XXVI Domingo do Tempo Comum (ano B)
Marcos 9,38-48)

1ª Leitura – Nm 11,25-29
Salmo – Sl 18
2ª Leitura – Tg 5,1-6
Evangelho – Mc 9,38-43.45.47-48
João disse a Jesus: “Mestre, vimos um homem que expulsa demônios em teu nome. Mas nós lhe proibimos, porque ele não nos segue”.
Jesus disse: “Não lhe proíbam, pois ninguém faz um milagre em meu nome e depois pode falar mal de mim”. “Quem não está contra nós, está a nosso favor. Eu garanto a vocês: quem der para vocês um copo de água porque vocês são de Cristo, não ficará sem receber sua recompensa. E se alguém escandalizar um destes pequeninos que acreditam, seria melhor que ele fosse jogado no mar com uma pedra de moinho amarrada no pescoço. Se a sua mão é ocasião de escândalo para você, corte-a. É melhor você entrar para a vida sem uma das mãos, do que ter as duas mãos e ir para o inferno, onde o fogo nunca se apaga. Se o seu pé é ocasião de escândalo para você, corte-o. É melhor você entrar para a vida sem um dos pés, do que ter os dois pés e ser jogado no inferno. Se o seu olho é ocasião de escândalo para você, arranque-o. É melhor você entrar no Reino de Deus com um olho só, do que ter os dois olhos e ser jogado no inferno“.
Evangelizar sem monopolizar Deus
Romeo Ballan, mccj
Fanatismo, fundamentalismo, intolerância, partidarismo, absolutismo, intransigência, proselitismo, relativismo, sincretismo, diálogo, abertura, missão… A palavra de Jesus no Evangelho de hoje vem fazer clareza sobre um montão de palavras que hoje abundam na linguagem de muitas pessoas e nos média, que, de várias formas, tratam sobre estes temas de actualidade religiosa e política. Jesus aproveita a ocasião do excesso de zelo do apóstolo João e de outros discípulos, que queriam impedir um tal de expulsar os demónios no nome de Jesus, «porque ele não anda connosco» (v. 38). Jesus intervém dizendo: «Não o proibais» (v. 39). Numa circunstância análoga, também Moisés (I leitura) tinha intervido contra o pedido cioso do seu colaborador e futuro sucessor, Josué, auspiciando não uma restrição mas uma maior efusão do Espírito do Senhor sobre o seu povo «Quem dera que todos fossem profetas!» (v. 29).
Josué e João – o jovem apóstolo que bem merece o título de “filho do trovão”, como o denomina Jesus (Mc 3,17) – têm, infelizmente, numerosos seguidores em todas as culturas e religiões. Impedir, proibir… os verbos queridos a Josué e a João, não são aceites por Jesus, o qual não quer proibir ninguém de fazer o bem ou de pronunciar palavras de verdade (v. 39). A tentação de Josué e de João é a tentação típica de todo o movimento absolutista e de toda a pessoa fechada no seu gueto. O medo do que é diferente por origem, cultura, religião, etc., provoca sentimentos e práticas de fechamento, exclusivismo, marginalização. Em alguns partidos e ambientes políticos a xenofobia chega a considerar os outros como criminais pelo simples facto de serem um imigrado, um refugiado, um clandestino.
É digna de nota a observação adoptada por João: «Procurámos impedir-lho, porque ele não anda connosco» (v. 38), não é dos nossos. «Não diz que não segue Jesus, mas que não os segue a eles, os discípulos, revelando assim que tinham radicada a convicção de serem os únicos e indiscutíveis depositários do bem. Jesus pertencia só a eles, eram eles o ponto de referência obrigatório para quem quisesse invocar o Seu nome e sentiam-se contrariados pelo facto de alguém realizar prodígios sem pertencer ao seu grupo… O orgulho de grupo é muito perigoso: é enganador e leva a considerar zelo santo o que é apenas egoísmo camuflado, fanatismo e incapacidade de admitir que o bem existe também fora da estrutura religiosa a que se pertence» (Fernando Armellini).
Aqui estão em jogo valores missionários de primeira grandeza. A salvação e a possibilidade de fazer o bem não são monopólio de uma classe de eleitos ou de especialistas, mas dom de Deus, amplamente oferecido a toda a pessoa aberta ao bem e disponível a tornar-se portadora de amor e de verdade. O Espírito do Senhor é-nos dado gratuitamente, mas não de forma exclusiva: ninguém, nenhuma religião pode ter a pretensão de monopolizar Deus, o seu Espírito, a verdade ou o amor. A resposta de Jesus (v. 39) não muda se aquele que faz o bem é clandestino, muçulmano, cigano, marginalizado, preso, drogado… Jesus daria a mesma resposta que deu a João, caso fosse interpelado por um budista, um muçulmano ou outro qualquer. Esta afirmação não tira nada à verdade de Cristo único Salvador e fundador da Igreja, pelo contrário, sublinha a sua universal irradiação missionária.
