XXVII DOMINGO DO TEMPO COMUM (B)
Marcos 10,2-16


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Referências bíblicas:
1ª leitura: Gênesis 2,18-24
Salmo: Sl 127(128)
2ª leitura: Hebreus 2,9-11
Evangelho: Mc 10, 2-16

Alguns fariseus aproximaram-se de Jesus para o pôr à prova: «É lícito a um marido repudiar a mulher?» (cf. Marcos 10, 2-16). Claro que sim, é pacífico, não só a tradição religiosa, mas a própria Palavra de Deus o legitimava.

Mas Jesus toma distância da lei bíblica: «Por causa da dureza do vosso coração, Moisés escreveu para vós esta norma». Jesus afirma uma coisa enorme: nem toda a lei, que nós dizemos de Deus, tem origem divina, por vezes ela é o reflexo de um coração duro.

Há algo que vale mais do que a letra escrita. Simone Weil di-lo de modo luminoso: «Colocar a lei antes da pessoa é a essência da blasfémia». E por isso Jesus, infiel à letra para ser fiel ao espírito, «ensina-nos a usar a nossa liberdade para proteger o fogo e não para adorar as cinzas» (G.  Mahler). A Bíblia não é um feitiço, requer inteligência e coração.

Jesus não pretende redigir outras normas, estabelecer novos limites. Não quer regulamentar melhor a vida, mas inspirá-la, acendê-la, renová-la. E por isso toma-nos pela mão e acompanha-nos por dentro do sonho de Deus, sonho fontal, originário, a olhar a vida não do ponto de vista dos homens, mas do Deus da criação.

Deus não legisla, cria: «Desde o início da criação fê-lo macho e fêmea, por isso o homem deixará o pai e a mãe, unir-se-á à sua mulher e os dois tornar-se-ão uma só carne». Jesus leva-nos a respirar o ar dos inícios: o homem não separe aquilo que Deus uniu. O nome de Deus é desde o princípio “aquele-que-junta”, a sua obra é criar comunhão.

A resposta de Jesus provoca a reação não dos fariseus, mas dos discípulos, que consideram incompreensível aquela linguagem e interrogam-no de novo sobre o mesmo assunto.

«Quem repudia a sua mulher e desposa outra comete adultério em relação a ela.» Jesus responde com novo distanciamento face à legislação judaica: «E se ela, repudiado o marido, desposa outro, comete adultério».

Na lei não havia paridade de direitos; à mulher, a parte mais fraca, não era reconhecida a possibilidade de repudiar o marido. E Jesus, como é seu habito, toma a parte dos mais fracos e eleva a mulher a igual dignidade.

Porque o adultério está no coração, e no coração é igual para todos. O verdadeiro pecado, mais do que transgredir uma norma, consiste em transgredir o sonho de Deus. Se não te comprometes a fundo, se não voltas a cozer e a reunir, se o teu amor é duro e agressivo em vez de doce e humilde, estás a repudiar o sonho de Deus, já és adúltero no coração.

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A parte mais longa do Evangelho deste domingo nos testemunha um confronto entre Jesus e alguns fariseus, que o põem à prova, tentam-no, buscando surpreendê-lo no erro em relação à tradição dos pais, sobre o tema da possibilidade do divórcio.

Esse anúncio evangélico é exigente e claro: por um lado, nos escandaliza, sobretudo se conhecemos a difícil realidade do evento nupcial; por outro, o mesmo trecho pode ser utilizado como um bastão, para julgar e condenar quem está em contradição com as palavras claras e plenas de parrhesía pronunciadas por Jesus.

Por isso, toda vez que eu tenho que pregar sobre esse texto, ponho-me de joelhos não só diante do Senhor, mas também diante dos cristãos e das cristãs que vivem o matrimônio, para lhes dizer que, certamente, eu releio as palavras de Jesus e as proclamo, mas sem julgar, sem ameaçar, sem a arrogância de quem se sente imune de culpas em relação a ele, lembrando aquilo que Jesus afirma em outro lugar: “Todo aquele que olha para uma mulher e deseja possuí-la, já cometeu adultério com ela no coração” (Mt 5, 28).

