XXVIII DOMINGO DO TEMPO COMUM (B)
Marcos 10, 17-30

Referências bíblicas:
- 1ª leitura: Sb 7,7-11
- 2ª leitura: Hb 4,12-13
- Evangelho: Mc 10,17-30
Desprende-te
José Tolentino Mendonça
Ouvimos muitas vezes dizer que na nossa época faltam os mestres. Nós temos tantos especialistas, mais do que nunca a técnica e a ciência evoluíram, ganhando um espaço, um protagonismo, nas nossas sociedades. Mas faltam-nos os mestres capazes de fazer uma síntese, capazes de nos ajudar de uma forma verdadeira, sapiencial, a encontrar o sentido para aquilo que vivemos, o sentido para os nossos caminhos, para as nossas procuras e para as nossas histórias.
Eu não sei se nos faltam mestres ou não. O que eu sei é que cada um de nós é colocado perante a questão da sabedoria. Cada um de nós é chamada e é chamado a encontrar uma sabedoria para a sua vida. Isto é, a vida não pode ser apenas a soma das possibilidades que eu já tenho e estar a descontar dias num calendário. A vida tem de ser mais do que isso. Aquilo que ilumina, argamassa, dá conteúdo e alicerça a vida tem de ser uma sabedoria.
Sabedoria significa uma visão global da própria vida, não uma visão parcial. Significa uma visão de conjunto que abarque não apenas o agora mas a globalidade da nossa vida, não apenas o que nós fomos, o que nós seremos. Uma narrativa que seja capaz de conter o nosso nascer e o nosso morrer, a nossa vida e a nossa morte. E forneça uma luz que seja credível para nos iluminar. Nós precisamos de uma sabedoria, senão vivemos às cegas. Senão vivemos ora dando uma importância excessiva a isto, ora agarrando-nos àquela paixão, ao último entusiasmo, e acabamos por ficar reféns ora das nossas ilusões, ora das nossas frustrações. Mas falta-nos um alicerce, falta-nos um caminho, um caminho seguro, um caminho claro que vamos encontrando, construindo, aprofundando em cada dia. As leituras de hoje falam-nos disso.
A carta aos Hebreus diz: “A sabedoria é a palavra de Deus que nós somos chamados a acolher nas nossas vísceras, na dobradiça dos nossos ossos.” Isto é, nos pontos mais verdadeiros da nossa condição humana, nós somos chamados a receber a Palavra. A Palavra não é apenas um dispositivo teórico e ideológico que nós vamos construindo, uma série de convenções rituais que nos ajudam confortavelmente a viver, mas a palavra argamassa a mulher e o homem que nós somos.
A primeira leitura do livro da Sabedoria usa um sinónimo, em vez de Palavra de Deus usa o termo “sabedoria” e apresenta-nos o Rei Salomão. É um texto muito belo este que nós lemos, porque Salomão foi o rei mais poderoso de Israel, aquele que construiu o Templo, que viveu numa condição de prosperidade e paz política como nenhum outro rei. Salomão diz: “Eu preferi às riquezas e aos cetros a sabedoria. Ela para mim foi sempre a estrela, a coisa mais importante.” E é, no fundo, essa questão que nos é colocada: Qual é o nosso fio condutor? Qual é o nosso fio condutor? O que é que nós seguimos? Qual é a finalidade que nós sentimos para a nossa vida? Porque é importante isso estar explicitado para cada um de nós.
Não pode ser apenas chegar lá por intuição ou às apalpadelas. Não, cada um de nós tem de dizer: “O sentido da minha vida é este, aquilo que eu procuro é isto. Mais ou menos, na incerteza das minhas possibilidades, mas é isto, é isto que eu procuro. E, se eu procuro isto, então eu vou viver numa coerência, eu vou dar consistência aos meus próprios passos. Não posso acreditar numa coisa e viver de uma forma completamente contraditória com aquilo que eu persigo, com aquela sabedoria que eu identifiquei. Mas as nossas vidas são chamadas a fazer uma coisa só com aquele núcleo de verdade fundamental que para nós é a nossa âncora, é a nossa chama, é a nossa estrela.
