XXIX DOMINGO DO TEMPO COMUM (B)
Marcos 10, 35-45

Referências bíblicas
- 1ª leitura: «Oferecendo sua vida em expiação, terá descendência duradoura» (Isaías 53,10-11).
- Salmo: Sl.32(33) R/ Sobre nós venha, Senhor, a vossa graça, pois em vós nós esperamos!
- 2ª leitura: «Aproximemo-nos então, com toda confiança, do trono da graça» (Hebreus 4,14-16).
- Evangelho: «O Filho do homem veio para dar a sua vida como resgate para muitos» (Marcos 10,35-45)
Naquele tempo, Tiago e João, filhos de Zebedeu, aproximaram-se de Jesus e disseram-Lhe: «Mestre, nós queremos que nos faças o que Te vamos pedir». Jesus respondeu-lhes: «Que quereis que vos faça?». Eles responderam: «Concede-nos que, na tua glória, nos sentemos um à tua direita e outro à tua esquerda». Disse-lhes Jesus: «Não sabeis o que pedis. Podeis beber o cálice que Eu vou beber e receber o baptismo com que Eu vou ser baptizado?». Eles responderam-Lhe: «Podemos». Então Jesus disse-lhes: «Bebereis o cálice que Eu vou beber e sereis baptizados com o baptismo com que Eu vou ser baptizado. Mas sentar-se à minha direita ou à minha esquerda não Me pertence a Mim concedê-lo; é para aqueles a quem está reservado». Os outros dez, ouvindo isto, começaram a indignar-se contra Tiago e João. Jesus chamou-os e disse-lhes: «Sabeis que os que são considerados como chefes das nações exercem domínio sobre elas e os grandes fazem sentir sobre elas o seu poder. Não deve ser assim entre vós: quem entre vós quiser tornar-se grande, será vosso servo, e quem quiser entre vós ser o primeiro, será escravo de todos; porque o Filho do homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a vida pela redenção de todos».
À direita e à esquerda de Cristo
Marcel Domergue
Mania de grandeza
Quando pedem a Jesus para se sentarem, um à sua direita e o outro à sua esquerda, quando estivesse em sua glória, que ideia de “Glória” estariam fazendo os discípulos de Jesus? Pensavam, sem dúvida, numa tomada do poder.
Na versão de Mateus, a palavra empregada é “Reino”. Pensavam que, um dia, Deus viria impor sua vontade, a sua Lei, para arrancar a humanidade das suas injustiças e atrocidades. Esta Lei ditaria as condições da paz entre os homens, a sua unidade, portanto. E, por consequência, nem uma vírgula nem um iota poderia dela ser apagado.
A hora da Glória é, pois, a hora do julgamento do mundo e do triunfo sobre todas as condutas perversas que o submeteram à violência. E os que se põem à direita e à esquerda do juiz serão os seus assessores, os seus assistentes. Não julguemos depressa demais ser um tanto pueril a ambição dos dois irmãos. Esta passagem do evangelho põe-nos, na verdade, em presença de uma pretensão secreta que habita também o mundo de hoje. E que talvez seja o motivo secreto do comportamento de muitos, mas sob a máscara muitas vezes das “virtudes” exibidas.
Nem mesmo a Igreja está ao abrigo do carreirismo de alguns dos seus membros. Galões, condecorações, nomeações, em resumo, tudo o que distingue e separa alguém da multidão e polariza os olhares sobre si, sempre guarda o seu atrativo. O “último lugar” quase nunca é cobiçado. Pode-se citar e, até mesmo, professar o evangelho, mas comportando-se aberta ou secretamente conforme o seu contrário. Como podem existir “honrarias eclesiásticas”?
À direita e à esquerda
A hora do julgamento do mundo, da “tomada do poder”, foi a hora da crucifixão: quando, de fato, o pecado do mundo, a vontade de dominar que culmina na condenação e na condução à morte do único justo da história, foi desmascarada, exposta à vista de todos. Como diz o Evangelho de João, os olhos todos se voltaram para aquele que o nosso mal traspassou. Que este trecho do evangelho que lemos hoje refira-se à Cruz, é evidente, pois vem precedido dos anúncios da Paixão (8,31; 9,31 e 10,33-34, imediatamente antes do pedido dos filhos de Zebedeu). A resposta de Jesus, aliás, é uma alusão direta à Paixão: o anúncio do cálice que deve beber e do batismo no qual deve ser imerso.