Quem lê essas palavras de Jesus não está do outro lado, em um espaço isento do pecado, mas, acima de tudo, deve se sentir solidário com aqueles que, na difícil tarefa de viver e na ainda mais difícil tarefa de viver em casal o evento matrimonial, caíram na contradição com a vontade do Senhor.

Portanto, não posso deixar de oferecer aqui algumas simples intuições de meditação, eco da palavra de Deus contida nas Sagradas Escrituras.

No milênio do Antigo Testamento, a prática do divórcio era comum em todo o Oriente Médio e no mundo mediterrâneo. O divórcio era uma realidade normatizada pelo direito privado, que o previa apenas por iniciativa do marido. O casamento era um contrato, sequer escrito, e devemos reconhecer que, no Antigo Testamento, não há nenhuma lei sobre o casamento.

O trecho do Deuteronômio a que os fariseus certamente se referem (Dn 24, 1-4), na verdade, pertence à casuística e não à doutrina, porque se concentra em um caso particular e, consequentemente, deve ser recebido com limites bem precisos. Naquele texto, afirma-se:

“Quando um homem se casa com uma mulher e consuma o matrimônio, se depois ele não gostar mais dela, por ter visto nela alguma coisa inconveniente (‘erwat davar, literalmente: “nudeza de qualquer coisa”), escreva para ela um documento de divórcio e o entregue a ela, deixando-a sair de casa em liberdade (Dt 24, 1; trad. Bíblia Pastoral).

Portanto, é contemplado o caso em que o homem encontra na esposa “alguma coisa inconveniente”, expressão bastante vaga que os rabinos interpretam de modos muito diversos; nesse caso, o marido tem a possibilidade de se divorciar.

Sob certas condições, portanto, o divórcio é permitido, e o seu procedimento está previsto, mas, a partir disso, não se pode concluir que, na Torá, na Lei de Moisés, haja uma doutrina sobre o casamento e uma disciplina precisa e concorde sobre ele.

Por outro lado, os profetas, os sábios e os próprio textos essênios não oferecem posições certas e claras que excluam o divórcio e proclamem que a Lei de Deus o veta. Apenas Malaquias testemunha uma palavra do Senhor simples, mas radical: “Eu odeio o repúdio” (Ml 2, 16).

Mas eis que Jesus é chamado pelos fariseus a se expressar precisamente sobre essa possibilidade: “É lícito que um marido repudie a sua esposa?”. Ele responde com uma pergunta: “O que Moisés vos ordenou?”. E eles a ele: “Moisés permitiu escrever uma certidão de divórcio e despedi-la [repudiá-la]”. É como se lhe dissessem: “Essa é a Torá!”.

Jesus, então, intervém de modo surpreendente: ele não entra na casuística religiosa a propósito da Lei; não começa a especificar as condições necessárias para o repúdio, como faziam os dois grandes rabis do seu tempo, Hillel e Shammai; não fica do lado dos rigoristas nem na dos laxistas.

Nada disso: Jesus quer voltar à vontade do Legislador, de Deus. Desse modo, ele nos fornece um princípio decisivo de discernimento ao ler e interpretar a Escritura: referir-se à intenção de Deus (e não a tradições humanas: cf. Mc 7, 8.13!), que, através da sua palavra posta por escrito, quer nos revelar a sua vontade.

Esta, então, é a réplica de Jesus aos seus interlocutores: “Foi por causa da dureza do vosso coração (sklerokardía) que Moisés vos escreveu este mandamento. No entanto, desde o começo (be-reshit, en archê: Gn 1, 1) da criação, Deus os fez homem e mulher (Gn 1, 27). Por isso, o homem deixará seu pai e sua mãe e os dois serão uma só carne (Gn 2, 24). Assim, já não são dois, mas uma só carne. Portanto, o que Deus uniu, o homem não separe!”.

Jesus volta ao desígnio do Criador, à criação do adão, o terrestre tirado da adamah, a terra (cf. Gn 2, 7; 3, 19), feito homem e mulher para que, juntos, os dois vivam na história, a história do amor, a história da vida, um diante do outro, rosto contra rosto, em uma responsabilidade recíproca, chamados no seu encontro a se tornar uma só realidade, uma só carne.