O Evangelho dá-nos um caminho e conta-nos este encontro de Jesus com este homem bom. Este homem que procurava cumprir, procurava realizar, procurava acertar desde a sua juventude, vivia energicamente a dizer um sim. Isso era verdade nele. Quando Jesus lhe diz:
“ – Tu sabes os mandamentos, cumpre-os. Isso é um caminho.”
Ele diz:
” – Eu já tenho cumprido tudo isso desde a juventude.”
Jesus olha para ele e olha com simpatia, vê que é verdade – há ali uma situação de empatia. Jesus estava perante alguém que fazia da sua vida uma obra sábia, uma obra sapiente, uma obra de respeito. E tem simpatia por ele. Mas diz-lhe esta palavra: “Falta-te uma coisa, falta-te uma coisa.” Porque mesmo nas vidas que parecem acabadas e completas falta uma coisa.
É interessante que muitas vezes no Evangelho, e aqui se vê o jeito sapiencial de Jesus, Jesus é um verdadeiro mestre das nossas vidas, muitas vezes Ele deixa-nos com uma frase assim. No episódio de Marta e Maria, por exemplo, Jesus vira-se para Marta atarefada, só a pensar no fazer, no fazer, e Jesus diz: “Marta, Marta só uma coisa é necessária.” E isto é uma chamada ao contrário das nossas dispersões. Fazemos isto e aquilo, e aquele outro, e só uma coisa é necessária. A pergunta é se nós estamos a fazer em cada momento a coisa necessária, e se nós estamos a optar pela coisa necessária, a dar-lhe a prioridade devida. Hoje, Jesus diz uma outra coisa, diz: “Falta-te alguma coisa.”
A verdade é que a cada um de nós falta alguma coisa. Falta fazer, falta sobretudo ser alguma coisa. Não podemos pensar na nossa vida como um parque de estacionamento onde já chegámos e vamos vivendo mais ou menos, com maior esperança, com maior inocência ou com maior cinismo. Vamos vivendo a nossa vida porque já sabemos tudo o que vai ser. Não, “falta-te uma coisa”, e se queremos levar esta aventura humana até ao fim falta-nos uma coisa. Jesus para aquele homem diz-lhe: “Falta-te uma coisa: vende tudo o que tens, dá-o aos pobres, vem e segue-Me com maior radicalidade.”
Porque não há liberdade sem desprendimento, não se pode pensar que a liberdade nos é dada. Não, a liberdade não nos é dada, a liberdade é conquistada, é conquistada. Ninguém nos dá a liberdade. Podem-nos dar uma liberdade de fora, um quadro da liberdade, mas nós podemos estar completamente presos e manietados num quadro de liberdade, ou num quadro libertário até. A liberdade é conquistada e a liberdade, antes de tudo, é uma atitude interior. Porque nós vemos na primeira geração dos cristãos, eles estavam presos, acorrentados e estavam livres. E S. Paulo escreve a Timóteo: “Ninguém põe grilhões na palavra de Deus. “ Isto é, nós podemos estar numa prisão e estar livres, porque a liberdade não é um condicionalismo exterior, a liberdade é uma conquista do nosso coração.
E como é que a liberdade se conquista? Eu não conheço outro caminho senão pelo desprendimento. Pelo amor, pelo abandono, pela entrega, pela convicção, pela fé, mas também pelo desprendimento. Para eu escolher uma coisa tenho de deixar outras, não posso levar tudo. A vida espiritual não é um grande carro de mudanças, é uma bicicleta. O homem e a mulher espiritual andam de bicicleta, não andam de camião a querer levar tudo atrás de si. Nós temos de carregar connosco aquilo que cabe numa bicicleta, a vida mínima, o essencial. Mas isso é uma escolha, é uma escolha difícil de fazer porque nos prendemos verdadeiramente, há prisões.