Desde o capítulo 9, estão a caminho de Jerusalém, para a Páscoa da crucifixão, sendo este contexto que dá o tom a tudo o que está escrito, a partir de Cesareia de Filipe. Desde este ponto ao Norte, cidade praticamente pagã, onde os discípulos, pela boca de Pedro, reconhecem ser Jesus o Cristo, dirigem seu curso para o sul, para “a cidade que mata os profetas”. Ora, o relato da Paixão é o único texto de Marcos e de Mateus em que encontramos “direita e esquerda” como dois lugares com o mesmo valor. Temos aí, pois, aqueles para quem foram reservados os lugares de honra, na hora do julgamento do mundo. Dois malfeitores? Por certo, mas como ser de outro modo, se não há neste mundo senão um só justo, incluído, aliás, “no rol dos malfeitores”?
O julgamento do mundo
Na versão de Lucas, lemos que estes dois malfeitores proferem um julgamento: um condena Jesus em razão da sua impotência para escapar da Cruz. O outro diz ser a justo título que os dois estão condenados, ele e o companheiro, mas pronuncia o veredicto do não-lugar para Jesus, a quem julga “justo”, inversamente ao julgamento da multidão. Jesus toma, por sua vez, a palavra para absolver o “bom ladrão”.
Podemos assim concentrar nossa atenção nos julgamentos todos, cruzados e entrecruzados, que são feitos pelos diversos protagonistas, como se o julgamento do mundo provocasse o despertar das consciências, para o melhor e para o pior. Ficamos sabendo que os assistentes do Juiz só podem ser malfeitores, uma vez que não existe nenhum outro justo sobre a face da terra, a não ser Jesus. Nenhum jurado, portanto, dos nossos tribunais estará habilitado a jogar a primeira pedra.
Este julgamento do mundo, no entanto, realizado desde a Cruz, ensina-nos que todo o mal que podemos fazer foi superado pelo amor deste que nos deixou tirar-lhe a própria vida, vida que por ele mesmo nos foi dada. O mal provoca, assim, um acréscimo de amor, de um amor que absorve este mal. Paulo está de tal modo consciente disto que, em Romanos 6,1, escreve: “Que diremos então? Que devemos permanecer no pecado a fim de que a graça se multiplique?” Obviamente que não…! As cruzes que levantamos nas encruzilhadas, que afixamos em nossos tribunais, que alguns carregam ao pescoço ou que prendem no avesso de suas vestes significam a nossa adesão ao Reino do Amor, ao seu triunfo sobre a violência.
Em vista disto, também nós estamos crucificados à direita e à esquerda do Cristo. Esta é a nossa glória.
Os primeiros serão os últimos
Raymond Gravel
No caminho até Jerusalém, após o primeiro anúncio da morte-ressurreição de Jesus (Mc 8,31), onde o Cristo servidor do evangelho de Marcos convida Pedro para segui-lo, mas Pedro se recusa a seguir o mesmo caminho que ele, e após o segundo anúncio da morte-ressurreição de Jesus (Mc 9,31), onde o Cristo servidor convida todos os discípulos a segui-lo, enquanto eles se questionam sobre quem é o maior entre eles…
Ali estamos ainda hoje, a caminho, cada vez mais próximos de Jerusalém, onde o Cristo servidor, ou melhor: o Cristo escravo agora anuncia pela terceira vez o caminho que é o seu e o qual os Doze deverão seguir: “Eis que estamos subindo para Jerusalém, e o Filho do Homem vai ser entregue aos chefes dos sacerdotes e aos doutores da Lei. Eles o condenarão à morte e o entregarão aos pagãos. Vão caçoar dele, cuspir nele, vão torturá-lo e matá-lo. E depois de três dias ele ressuscitará” (Mc 10,33-34).
Novamente, seus discípulos mais próximos, Tiago, o irmão do Senhor, e João, o discípulo que Jesus amava, não compreendem bem a sua missão; eles querem o poder e exigem os primeiros lugares: “Quando estiveres na glória, deixa-nos sentar um à tua direita e outro à tua esquerda”(Mc 10,37). O que responder aos seus colaboradores mais próximos que não compreendem nada? “Vocês não sabem o que estão pedindo” (Mc 10,38). Por outro lado, a pergunta que devemos nos fazer hoje na nossa Igreja é a seguinte: Será que nós compreendemos verdadeiramente a nossa missão? Para respondê-la, precisamos redefinir a missão de Cristo hoje, através da nossa Igreja.