Nesse encontro de amor, há o chamado a ser amantes como Deus ama, sendo ele amor (cf. 1Jo 4, 8.16), de um amor duradouro, fiel, para sempre; nesse encontro, há a arte e a graça do dom gratuito um ao outro, começando pelo próprio corpo; há a aliança que faz com que o encontro seja história no tempo e, portanto, tenda ao “para sempre”, até a morte, para ir também além da morte.

Essa é a vontade de Deus ao criar o terrestre e ao colocá-lo no mundo como sua única imagem e semelhança (cf. Gn 1, 26-27). É um mistério grande, mas tão grande que é difícil para os humanos frágeis, fracos e pecadores vivê-lo plenamente.

Na verdade, sabemos quanta miséria se experimenta neste difícil encontro, como é fácil a contradição, como essa obra-prima da arte do viver juntos no amor é factível, mas nunca plenamente e somente com a ajuda da graça, com a eficácia do Sopro santo do Senhor. No entanto, o anúncio de Jesus permanece, em toda a sua clareza: “O que Deus uniu, o homem não separe”.

Logo depois, essa palavra dura e exigente é explicada por Jesus aos seus discípulos, na casa em que a comunidade se encontrava. E é explicada com um acréscimo extraordinário para a cultura do tempo, visto que Jesus coloca no mesmo plano a responsabilidade do homem e a da mulher: “Quem se divorciar de sua mulher e casar com outra, cometerá adultério contra a primeira. E se a mulher se divorciar de seu marido e casar com outro, cometerá adultério”.

Certamente, Moisés tentou humanizar a prática do divórcio, impondo que o marido seguisse uma via jurídica de respeito pela mulher. Mas Jesus, justamente olhando para a dureza de coração dos destinatários da Torá, ousa ir muito além, evidenciando a vontade, a intenção do Criador. Afinal, ele já havia feito isso várias vezes, revelando, por exemplo, a vontade de Deus sobre o sábado e sobre a sua observância (Mc 2, 23-28): sempre Jesus se faz intérprete autêntico da Lei, não através de vias legalistas, não através de interpretações fundamentalistas, mas anunciando profeticamente a vontade de Deus a todos, em particular aos pecadores públicos e aos excluídos, sempre acolhidos por ele, perdoados, nunca condenados.

A partir do anúncio da indissolubilidade do matrimônio, Marcos, mudando de cena, passa depois para o tema da acolhida aos pequenos. “Crianças” (paidía) são levadas e apresentadas a Jesus para que ele as toque e, portanto, através do contato físico, comunique as suas forças benéficas de cura e de bênção.

Na cultura judaica da época, as crianças não tinham nenhuma importância, de fato, eram tratadas como excluídas, assim como as mulheres e os escravos. A relação com um rabi é uma relação importante que diz respeito aos adultos, aqueles que são capazes de conhecer e observar a Torá. Por isso, os discípulos intervêm repreendendo as crianças, mas Jesus se irrita, fica indignado e os repreende, porque as crianças, assim como os outros “excluídos” e “marginalizados”, têm o seu lugar no reino de Deus.

Precisamente as crianças e aqueles que são semelhantes a elas pela sua pequenez e por serem descartados e postos às margens, são os primeiros beneficiários e destinatários do Reino. Não há aqui nenhuma referência hipotética à inocência das crianças, mas é evidenciada a sua condição de pobreza, de exclusão, de pequenez, que chama a atenção de Jesus. No máximo, ele sabe identificar nessas crianças uma exemplaridade na sua acolhida do dom do Reino: estupor, admiração, nenhum mérito enaltecido, mas a simplicidade de quem acolhe o dom dos dons.

E assim Jesus adverte aqueles que, na sua comunidade, gostariam de impedir aos excluídos, aos pobres, aos últimos o acesso a ele. Ao contrário, justamente a esses últimos vai a sua ternura, a sua bênção, o seu abraço, para que não se sintam mais abandonados ou marginalizados.