Nós vemos, por exemplo, com os ricos. Podíamos pensar que quem tem muito dinheiro a dada altura deixa de preocupar-se com dinheiro. É o contrário, quem tem muito dinheiro só pensa em dinheiro, e torna-se obcessivamente preso àquele dinheiro. Quem tem muito quer ter ainda mais, não quer partilhar, não quer fazer alguma coisa com aquilo – salvo raras, honrosas, generosas exceções. Mas isto que Jesus critica, estes ricos que podemos ser nós, que pode ser a riqueza material e as outras riquezas existenciais que transportamos, estes ricos são aqueles que ficam presos, fazem do que têm a sua prisão. Esta arte do desprendimento, como arte espiritual que nós temos de praticar, é fundamental.
Depois, o outro passo que Jesus nos ajuda a dar é o passo da dádiva, do dom: “Vende tudo o que tens.” Isto é, “desprende-te.” Cada vez mais radicalmente, e nós sabemos que é assim, temos que nos desprender mais para ser mais livres, senão não experimentamos uma verdadeira liberdade e uma verdadeira sabedoria.
Mas depois, nós desprendemo-nos para viver a experiência da dádiva, a experiência do dom, do dom. A nossa vida fica como o pão duro no saco, que acaba por ser deitado fora, se nós não colocamos esse pão sobre a mesa. Isto é, se nós não nos colocamos como o pão sobre a mesa para que os outros comam. Aquilo que nós não damos, perde-se. Nós só possuímos, nós só encontramos, nós só somos a vida dada, a vida partilhada, e é essa a grande lição de Jesus. Ele está todo neste pão que nos oferece como alimento. A vida de cada um de nós é chamada a ser dom, dom. Uma vida onde não há dádiva é uma vida que está a perder-se, é uma vida que é vivida sem a sabedoria de Jesus. Nós temos de redescobrir o dom na nossa vida – o dom, o serviço, a oferta, o comprometimento, o empenho. Aquele ícone do lavar os pés uns aos outros, que S. João nos dá na última ceia, deve ser a imagem que cada um de nós persegue.
Depois Jesus diz: “Dá aos pobres, aos pobres.” Há um encontro com os pobres que todos nós somos chamados a ter. A pobreza entendida de diversas formas, é verdade. Mas cada um de nós tem de ter um encontro com os pobres.
Eu lembro-me (penso já ter contado esta história) de uma pessoa que conheci que teve uma carreira política, internacional, académica absolutamente notável, distintíssima. Ele, quando se reformou, disse-me: ”Padre Tolentino, a minha vida tem sido uma vida realizada, cheia, só tenho a agradecer. Mas falta-me uma coisa, e que toda a vida, em todos estes cargos que eu tive, nunca tive a oportunidade de fazer: encontrar-me com os pobres.” Ele passou de um cargo internacional muito importante para a Conferência Vicentina da sua paróquia, para ir ao encontro dos pobres. E, neste homem, nós reconhecemos um cristão, reconhecemos um cristão. Porque é preciso uma liberdade enorme e um ouvir continuamente no seu coração esta Palavra de Jesus: “Falta-te uma coisa, falta-te uma coisa.” Ele sabia que lhe faltava ir ao encontro dos pobres.
Esse encontro não é um encontro que nós podemos não realizar. Há uma página do Evangelho que os pobres guardam, escrita nas suas vidas. E se nós a quisermos ler, temos de os servir, temos de os encontrar, temos de os acolher, temos de os ouvir para entender essa página do Evangelho.