Uma Igreja pobre
O teólogo francês Gérard Bessière escreve: “Cada vez que eu vou, eu olho sobre a colina elevada o castelo de Mercuès que foi durante séculos a residência dos bispos. Um símbolo! Esses homens de Igreja eram também senhores, eles tinham terras e vassalos. Às vezes, tratava-se de homens santos. Mas como a palavra de Jesus parece distante: quem de vocês quiser ser o primeiro, deverá tornar-se o servo de todos. Eu sei, não devemos esquecer o contexto histórico, mas como não ficarmos indignados com o fato de que as palavras de Jesus tenham continuado assim?”.
Mas o que acontece hoje? Será que como Igreja não estamos numa situação semelhante? Demasiado ricos! Demasiada riqueza nas nossas propriedades? Nos nossos museus? Nas nossas igrejas? Nas nossas basílicas? Nas nossas catedrais? No nosso poder? No nosso saber? Nas nossas possessões? Eu posso entender que nós herdamos uma longa tradição eclesial, mas como não ficarmos admirados de estar tão longe do evangelho, ainda hoje?
São Marcos nos lembra: “Jesus chamou-os e disse: ‘Vocês sabem: aqueles que se dizem governadores das nações têm poder sobre elas, e os seus dirigentes têm autoridade sobre elas. Mas, entre vocês não deverá ser assim: quem de vocês quiser ser grande, deve tornar-se o servidor de vocês, e quem de vocês quiser ser o primeiro, deverá tornar-se o servo de todos’” (Mc 10,42-44).
Eu não tenho certeza que esta palavra do evangelho se realize na nossa Igreja hoje. Gérard Bessière continua: “Que não se diga que é uma questão da mente! Jesus se opõe ao funcionamento do poder nas sociedades e o regime original da autoridade na comunidade cristã. Quantas vezes o governo da Igreja se inspirou na organização, nos métodos e nos costumes dos reinos! A palavra de Jesus é embaraçosa: Entre vocês não deverá ser assim. Deve-se então criar. Como seria isso? Eu não sei. O que eu tenho certeza é que o mundo inteiro respirará fundo o dia que os cristãos de todos os níveis, começando pelos mais proeminentes, se farão pequenos e servidores”.
Uma igreja de servidores (de escravos)
“O Filho do Homem não veio para ser servido. Ele veio para servir e para dar a sua vida como resgate em favor de muitos” (Mc 10,45). Se a missão de Cristo é de ser servidor, a missão dos discípulos que são seu corpo também deve ser assim. Então, por que o poder se uniu ao ministério na Igreja? Ministro e ministério, servidor e serviço, significam em grego diakonia. Não há lá um desvio no exercício do ministério dos ministros da Igreja? E se eu releio bem o trecho do evangelho que nós temos hoje é ainda mais que isso o que se nos pergunta: Devemos ser não somente servidores, em grego: diakonos, mas escravos, em grego: doulos: “Quem de vocês quiser ser o primeiro, deverá tornar-se o servo de todos” (Mc 10,44). Qual é a diferença entre um servidor e um escravo? Segundo o padre francês Léon Paillot, “a ideia de escravidão é mais forte que a de servidor. O serviço é um ato livre e voluntário, enquanto que o escravo não tem vontade própria, ele é totalmente dependente”.
Será que o Deus de Jesus Cristo era escravo? Sim, com certeza, porque ele depende de nós. Ele não pode ser reconhecido mais que pelas mulheres e pelos homens que ele criou por amor. Isso significa que nosso Deus é dependente do Amor que ele nos dá. Seu único poder é amar e ele não pode nada sem nós. Se Deus é criador, ele só pode sê-lo através de nós. E é por isso que a missão da Igreja consiste em dar a vida por amor aos outros, e o único modelo que nós temos é Cristo Ressuscitado.
Então, a Igreja não tem que colocar obstáculos no caminho impedindo que os pobres, os feridos da vida, os que não são amados e os marginalizados passem; pelo contrário, a Igreja deve convidar os ricos, os intelectuais e os sãos a se despojar das suas posses, do seu saber e do seu poder, para ajudar os outros, os menos afortunados a avançar no caminho do Reino. A Igreja deve nos ensinar a amar na gratuidade; é a sua forma de falar de Deus e de servir ao homem.
