diferente, mas de amor enquanto dádiva, enquanto oferta de si, que é no fundo aquilo que concretiza o amor. Aquela viúva de Sarepta a quem o profeta Elias pede hospitalidade, e pede alguma coisa de comer, ela não tem mais nada, não tem mais farinha, não tem mais óleo na almotolia. Contudo, ela amassa a última amassadura e partilha com aquele estrangeiro, com aquele estranho que lhe pede de comer. E diz: “Depois venha o que vier.” No fundo, ser capaz de dar o último pão, é o risco de amar. Depois? Depois, não sei o que vai acontecer. Depois já não é uma coisa que eu controlo, já não está dentro das minhas possibilidades. Mas é esse risco de amar, é esse risco que torna o gesto daquela mulher um gesto de amor verdadeiro, um gesto também de fé.
A mesma coisa nesta viúva pobre que está perante o tesouro do Templo. Os outros dão do que lhes sobra, aquela mulher deu uma pequenina moeda e Jesus chama a atenção dos discípulos dizendo: “Ela deu mais do que todos os outros, porque todos os outros deram do que lhes sobrava, ela deu tudo quanto tinha para viver.”
E é, no fundo, isto que nos é pedido a cada um de nós. Se calhar este não é um discurso para o dia a dia, se calhar no dia a dia nós conseguimo-nos gerir e safar com a visão habitual, não é preciso um grande risco, deixarmo-nos levar, deixarmo-nos embalar pela própria vida. Mas há momentos na vida de cada um de nós, há ocasiões, há dias, há oportunidades em que aquilo que se decide é verdadeiramente pelo risco de acreditar, pelo risco de amar. E são esses dias, essas oportunidades, essas horas da nossa vida que nos estruturam, que fazem a diferença, que marcam o caminho.
Pensemos no que Jesus nos diz. Jesus olha para o gesto da viúva e diz: “Ela deu mais do que todos porque deu uma moedinha que era tudo quanto tinha.” E a nós pensamos: “Muito bem. Muito bonito. Mas se toda a gente desse só uma moedinha não se conseguia manter o tesouro do Templo, não se conseguia fazer todas as atividades que o Templo tem para fazer, não se conseguia construir, manter a beleza do Templo.”
E é aqui que Jesus faz uma transformação do nosso olhar, é aqui que o Cristianismo aparece como um discurso diferente, que nos modifica por dentro naquilo que nós consideramos importante, naquilo a que nós damos realmente valor, naquilo que nós consideramos decisivo. Na Carta aos Hebreus (esse texto do final do primeiro século da era cristã, que já é escrito depois do Templo de Jerusalém ter sido destruído, o sacerdócio extinto, os sacrifícios apagados) este autor cristão vai rever a vida de Cristo, a Sua mensagem, o Seu gesto, a Sua poética do ponto de vista do Templo. E vai dizer: “Mais importante do que o Templo, mais importante do que a linhagem sacerdotal, mais importante do que os sacrifícios é o próprio Cristo enquanto pessoa, no que Ele é.”, “Não construíste para mim um Templo mas deste-Me um corpo, fizeste de mim Sumo-sacerdote.”
É este investimento na existência, este investimento na pessoa que faz a diferença. Quem olha para este discurso de Jesus e o aceita, tem de viver de uma maneira diferente, tem de viver de uma forma diferente.
Este desafio a uma vida essencial é um desafio que é feito a todos, a todos os cristãos que, no fundo, percebem que o importante não é construirmos, não é fazermos, embora tudo tenha o seu lugar. Mas o fundamental é sempre a pessoa.
É claro, se nós privilegiamos a pessoa humana diz-se: “Ah! Mas como é que vai ser os mercados! Como é que vai ser isto? Como é que vai ser aquilo?” Temos de encontrara um equilíbrio, temos de encontrar novos caminhos, temos de encontrar novas possibilidades na nossa sociedade. A Doutrina Social da Igreja nasceu precisamente num contexto de fatalismo, em que com a Revolução Industrial o valor do trabalho e o valor da pessoa humana eram absolutamente relativizados. A Doutrina Social da Igreja nasceu como a tentativa de encontrar um outro caminho, uma outra possibilidade em que o fundamental não era perdido de vista.
Hoje nós vivemos numa grande mudança da história, nós sentimos isso. Somos determinados por entidades que não sabemos quem são, tudo parece que tem de ser de uma maneira só. Se calhar também aqui precisamos de voltar à Doutrina Social da Igreja e perceber isto: o valor da pessoa humana.
É o modo de olharmos e de acolhermos no nosso coração a Palavra de hoje de Jesus que nos faz ver uma mulher pobre e dizer: “Ela deu mais do que todos.” A tradição da Igreja tem sido esta desde o princípio. Por exemplo, quando o imperador prendia os primeiros cristãos e lhes dizia: “Ide buscar o tesouro da Igreja.“, S. Lourenço, que era o administrador da comunidade de Roma, foi preso e mandaram-no: “Olha, vai buscar o tesouro da comunidade para resgatar os cristãos.” E S. Lourenço foi buscar os pobres e disse: “O tesouro da igreja são os pobres.”
Então, isto para nós, cristãos, é um desafio constante. O que é o nosso tesouro? O que é o nosso tesouro? O que é que nós consideramos que é dar mais? Que é dar mais? Há de facto uma visão, uma visão que o próprio Jesus nos ensina a construir. Uma visão onde a pessoa humana está no centro, a pessoa humana com a sua fragilidade, a sua dificuldade.
Às vezes penso em como podemos ser super exigentes para uma pessoa mais frágil, mais fraca, mais vulnerável. E achamos: “Ah! Mas ela não faz nenhum esforço.” Às vezes o pequenino passo que ela faz, e que para nós nos parece insignificante, é mais do que todos os esforços e todos os passos que nós podemos dar ou pensar que damos. Por isso, há aqui uma conversão do olhar, uma conversão do olhar. Crer é o risco de crer, amar é o risco de amar.