Depois, Jesus diz: “Feito isto, vem e segue-Me.” O seguimento de Jesus é assim um seguimento que transforma a nossa vida. Nós não podemos pensar que estamos a seguir Jesus e a nossa vida contínua incólume, continua a mesma, continua a vida que a gente quis, a vida que a gente escolheu, a vida que a gente sonhou. Bem-aventurados aqueles a quem a vida deu o que eles não sonharam, que tiveram de viver o que eles não pediram, que tiveram de gerir aquilo que eles não estavam à espera. Mas a abertura, a hospitalidade, a esse inesperado da vida, a isso com o qual não contávamos mas temos de amar, temos de abraçar, temos de servir é que nos torna seguidores de Jesus.
Queridas irmãs, queridos irmãos, há uma sabedoria que é o próprio Jesus. Jesus é a sabedoria do Pai. Nós precisamos de olhar para Jesus não apenas como o nosso salvador que deu a vida por nós, que dá a vida por nós, mas temos de olhar para Jesus também como a nossa sabedoria. Isto é, o nosso mapa, o nosso mapa. Todos os dias nós somos viajantes, somos peregrinos, Jesus é o nosso mapa nas atitudes de viver, nas escolhas mais simples ou mais decisivas da nossa vida, Jesus dá-nos o critério, Jesus dá-nos a chave. Nesse sentido, passo a passo, todos juntos, caminhamos.
Livre para seguir a Cristo
Raymond Gravel
Quanto mais nos engajamos na busca de Cristo, mais se particularizam as exigências do Reino: há duas semanas, era acolher o outro, o outro diferente; na semana passada, era a não exclusão do outro, quem quer que ele fosse; e nesta semana, é o nosso modo de ser para o outro, para seguir Cristo. Para ser, é preciso passar do ter e do fazer ao ser. Que isso significa?
Durante muito tempo e ainda hoje, são numerosos aqueles e aquelas que dizem que a primeira qualidade de um crente, de um cristão, se verifica pelo que ele faz ou tem; é o que chamamos de atitude farisaica, ou seja, são aquelas e aqueles que possuem as virtudes e as praticam: o jejum, a oração, a esmola caracterizam muitas vezes esses bons cristãos. Por outro lado, o que o evangelho quer não é ter ou fazer, e sim ser, mas isso exige muito. O exegeta francês Jean Debruynne escreve: “Um homem corre para Jesus e se põe de joelhos diante dele. Manifestamente, este homem quer agir bem ou mesmo fazer o que houver de melhor, mas ele está, justamente, no fazer. Fazer é ainda ter, ter feito, ter realizado, ter conseguido, ter resultados… enquanto o evangelho é ser. O evangelho não é para fazer. É para viver. Não se trata de colecionar os resultados, mas, ao contrário, de desapossar-se de todas as bagagens que carregamos conosco para sermos livres para seguir Jesus.”
Eis o próprio sentido daquele episódio do Evangelho que dizemos do jovem rapaz rico. Este Evangelho de Marcos possui três partes: 1. O encontro com o homem rico (vv. 17-22); 2. A conversa com os discípulos (vv. 23-27); e 3. A recompensa (vv. 28-30).
1. O encontro com o homem rico.
A história contada por Marcos quer levar o leitor cristão a ir além da Lei, a qual é simplesmente traduzida pelo fazer ou não fazer. Jesus disse: “Você conhece os mandamentos: não mate; não cometa adultério; não roube; não levante falso testemunho; não engane; honre seu pai e sua mãe” (Mc 10,19). Em relação à Lei com suas permissões e, sobretudo, suas proibições, o homem afirmou: “Mestre, desde jovem tenho observado todas essas coisas” (Mc 10,20). Em outras palavras, ele seguiu a Lei com todo o rigor, fez tudo o que um bom cristão deve fazer. Tanto é verdade que o evangelista acrescentou: “Jesus olhou para ele com amor” (Mc 10, 21 a).