Terminando, eu vos proponho essa bela reflexão de Gabriel Ringlet, cujo título é o seguinte: Deus em estado de serviço: “Quando Deus celebra a primeira missa, e quando ele quer adorar: é meu corpo e é meu sangue, ele cai de joelhos aos pés de homem e lhe lava os pés… O serviço religioso só é serviço de Deus, quando é serviço do homem. Não somente ao serviço da sua alma, mas também dos seus pés, de todo seu corpo, de todo ele, da cabeça até os pés. Tratar-se-á de servir mais ao homem do que à missa”.
Quem é que aceita ser o último?
José Tolentino Mendonça
Nós na natureza, entre os outros animais, encontramos a lei do mais forte como nas nossas sociedades, mas há uma coisa que é típica do ser humano que é a vingança. Os animais não se vingam uns dos outros. Nós temos esse impulso dentro de nós. Temos o impulso não só individualmente mas como sociedade de descarregar a nossa fúria, o nosso medo, o nosso temor, a nossa fragilidade. Descarregarmos em cima de uma vítima que nós mandamos para fora dos nossos olhos.
É aquilo que um filósofo de inspiração fortemente cristã, René Girard, trabalhou muito no esquema do bode expiatório. Ele diz que é muito fácil embarcarmos nesta lógica e dá o exemplo de S. Pedro. S. Pedro, que conhecia Jesus muito bem e que devia defendê-lo, quando no momento da Paixão estão ali à volta da fogueira e Jesus é preso já se percebe que aquilo tudo vai acabar muito mal. Há uma criada do Sumo Sacerdote que diz: “Olha lá, tu não és um deles?”, ele diz: “Não, não sou, não conheço esse homem.” E nega Jesus por três vezes.
René Girard diz que este é o desejo mimético, nós ficamos com o desejo de imitar a multidão, a massa e não temos a força de cortar e dizer: “Não, é preciso fazer outra coisa. Não, ele não tem a culpa toda.” Nós não podemos descarregar a nossa responsabilidade num bode expiatório que escolhemos para ser ele a carregar com as nossas culpas e com aquilo que todos tínhamos a responsabilidade de fazer e não fazemos.
Nesse sentido, a tradição bíblica e cristã vai noutra linha, que é dizer assim: em vez de transferir a responsabilidade, nós assumimos a culpa, nós assumimos a transgressão, nós assumimos o pecado. Nós vemos isso quer no profeta Isaías, nesta figura misteriosa do servo do Senhor, quer no autor da carta aos Hebreus, que faz uma belíssima teologia, mas que ao mesmo tempo é quase impenetrável, difícil para os nossos conceitos, que é a teologia de Jesus Sumo Sacerdote, Jesus como aquele que faz o sacrifício da sua própria vida, e que, no fundo, é isto que nós repetimos em cada Eucaristia.
O que é que está por detrás disto? Está aquilo que para nós é mais fácil: é transferir, é culpar o outro, é dizer “Se não fosse isto, se tu não tivesses dito aquilo.” É sempre o outro que tem a nossa culpa. E este, o Servo, Jesus é aquele que assume sobre Si o peso de muitos, aquele que assume voluntariamente sobre Si as culpas, os pecados, as fragilidades.
Por isso Jesus inverte esta lógica, a lógica que nos coloca como adversários uns dos outros, a lógica da competição, a lógica que nos faz querer salvar a nossa pele – queremos lá saber de como o outro fica ou não fica. Jesus ensina-nos a quebrar com esta lógica e a dizer: “Não, sou eu que carrego a culpa, e sou eu que dou a minha vida pelos outros.” Esta figura do servo sofredor que se oferece a si mesmo para ser espancado, para carregar sobre si os castigos todos, é a figura do justo, a figura da vítima da história – mas a figura da vítima que nós, na nossa cultura dominante, não queremos ver, não queremos saber, pois as vítimas não têm lugar, as vítimas que não nos incomodem.
A experiência bíblica e cristã coloca a vítima como um modelo para nós. Por isso é que Jesus é a vítima de expiação pelos nossos pecados, como vai dizer a carta aos Hebreus : “Mas é Ele, Jesus enquanto vítima, Jesus enquanto assume Ele próprio, enquanto aceita dar-Se, que Se torna para nós o grande modelo, que Se torna para nós o grande sinal, o grande ensinamento, a grande lição.