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Adão, ‘Ish e ‘Ishsha

Não esperemos de Gênesis 2 uma teoria completa da relação homem-mulher nem levantemos quanto a ele questões do feminismo do século XX. Trata-se aqui de uma espécie de poema, não de um tratado. Poema, no entanto, que dá o que pensar, se mais não fosse, ao menos pelos nomes que o texto dá ao homem e à mulher. Adão designa tanto o homem como a mulher, ainda que a mulher não fosse tirada da terra. Adão significa de fato “o ser que vem da terra”. A partir daí, surge toda a diversificação entre masculinidade e feminilidade. O português, por estas duas palavras de raízes diferentes, e com sonoridades, portanto, também diferentes, apoia-se nesta diferença. Já o hebraico, com as palavras ‘Ish e ‘Ishsha, apoia-se sobretudo na unidade. Aliás, o texto todo está construído para promover a unidade. Isto justamente porque o autor está muito consciente de que esta diferença pode ser também divisão. Em Gênesis 3,12 e 3,16, esta divisão é dada como fruto do pecado. No desígnio de Deus (“No começo”, como diz Jesus), as diferenças se conjugam numa unidade, em vez de se deteriorarem em divisões.

O animal e a mulher

Este título fará as ‘Ishsha todas gritarem de raiva! A situação da mulher reduzida à mesma posição do animal é, no entanto, o ponto de partida, uma vez que o universo humano é construído sob o signo do pecado. Em Gênesis 3,16, vemos o homem dominar a mulher, assim como o vemos, em 1,26, dominar os animais. O texto está escrito para que esta situação seja recusada. O macho, de certo modo, é que é semelhante ao animal, pois todos os dois são tirados da terra. E por que, então, o animal não é para o macho um “auxiliar semelhante a ele” quando este é o mesmo nome dado à mulher em 2,18? A meu ver, é aqui que o texto se supera. É claro que, ao fazer a mulher sair do homem, o autor introduz uma imagem inversa à do nascimento. Seria uma revanche patriarcal, do homem “nascido da mulher”? Aqui a mulher não se prende ao solo, exceto pela interposição do homem. Além disso, em 3,20, receberá o nome de Eva, que significa “Vivente”, mas não é a mesma palavra que em 2,7. A vida já é outra, para além do pecado e da morte. Arrisco timidamente uma explicação: a mulher é vivente não só pelo sopro, mas pelo Espírito que, em hebraico, é feminino; a feminilidade de Deus. Ela, aliás, é quem recebe a promessa da redenção (3,15). Do macho é dito apenas que é “pó e ao pó tornará”. Mais uma vez, temos de dizer que se trata de um poema, não de uma teoria.

“…e se unirá à sua mulher”

O texto de Gênesis 2 apresenta a unidade do homem e da mulher como uma conquista: “eles serão uma só carne”. A unidade, portanto, é dada como um “possível”, como algo “a se fazer”. E o homem é quem deve se “deslocar”: “o homem deixará seu pai e sua mãe”. A mulher sai do homem e, no entanto, o homem é quem deve, deixando as suas raízes, meter o pé na estrada para unir-se a ela. Jesus cita este texto e tudo caminha no sentido, não da divisão, mas da unidade. Os fariseus introduzem uma dupla divisão: primeiro, a ruptura do “repúdio”. Mas, em seguida, uma ruptura mais sutil; os estatutos do homem e da mulher são diferentes, uma vez que só falam de repúdio para o homem. Cristo restabelecerá a igualdade, ao falar também do repúdio do homem pela mulher; mas ele não fica no plano jurídico dos fariseus. Estas rupturas são devidas à “dureza do coração”, ou seja, do pecado. Jesus não fala de conflito a não ser para projetar a imagem da unidade por se conquistar. Esta unidade é o desígnio de Deus. Por fim, tudo o que o homem e a mulher têm de viver é típico de toda a aventura humana: ali onde encontramos divisão, temos de buscar a unidade. Há uma aposta grande de que não chegaremos nunca a superar as nossas divisões e violências (entre Estados, classes, “raças” ou etnias, culturas, etc.) se, primeiro, não tivermos superado esta que é a mais fundamental de todas: a divisão entre o homem e a mulher. Esta unidade não é nem fusão nem nivelamento, mas articulação das diferenças, como num corpo vivo.