Mas preste atenção! O amor é perigoso, exigente, contagioso, ele transforma, libera, interpela, é ilimitado: “Falta só uma coisa para você fazer: vá, venda tudo, dê o dinheiro aos pobres, e você terá um tesouro no céu. Depois venha e siga-me” (Mc 10, 21 b). Mas espere um instante: para ser cristão, é proibido possuir bens, ter talentos, deter poder, ser bem-sucedido, possuir diplomas e competências? Eu penso que não! O evangelho, afinal, não louva a pobreza; não faz dela uma virtude. O que São Marcos diz, por outro lado, é que é preciso ser livre para seguir Cristo. Podemos muito bem ser ricos, cheios de talentos, ter adquirido muitos diplomas e conhecimentos, exercer a autoridade em nossas funções. No entanto, precisamos ser capazes de nos liberar para amar verdadeiramente. Um homem rico e famoso afirmou: “Sou rico de bens dos quais sei prescindir”.
Todavia, a riqueza pode se tornar um obstáculo para amar, um impedimento para viver o evangelho e seguir Cristo. Não é à toa que o evangelista afirma que, diante do convite de Cristo, aquele homem virtuoso, bom crente, praticante da Lei ao pé da letra, “ficou abatido e foi embora cheio de tristeza, porque ele tinha muitas propriedades” (Mc 10, 22). Ele era incapaz de se liberar para amar, portanto, incapaz de seguir Cristo. Seguiu e vai continuar a seguir a Lei, mas é incapaz de seguir Cristo.
2. A conversa com os discípulos.
Essa história do homem rico dá a oportunidade ao Cristo do Evangelho de Marcos de dispensar um ensinamento sobre ser cristão e a exigência que disso decorre. Não é fácil ser cristão, diz o Evangelho, principalmente quando alguém possui muitas riquezas: o talento, o poder, o dinheiro, a competência, o conhecimento, etc. “Como é difícil para os ricos entrar no Reino de Deus!” (Mc 10, 23). Mas por quê? Simplesmente porque ser cristão exige o desapossamento de nós mesmos, a renúncia a nós mesmos. Quanto mais possuímos, mais difícil se torna nos separarmos do que temos. E é clara a imagem utilizada pelo evangelista para ilustrar tal dificuldade: “É mais fácil passar um camelo pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no Reino de Deus!” (Mc, 10, 25). Marcos fez alusão à portinha que se encontrava nos edifícios. Uma portinha pela qual as pessoas passavam se curvando, mas os animais não conseguiam passar por ela. No entanto, não era impossível fazer com que um animal passasse por essa porta; bastava desvencilhá-lo de sua carga, desatrelá-lo e fazê-lo dobrar as patas. No fundo, a mensagem de Marcos consiste em afirmar que a mesma coisa vale para os ricos: eles devem desvencilhar-se de seus bens, libertar-se de suas riquezas, desapossar-se de si mesmos, dobrar as pernas, para viver o evangelho e seguir Cristo: “Para os homens isso é impossível, mas não para Deus. Para Deus tudo é possível” (Mc 10, 27).
3. A recompensa.
A observação de Pedro visou todos os cristãos do século I e aqueles de hoje que tiveram e que ainda têm de renunciar a muitas coisas para seguir Cristo. O evangelista explicou que tais renúncias são feitas por causa de Jesus, mas também por causa da Boa Notícia, e a Boa Notícia diz respeito a todos os cristãos de todos os tempos…
Em suma, abandona-se uma coisa e recebem-se muitas coisas, pois cresce a família cristã. Também, como Marcos é realista, ele sabe que a perseguição faz parte da condição de ser cristão em seu tempo.