Como é que nós somos chamados a ter fé? Como é que nós somos chamados a viver? Somos chamados a viver à maneira de Cristo, cortando com este impulso que é tão forte em nós, o impulso de culpar os outros, o impulso de nos vingarmos, o impulso de nos sobrepormos e aceitarmos fazer o inverso. Fazer o inverso que é aceitar a lógica da dádiva, a lógica do dom, a lógica do sofrer pelos outros, a lógica do serviço aos outros.
Quando estes apóstolos vieram ter com Jesus a dizer “Senhor, senta-nos um à Tua direita e outro à Tua esquerda” quem não gostava? Quem de nós não gostaria de estar sentado à direita ou à esquerda do Senhor na sua glória? Mas Jesus diz: “Não é isso que é importante, o importante é tu tornares-te o servo de todos e o último de todos, porque o Filho do Homem veio para servir.” Nós identificamo-nos com Jesus na medida em que nos despojamos de nós próprios, na medida em que desconstruímos esta lógica que há em nós de agressividade, de autodefesa, de sobrevivência, de afirmação pessoa, na medida em que desconstruímos e nos colocamos a servir, a aceitar ser o último. Quem é que aceita ser o último?
Nós pensamos: “É o último quem não tem hipóteses de ser o primeiro”, porque no fundo o importante é ser o primeiro. Mas Jesus diz: “Não, o importante é ser o último.” É alguma coisa que nos faz tombar, é alguma coisa a que nós dizemos “É absurdo.” A nossa carne grita outra coisa, a nossa vontade quer outra coisa. Nós queremos o sucesso, queremos triunfar, queremos afirmar-nos, e Jesus diz: “Queres isso? Então o caminho é este: é o caminho do serviço, é o caminho do apagamento, é o caminho da humildade, é o caminho da aceitação vitimária. Aceita tu ser a vítima, coloca-te tu no lugar da vítima, no lugar do mais fraco, no lugar do mais pobre, no lugar do excluído, coloca-te aí, coloca-te aí. E então, receberás o batismo que Eu vou receber, e tomarás o cálice que Eu vou beber.”
É muito belo este trecho da carta aos Hebreus porque diz-nos o seguinte: “Por causa disto (por causa do gesto de Jesus, que é um gesto em rutura com aquilo que a carne e o sangue nos ensinam, e com aquilo com que a nossa cultura nos vacina), por causa de Jesus, cheios de confiança, nós podemos ir ao trono da graça a fim de alcançarmos a misericórdia.”
Um caminho novo se abre a nossos pés
António Couto
1. O Domingo XXIX do Tempo Comum oferece-nos um pequeno extrato do chamado «Quarto Canto do Servo de YHWH» (Isaías 53,10-11). O justo, meu Servo, diz Deus, justificará muitos, diz Deus. Profeta «profetizado»: eis a verdade do profeta-servo. Não fala, mas é falado: fala Deus dele (Isaías 52,13-15; 53,11-12); falamos nós dele (53,1-10). Nós, batendo no peito, reconhecendo que as suas chagas não são o seu castigo merecido, mas a cura para a nossa malvadez. Entram pelos olhos: são a imagem do que há dentro de nós. De facto, vendo bem aquelas chagas, temos mesmo de reconhecer que foi a nossa violência e malvadez que as produziu. Diagnosticada a doença, podemos lançar mão do remédio. Deus apresenta-o como aquele que, entregando a sua vida à nossa violência, atravessa a nossa violência, não combatendo-a com mais violência, o que só aumentaria o caudal da violência, mas absorvendo-a e sofrendo-a, e abraçando-a, dissolvendo-a e absolvendo-a por amor: é assim que nos justifica, isto é, nos transforma de pecadores em justos: milagre do perdão e da recriação do nosso Deus.
2. Faz-nos bem a seguir cantar demoradamente com o Salmo 33: «Desça sobre nós a vossa misericórdia», e contemplar com encanto e emoção o rosto do novo sumo-sacerdote, Jesus, Filho de Deus, posto por escrito diante dos nossos olhos no trono da Cruz (Gálatas 3,1), para o vermos bem e para nos vermos bem: outra vez um rosto desfigurado pela nossa violência e malvadez, e a ternura daquele olhar de graça, que nos redime e salva. É a extraordinária lição de Hebreus 4,14-16.