Hoje, as leituras da Palavra de Deus colocam-nos perante o risco de amar. É um risco que, aos diversos níveis, implica uma conversão para cada um de nós. Porque preferimos muito mais um amor assegurado, um amor garantido, um amor consolidado, um amor isto, um amor aquilo, um amor que nos compense. E este risco de amar por amar, que está no cerne do Evangelho, é alguma coisa que constitui de facto um chamamento para cada um de nós. Um chamamento, um desafio exigente, mas também uma oportunidade.
Porque às vezes penso na maravilha do olhar de Jesus, nas coisas que Ele reparava. É como se Ele escrevesse a história do mundo de outra forma, de outra maneira. E no fundo, bem-aventurados os que têm o olhar puro, porque são capazes de identificar a presença do Reino, a chegada do Reino nas coisas mais pequenas e que para os outros são invisíveis.
«Dar da própria pobreza»
Romeo Ballan, mccj
Na selva do Brasil, um missionário perguntou um dia a um índio da etnia Yanomani: «Quem é bom?» E o índio respondeu-lhe: «Bom é aquele que partilha». Uma resposta em sintonia com o Evangelho de Jesus! Disto dão testemunho duas mulheres, viúvas e pobres, ambas especialistas na dificuldade de viver, protagonistas da mensagem bíblica e missionária deste domingo.
Em terra de gentios, a norte da Palestina, a viúva de Sarepta (I leitura), apesar da escassez de víveres em época de seca, partilha a água e o pão com o profeta Elias, que está a fugir da perseguição do rei Acab e da rainha Jezabel. Aquela viúva, já sem forças (v. 12), confiou na palavra daquele homem de Deus, e Deus não lhe fez faltar o necessário para viver ela, o seu filho e outros familiares (v. 15-16). A despeito da malvadez do casal real, a protecção de Deus manifesta-se a favor do seu enviado (Elias) e dos pobres.
A cena repete-se na esplanada do templo de Jerusalém, lugar oficial do culto, onde Marcos (Evangelho) apresenta duas cenas contrastantes. De um lado, os escribas: os presumíveis conhecedores da lei, inchados de vaidade até à ostentação (fazem exibição de vestes luxuosas, procuram as saudações e os primeiros lugares), presunçosos até ao ponto de manipular Deus com longas rezas, e até vorazes devoradores das casas das viúvas (v. 40). Do outro lado, Jesus põe em evidência o gesto furtivo de uma viúva pobre que, com a máxima discrição, sem se fazer notar, lança na arca do tesouro do templo duas pequenas moedas, que era «tudo o que possuía para viver» (v. 44). São poucos cêntimos, de imenso valor. Ela não dá muitas coisas, como os ricos, mas dá muito, tudo, como diz o texto grego: «toda a sua vida».
O proveito e a gratuidade são postos em confronto. Os escribas ostentam uma religiosidade para proveito pessoal: até no fazer boas acções procuram o seu interesse, são vítimas da cultura do parecer. Jesus, ao contrário, exalta na viúva a gratuidade, a humildade, o desapego: ela confia em Deus e abandona-se a Ele. Volta aqui o ensinamento radical do Evangelho de Marcos dos domingos passados: o verdadeiro discípulo de Jesus vende tudo, dá-o aos pobres, oferece a vida como fez o Mestre em resgate por todos (II leitura, v. 26), ama a Deus e ao próximo com todo o coração. Para ela, este duplo amor é mais importante que a sua própria sobrevivência (*).
Para o Reino de Deus não é importante dar muito ou pouco; o importante é dar tudo. Já o Papa S. Gregório Magno afirmava: «O Reino de Deus não tem preço; vale tudo aquilo que se possui». Bastam somente duas moedas, ou «apenas um copo de água fresca» (Mt 10,42). O dom oferecido da própria pobreza é expressão de fé, de amor, de missão.
Assim se expressaram os bispos da Igreja latino-americana na Conferência de Puebla (México 1979), falando do empenho pela missão universal: «Finalmente chegou a hora, para a América Latina, de… projectar-se para lá das próprias fronteiras, ad gentes. É verdade que nós mesmos temos necessidade de missionários; mas temos de dar da nossa pobreza» (Puebla, n. 368). O empenho pela missão, dentro e fora do próprio país, é concreto e exigente: são necessários meios materiais e espirituais, mas sobretudo pessoas disponíveis para partir e oferecer a sua vida. Pelo Reino de Deus!
A pobre de Sarepta e a viúva do Evangelho repropõem hoje o desafio de uma missão vivida com escolhas de pobreza, no uso de meios pobres, fundada na força da Palavra, livre dos condicionamentos do poder, entre os últimos da terra, em situações de fragilidade, na fraqueza própria dos colaboradores, na solidão, na hostilidade… Paulo, Xavier, Comboni, Teresa de Calcutá e tantos outros missionários, viveram a sua vocação sob a insígnia da Cruz, enfrentando sofrimentos, obstáculos e incompreensões, na certeza de que «as obras de Deus devem nascer e crescer aos pés do Calvário» (Daniel Comboni). O missionário põe no centro da sua vida o Senhor crucificado, ressuscitado e vivente, porque considera que o poder de Cristo e do Evangelho se revela na fraqueza do apóstolo e na precariedade dos meios humanos (cf. Paulo). Nas situações de pobreza, abandono e morte, o missionário descobre em Cristo crucificado a presença eficaz do Deus da Vida e uma multidão de irmãos a amar e a valorizar, levando-lhes o Evangelho, mensagem de vida e de esperança.