Para concluir, a exigência de ser cristão pode ser facilitada pela Sabedoria que a primeira leitura de hoje personifica em Deus mesmo. Preferi-la ao ouro, à prata, à beleza e à saúde nos permite a superação de nós mesmos e nos guia pelo caminho da fé. Esta sabedoria é mais que a luz, porque o brilho dela nunca se apaga (Sb 7,10). E se a Palavra de Deus está viva, como diz a carta aos Hebreus, nossa segunda leitura de hoje, ela não pode estar encerrada ou petrificada num livro, por mais belo que este seja. A Palavra de Deus deve necessariamente ser reescrita, reinterpretada e atualizada hoje, em nossa história e nas novas realidades de nossas vidas. Senão, recusamos a Deus o direito à Palavra, que Ele só pode exercer através de nós, os crentes…
wwwihu.unisinos.br
A caridade é a alma da Missão
Romeo Ballan, mccj
«No mundo existe o suficiente para as necessidades de todos, mas não o suficiente para avidez de cada um» (Gandhi). Palavras de um não cristão, em sintonia com o severo ensinamento de Jesus acerca do uso dos bens materiais e o perigo das riquezas. O evangelista Marcos acompanha o catecúmeno e o discípulo à descoberta progressiva da «boa nova de Jesus, Cristo, Filho de Deus» (1,1), revelando pouco a pouco a sua identidade através dos milagres e dos ensinamentos. Na secção central do seu Evangelho, Marcos insere os requisitos mais exigentes da moral cristã, que ele reagrupa à volta de três temas: as condições para seguir Jesus (renegar-se a si mesmos, tomar a cruz: 8,32-38); as exigências da vida familiar (indissolubilidade do matrimónio, amor e respeito pelas crianças: 10,2-16); o uso dos bens materiais (o perigo das riquezas, a recompensa a quem abandona os bens terrenos: 10,17-31).
Os três temas são intercalados por três anúncios da paixão e da ressurreição (8,31; 9,31; 10,32-34); e são inseridos entre dois milagres de Jesus que abre os olhos a dois cegos: o cego de Betsaida (8,22-25) e o cego de Jericó (10,46-52). São significativas as palavras que Jesus dirige a este cego: «Vai, a tua fé te salvou». O cego, curado, torna-se discípulo e segue Jesus. No Evangelho de hoje, Marcos diz que o caminho da moral cristã – e portanto, a salvação! – é «impossível aos homens, mas não a Deus!» (v. 27). Tudo é possível a Deus, o qual nos abre os olhos sobre o caminho a seguir e, com a fé, dá-nos a força de O seguir.
Cristo convida a pôr em primeiro lugar as pessoas, não os bens materiais; Ele é pelos pobres, mas contra a pobreza; não propõe a pobreza, mas a comunhão; os bens só têm sentido se são sinais e instrumentos de encontro com os outros, pela partilha. Jesus não condena de modo nenhum as riquezas, não faz o elogio da miséria e da fome, mas ensina como usar os bens: com honestidade, justiça e caridade. Ao jovem do Evangelho, que «possuía muitos bens» (v. 22) e era um fiel observante dos mandamentos (v. 20), o Mestre dirige um olhar repleto de amor (v. 21), convidando a ir além da observância da lei, a dar um salto de qualidade: isto é, a entrar na lógica da caridade e da partilha dos bens com os pobres. Deste modo se afirma a própria liberdade perante as coisas, que todavia são belas e boas, sem ficar dependentes ou prisioneiros das mesmas. Só assim a vida é vivida com gratuidade: como dom e partilha com os outros. No seguimento do Senhor descobre-se a riqueza e a alegria do Tesouro (v. 21).
O homem sábio (I leitura) descobre que a Sabedoria que vem de Deus vale mais que as riquezas, mais que a saúde e a beleza (v. 9-10). A palavra de Deus «viva, eficaz» (II leitura), que sonda o sentido das coisas e a profundidade do coração humano (v. 12), ajuda a compreender que no cristianismo a virtude principal não é a pobreza e nem sequer o abandonar tudo, mas a caridade, entendida como entrega de si mesmos e das suas coisas por um serviço de amor aos outros. Por isso a caridade é a alma da Missão: o amor impele à missão e à solidariedade. A caridade é sinal e instrumento de comunhão entre as Igrejas, no intercâmbio de dons.