3. E voltamos ao CAMINHO com Marcos 10,35-45. É a vez de Tiago e João, que vão no CAMINHO desde o princípio, agora que o CAMINHO se aproxima do seu termo, se aproximarem de Jesus com um estranho pedido: «“Mestre (didáskale), queremos que aquilo TE pedimos TU nos faças”. ELE então disse-lhes: “Que quereis que EU vos faça?” Eles então disseram-LHE: “Dá-nos que um à Tua direita e um à esquerda nos sentemos na Tua glória”» (v. 35b-37). Vão de pé no CAMINHO, mas querem SENTAR-SE, não no chão e na valeta, mas em lugares de destaque. O narrador diz-nos que os outros Dez ficaram indignados. Entenda-se: não tanto pela reprovação que o pedido dos dois irmãos lhes merecia, mas porque também eles pensavam a mesma coisa, e se viram antecipados.
4. Jesus chama-os todos para si, para lhes dizer ao coração que há os CHEFES deste mundo que mandam e tiranizam e tiram a vida, e há os SERVOS que servem e dão a vida por amor, isto é, justificam.
5. E aí está Jesus a apresentar-se de novo como verdadeiro Mestre pró-ativo, que sabe o CAMINHO, ensina o CAMINHO, faz o CAMINHO, é o CAMINHO: veio para SERVIR e DAR A VIDA por amor.
6. Mas tudo ficará mais claro, quando, no próximo Domingo (XXX) se vir bem o confronto produzido pelo episódio do Cego de Jericó (Marcos 10,46-52), paradigmática e pedagogicamente colocado no termo do CAMINHO.
7. O Cego está sentado (a posição ansiada por João e Tiago e pelos outros dez!) à beira do caminho, na valeta. Grita porque, sendo cego, é um excluído, e há, portanto, entre ele e a sociedade e Deus, pensa ele, uma grande distância. Tem de gritar, portanto, para vencer essa distância. Mas aí está o Mestre pró-ativo: PÁRA, descendo ao nível do cego, e CHAMA, incluindo o excluído, anulando a distância. Sem hesitação, o cego atira logo fora o manto, que constitui a sua subsistência, a sua vida (tinha-o estendido à beira do caminho, e era nele que os transeuntes deitavam as esmolas), e, com um salto, de forma decidida e enérgica, fica no lugar certo, junto de Jesus. Jesus faz-lhe a mesma pergunta que ouvimos hoje fazer a João e a Tiago: «Que queres que Eu te faça?». Resposta óbvia do cego: «Que eu veja!». Ordem nova de Jesus: «VAI!».
8. Poucos se apercebem. Mas «VAI!» não é a resposta adequada àquele pedido do cego: «Que eu veja!». A resposta adequada seria: «Vê!», como está, de resto, no episódio paralelo de Lucas 18,42.
9. Mas, de facto, o cego obedeceu à ordem nova de Jesus. Diz-nos o narrador que SEGUIA JESUS NO CAMINHO! Note-se aquele SEGUIA, que é um imperfeito de duração, que implica um seguimento de forma continuada. Modelo perfeito do discípulo de Jesus.
10. Vejam-se atentamente os confrontos: 1) o cego está SENTADO na valeta, mas põe-se de pé; de pé vão os discípulos de Jesus, mas querem SENTAR-SE, e não na valeta; 2) o cego deixa tudo (atira fora o manto), mas os discípulos querem saber o que ganham por terem deixado tudo (Marcos 10,28); 3) o cego está à beira do CAMINHO, mas entra no CAMINHO para seguir Jesus no CAMINHO; o homem rico de Marcos 10,17-22, que encontrámos no Domingo XXVIII, entra no CAMINHO, mas sai logo do CAMINHO…
11. Tantos desafios e provocações, modelos e contra modelos, para nós, discípulos que hoje seguimos Jesus no CAMINHO!
12. Decididamente, não podemos continuar apenas a fazer que seguimos Jesus no CAMINHO, tendo em conta apenas os nossos interesses e olhando este mundo com indiferença e calculismo. Forçoso é que mudemos de atitude, deixando imprimir no nosso coração e no nosso rosto o estilo de vida de Jesus: pobre, despojado, feliz, apaixonado, ousado, próximo e dedicado.