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Com linguagem poética e mítica, a Palavra de Deus revela-nos verdades elucidativas acerca do ser humano – homem e mulher – acerca da família e do cosmos. A primeira verdade é que Adão não se criou a si mesmo: foi Deus que o criou (I leitura). A palavra Adão, neste caso, quer dizer homem e mulher. Este Adão (homem e mulher) vive na solidão, à qual o próprio Deus põe remédio: «Não é bom que o homem esteja só: vou dar-lhe uma auxiliar semelhante a ele» (v. 18). Em última análise, tendo presente o texto bíblico, poderia dizer-se que nem sequer Deus é suficiente para preencher a solidão de Adão. Para a sua existência histórica, Adão precisa também de coisas, de animais, de plantas… que o Criador lhe oferece em quantidade na beleza do universo, dando-lhe também o poder de impor o nome aos seres vivos, isto é, o poder de os manter sob o seu domínio (v. 19). Com base na teologia bíblica, tal poder de domínio sobre as coisas criadas por Deus cabe, naturalmente, ao ser humano na sua plenitude de homem e mulher, com igual dignidade. Domínio significa uso, não abuso ou poder desmedido.

Deus, que chamou Adão à vida, chama-o agora à comunhão, a uma vida de encontros e de relações que conduzam a pessoa humana ao crescimento, à plenitude e à maturidade. Adão, de facto, não se satisfaz com o domínio sobre as coisas: procura uma auxiliar semelhante a ele (v. 20), em plena alteridade e igualdade. O próprio Deus apresenta ao homem tal auxiliar, a mulher, Eva, à qual ele sente não poder impor-lhe o nome, isto é dominá-la, porque a reconhece igual a si, parte de si mesmo: «osso dos meus ossos, carne da minha carne» (v. 23). São ambos iguais em dignidade, chamados a uma plena comunhão de vida. O projecto inicial de Deus era esplêndido, mas o pecado humano veio romper o equilíbrio das relações entre iguais: ao respeito sucedeu a vontade de domínio de um cônjuge sobre o outro, com as conhecidas marcas dolorosas. Jesus (Evangelho), depois de ter censurado a sua gente «pela dureza do seu coração» (v. 23), procurou reportá-los ao projecto inicial de Deus. Infelizmente, com escassos resultados, então e até aos nossos dias.

O Concílio Vaticano II tem palavras que iluminam a dignidade e a santidade do matrimónio e da família: «A íntima comunidade da vida e do amor conjugal, fundada pelo Criador e dotada de leis próprias, é instituída por meio da aliança matrimonial, eu seja pelo irrevogável consentimento pessoal. Deste modo, por meio do acto humano com o qual os cônjuges mutuamente se dão e se recebem um ao outro, nasce uma instituição também à face da sociedade, confirmada pela lei divina. Em vista do bem tanto dos esposos e da prole como da sociedade, este sagrado vínculo não está ao arbítrio da vontade humana. O próprio Deus é o autor do matrimónio, o qual possui diversos bens e fins, todos eles da máxima importância, quer para a propagação do género humano, quer para o proveito pessoal e sorte eterna de cada um dos membros da família, quer mesmo, finalmente, para a dignidade, estabilidade, paz e prosperidade de toda a família humana» (Gaudium et Spes, 48). Em vista disso, a oração da Igreja torna-se insistente, «para que o homem e a mulher sejam uma coisa só, princípio de harmonia livre e necessária que se realiza no amor» (oração colecta).

A vida partilhada do homem e da mulher no matrimónio não é apenas em vista do bem do casal, mas tem uma irradiação missionária sobre os filhos, sobre o ambiente social e eclesial. Depois de ter falado da família, Jesus dirige-se imediatamente às crianças, e mais em geral aos fracos e aos pobres, proporcionando-lhes afecto, protecção e bênção (v. 13-16). Jesus entrou plenamente no tecido e nos meandros da história dos homens, tornando-se solidário com eles, partilhando a sua origem e o seu sofrimento. A ponto de o autor da Carta aos Hebreus (II leitura), afirmar, com palavras comovedoras, que Cristo, «por isso não Se envergonha de lhes chamar irmãos» (v. 11). Cristo não exclui ninguém desta relação fraterna. Mesmo que fosse a pessoa mais censurável e afastada! Ele é sempre o modelo mais radical para cada missionário. E um apelo para todos no mês missionário, que este ano é particularmente rico de acontecimentos e motivações, capazes de renovar e estimular o compromisso evangelizador dos cristãos e das comunidades eclesiais.