As palavras de Jesus ao jovem rico têm uma ressonância especial no Outubro missionário: Vai, dá aos pobres, vem e segue-me… A missão é ir, é sempre um sair de si mesmos, é exultar na descoberta do Tesouro que preenche a vida, é sentir a urgência de comunicar tal experiência, é descobrir que os outros são mais importantes do que as coisas, é partilhar bens espirituais e materiais com os mais necessitados… É esta a missão que dá sentido pleno à vida e sabor novo à família humana. Dão testemunho disso os grandes missionários, que o calendário recorda no mês de Outubro: Francisco de Assis, Daniel Comboni, João XXIII, Teresa de Ávila, os santos mártires canadianos, Laura Montoya, António Maria Claret.
Seguir Cristo não é discurso de sacrifícios,
mas de multiplicação: deixar tudo para ter tudo
Ermes Ronchi
Jesus saiu para a estrada, quer dizer: Jesus mestre livre, aberto a todos os encontros, a cada um que cruze os seus passos ou o espere na curva do caminho. Mestre que ensina a arte do encontro (cf. Marcos 10, 17-30).
E eis que um tal, sem nome, corre ao seu encontro: como alguém com pressa, pressa de viver. Como faço para receber a vida eterna? Termo que não indica a vida sem fim, mas a própria vida do Eterno. Jesus responde elencando cinco mandamentos e um preceito (não defraudar), que não dizem respeito a Deus, mas às pessoas. Palavras que transmitem vida, a vida de Deus que é amor.
Mestre, isso já eu faço desde sempre. E não me preencheu a vida. Vive aquela bem-aventurança esquecida e criadora que diz: «Felizes os insatisfeitos, porque se tornarão buscadores de tesouros».
Agora faz também uma experiência emocionante, sente sobre si o olhar de Jesus, cruza os seus olhos amorosos, pode naufragar dentro deles: Jesus fixou o olhar sobre ele e amou-o. E se eu tivesse de continuar a narrativa, diria: agora ele volta para trás, agora fica sujeito ao encantamento do Senhor, não resiste àqueles olhos…
Em vez disso, a conclusão da narrativa vai na direção que não se espera: uma coisa te falta, vai, vende, dá aos pobres… Serás feliz se fizeres feliz alguém; faz outros felizes se quiseres ser feliz.
As regras do Evangelho sobre o dinheiro podem reduzir-se apenas a duas: a) não acumular, b) o que tens, tens para dividir. Não pôr a tua segurança no acúmulo, mas na partilha
E depois segue-me: dá uma reviravolta à tua vida. As balanças da felicidade pesam nos seus pratos a moeda mais preciosa da existência, que está no dar e no receber amor. O bom Mestre não pretende inculcar a pobreza naquele homem rico e sem nome, mas preencher a sua vida de rostos e nomes.
E ele foi embora triste porque tinha muitos bens.
Nos Evangelhos muitos outros ricos encontraram-se com Jesus: Zaqueu, Levi, Lázaro, Susana, Joana. Que têm de diferente estes ricos que Jesus amava, sobre os quais como o seu grupo se apoiava? Souberam criar comunhão: Zaqueu e Levi encheram as suas casas de comensais; Susana e Joana assistiram os doze com os seus bens.
As regras do Evangelho sobre o dinheiro podem reduzir-se apenas a duas: a) não acumular, b) o que tens, tens para dividir. Não pôr a tua segurança no acúmulo, mas na partilha.
Seguir Cristo não é um discurso de sacrifícios, mas de multiplicação: deixar tudo mas para ter tudo. Com efeito, o Evangelho continua: Pedro diz-lhe: Senhor, nós deixámos tudo e seguimos-te, que teremos em troca? Terás em troca cem vezes mais, terás cem irmãos e um coração multiplicado. Não renuncies, a não ser ao peso que te impede o voo. O Evangelho é adição de vida.
Ermes Ronchi
In Avvenire
Trad.: Rui Jorge Martins
http://www.snpcultura.org