(…) A Palavra de Deus é uma palavra inspiradora para nós, porque Jesus tem uma palavra que coloca as coisas na sua verdade essencial. Reparem, segundo a Lei de Moisés, o homem, e só o homem, podia passar um certificado de divórcio para separar-se da mulher. Só o homem podia fazer isso. E não havia, no interior da relação conjugal, nenhuma paridade. Era uma sociedade patriarcal, quem mandava verdadeiramente era o homem. E quando fazem a pergunta a Jesus, Jesus estabelece uma paridade. Diz que o homem a mulher estão ao mesmo nível, estão numa equivalência no interior da relação conjugal.

E faz mais, retira o matrimónio da Lei. Não é a Lei de Moisés que decide sobre o matrimónio, mas Jesus vai à criação: Pergunta ao teu coração o que o matrimónio deve ser. Isto é, Jesus faz remontar à ordem da criação, ao gesto inicial do criador, o encontro que na família se vive. Essa é, de facto, a citação que Jesus faz do livro do Génesis que hoje nós lemos: O homem está no meio da criação, ele dá nome a todas as coisas, mas o homem sente-se só. Sente uma solidão fundamental porque o coração humano precisa de uma conjugalidade. E quando Deus interroga o homem, o homem diz a Deus que precisa de uma “ezer”. As traduções são sempre muito rebuscadas, desde “eu preciso de uma auxiliar” ou “eu preciso de uma assistente”. Mas, verdadeiramente, a palavra “ezer” o que quer dizer é “eu preciso de alguém que olhe nos olhos”. Isto é, o homem olha para a criação de cima para baixo, sente que é diferente dos animais, sente que é diferente das aves, mesmo tendo a missão de ser pastor de todas as coisas e não dominador. Mas o homem sente-se só porque precisa de alguém que olhe nos olhos.

E, por isso, a conjugalidade não é fruto de uma lei, antes de tudo é fruto de uma reivindicação, de uma incompletude que o homem vive no seu coração. Há essa imagem poética extraordinária em que Deus adormece Adão, e quando Adão acorda Deus coloca-lhe Eva, essa “ezer”, diante dele. Então ele diz esse que é um dos primeiros poemas hebraicos, e que é um poema de uma extraordinária beleza: “Esta é realmente osso dos meus ossos e carne da minha carne.” É um poema extraordinário porque mostra o ligame vital que a conjugalidade é chamada a exercer.

Mas nós sabemos, queridos irmãos, que no Cristianismo primeiro vem a dogmática e depois vem a moral. Primeiro vêm as verdades da nossa fé e depois nós temos de fazer uma hierarquia das verdades da nossa fé. A coisa mais importante é acreditarmos que há um só Deus que é misericórdia, que Jesus é o Seu Filho enviado, que Ele veio para dar a vida por nós e não Se envergonha da nossa fragilidade, da nossa imperfeição, do nosso inacabamento, e que nos enviou o Seu Espírito que vive no meio de nós, que vivemos em Igreja e caminhamos no tempo e na história. Esta é a verdade fundamental da nossa fé. A ética deve ser uma expressão, uma tensão, para vivermos na nossa vida concreta esta fé que professamos. Mas Deus leva-nos ao colo em todas as situações.

E por isso, o debate é apenas uma parte do sínodo porque o fundamental é descobrir, aprofundar, o sentido da família, o seu significado, celebrar a família no mundo contemporâneo – onde nós sabemos que é tão difícil porque toda a nossa cultura é uma cultura muito mais instantânea, muito mais precária, onde tudo parece durar o tempo de duração de um iogurte. A tendência é levar isso, também, para as relações mais fundamentais da vida. Nós sabemos como é preciso contrariar uma cultura que nos desumaniza, porque se o homem não é capaz de eterno, o homem não é capaz da sua humanidade.

Nesse sentido, há uma tensão que o cristianismo introduz na nossa humanidade que é importante que permaneça, mesmo que isso represente uma espécie de contra cultura, um ir contra a tendência dominante. Mas, ao mesmo tempo, nós sabemos como as relações humanas e a nossa própria humanidade são uma humanidade ferida. Ela própria é um enigma, ela própria é um mistério e, como sabemos, antes de tudo o que a Igreja tem de testemunhar é o rosto misericordioso de Deus.

Aqui nós temos de rezar, temos de rezar porque as feridas existem, nós não podemos enxotá-las para debaixo do tapete. Os problemas em relação à família são problemas concretos. Se calhar, o discurso de uma época não serve para outra época. E temos de viver com verdade, com autenticidade, este ministério de compaixão e de amor que Jesus nos manda, nos pede viver. Só assim somos fiéis a Jesus.

E nesse sentido, todo este esforço por reconhecer como uma parte significativa dos casamentos que se celebram catolicamente não são válidos. E não são válidos simplesmente porque as pessoas não estão preparadas para assumir, as pessoas não têm consciência do que estão a fazer. Casam cedo de mais, precipitam-se, não fazem um discernimento espiritual. É preciso também reconhecer que muitos casamentos falharam porque tinham tudo para falhar. E é preciso ir em socorro, é preciso perceber essa situação, e esclarece-la do ponto de vista do Evangelho.

Nesse sentido, esta agilização que o Papa Francisco faz da anulação do matrimónio, reconhecendo que o bispo local, o bispo de cada diocese, tem também um poder de juiz, e por isso os processos de verificação do casamento e da anulação passam a ser sobretudo diocesanos, na maior parte dos casos. Isso é um gesto muito importante da Igreja e de adequação à própria realidade. Quer dizer, a realidade é assim, é assim. E quando ouvimos as histórias de fracasso do matrimónio nós vemos aquele homem e aquela mulher que não tinham condições para viverem amplamente aquela missão que aceitam naquele dia, se calhar com a verdade que podiam naquele momento, mas não era a verdade capaz de sustentar as dificuldades e a complexidade de uma vida conjugal.

Por isso, é preciso ir ao encontro das vidas feridas, é preciso ir ao encontro com misericórdia. Nós sabemos que hoje a realidade, o fenómeno, a experiência, a condição da homossexualidade feminina e masculina ganhou nas nossas sociedades uma visibilidade que nós não podemos ignorar. As pessoas têm de viver e temos de escutar a voz das pessoas, temos de escutar o que elas vivem e temos de aprender, temos de acolher e temos de aprender, fazer um caminho com as pessoas. Porque, no fundo, nós muitas vezes pomos o dedo: “Este é este, aquela é aquela.” E nós ignoramos tanto da vida dos outros, do sofrimento dos outros… A verdade é que muitas vezes impomos cargas aos ombros dos outros que nós nem com um dedo as levamos.

Nesse sentido, temos de fazer silêncio e escutar. A Igreja também precisa de escutar, também precisa de ouvir a voz daqueles que muitas vezes não têm voz no meio de nós, e encontrar formas de diálogo, de acompanhamento. Isso é tão importante.

Aqui, na nossa comunidade, há uma experiência de cristãos homossexuais que se reúnem para rezar uma vez por mês na nossa capela. É tão importante dar esse espaço para que as pessoas rezem as suas vidas, para que as pessoas se confrontem com a palavra de Deus de uma forma que não seja para as julgar, para as condenar à partida. Mas, pelo contrário, para dizer que os homossexuais são nossos filhos, são nossos irmãos, são nossos amigos, são nossos companheiros de trabalho, são cristãos como nós, estão na nossa comunidade. Nós temos de encontrar um modelo pastoral, porque também é disso que se trata. Temos de encontrar um modelo pastoral onde a integração seja uma realidade mais vivida, e este ministério da compaixão que Jesus Cristo confia à Igreja seja um ministério praticado por todos nós. (…)

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