Para uma correcta compreensão desta doutrina, é preciso evitar dois extremos: por um lado, o fanatismo intolerante de quem não admite outra verdade para além da sua; e, por outro, o relativismo que não reconhece qualquer verdade como certa e deixa tudo na incerteza e confusão. «A verdade é uma só, mas tem muitas faces como um diamante», afirmava Gandhi. Segundo a fé cristã, Jesus é a Palavra do Pai, é a verdade personificada e incarnada, de onde derivam as sementes de verdade e de amor presentes no mundo inteiro: Dele provêm, para Ele se reconduzem. Só com este duplo movimento – centralidade e irradiação de Cristo – se superam os perigos do absolutismo e do relativismo. A evangelização funda-se na possibilidade de um diálogo. O zelo missionário bem entendido não é fanatismo; não é uma imposição, mas a proposta alegre e respeitadora da própria experiência de vida. Sempre no respeito pela liberdade das pessoas, o único caminho para a difusão do Evangelho baseia-se no testemunho alegre da fé e do amor de Jesus.
Todo o Evangelho num copo de água
Ermes Ronchi
Mestre, aquele homem curava e libertava, mas não era dos nossos, não estava dentro da regra, e nós impedimo-lo (cf. Marcos 9,38-43.45.47-48). Como se dissessem: os doentes não são um problema nosso, arranjem-se, primeiro as regras. Os milagres, a saúde, a liberdade, a dor do ser humano podem esperar.
Não são dos nossos. Todos o repetem: os apóstolos de então, os partidos, as Igrejas, as nações, os soberanos. Separam. Ao contrário, nós queremos seguir Jesus, o homem sem barreiras, cujo projeto se resume numa palavra: “comunhão com tudo o que vive”.. Não o impeçais, porque quem não está contra nós, é por nós.
Cada pessoa que ajuda o mundo a florir, é dos nossos. Cada pessoa que transmite liberdade, é meu discípulo. Pode ser-se pessoa que incarne sonhos do Evangelho sem ser cristã, porque o reino de Deus é mais vasto e mais profundo do que todas as nossas instituições juntas.
É belo ver que para Jesus a prova última da bondade da fé está na sua capacidade de transmitir e proteger humanidade, alegria, plenitude de vida. Isso coloca-nos todos, serenamente e alegremente, junto a tantos homens e mulheres, crentes ou não crentes, que se preocupam com a vida e se apaixonam por ela, e são capazes de fazer milagres para fazer nascer um sorriso no rosto de alguém. Estar junto a eles, sonhando juntos a vida (cf. “Evangelii gaudium”).
Um copo de água, o quase nada, uma coisa tão pobre que todos têm em casa. Jesus simplifica a vida: todo o Evangelho num copo de água. Perante a invasão do mal, Jesus conforta: ao mal contrapõe o teu copo de água; e depois confia
Jesus convida os seus a passar da contraposição ideológica à proposta alegre, desarmada, confiante do Evangelho. A aprender a usufruir do bem do mundo, feito seja por quem for; a saborear as boas notícias, beleza e justiça de onde quer que venham. A sentir como dado a nós o sorvo de vida oferecido: quem vos der um copo de água, não perderá a sua recompensa.
Seja quem for que vos der: sem cláusulas, pertenças, condições. A verdadeira distinção não é entre quem vai à igreja e quem não vai, mas entre quem se detém junto ao homem agredido pelos ladrões, se inclina, derrama óleo e vinho, e quem, em vez disso, segue em frente.
Um copo de água, o quase nada, uma coisa tão pobre que todos têm em casa. Jesus simplifica a vida: todo o Evangelho num copo de água. Perante a invasão do mal, Jesus conforta: ao mal contrapõe o teu copo de água; e depois confia: o pior não prevalecerá.
Se o teu olho, se a tua mão te escandalizam, corta-as… Metáfora incisiva para dizer a seriedade com que se deve ter cuidado para não errar a vida e para repropor o sonho de um mundo onde as mãos só sabem dar e os pés andar ao encontro do irmão, um mundo onde florescem olhos mais luminosos que o dia, onde todos são dos nossos, todos amigos da vida e, precisamente por isso, todos segundo o coração de Deus.
Trad.: Rui Jorge Martins
www. snpcultura.org
O Senhor conhece os seus
Enzo Bianchi
O texto evangélico deste domingo se apresenta composto, relatando uma série de palavras de Jesus pertencentes a contextos diversos e heterogêneos, mas ligadas por algumas expressões recorrentes: “no teu/meu nome”, “escandalizar”, “fogo e sal”.
Por isso, vou me deter mais amplamente sobre o episódio do exorcista que realiza ações de libertação embora não seguindo Jesus; depois, buscaremos uma compreensão geral das “sentenças”, das admoestações reunidas por Marcos nesse contexto.
Jesus continua o caminho para Jerusalém junto com seus discípulos, mas o clima comunitário não é pacífico. Ele faz anúncios da sua paixão, e os discípulos não entendem (cf. Mt 9, 32) ou se rebelam, como Pedro (cf. Mc 8, 31-33). Quando, na ausência de Jesus, pedem aos discípulos para curar um menino epiléptico, talvez julgado possuído por um espírito impuro, eles se mostram incapazes de libertá-lo da doença (cf. Mc 9, 14-29). Por fim, todos os Doze começam a discutir sobre “qual deles era o maior” (Mc 9, 34). Sim, entre Jesus e a sua comunidade já há distância, incompreensão.
Se o passo de Jesus é sempre convicto, com um propósito específico que lhe requer uma obediência radical, o dos discípulos, ao contrário, é incerto e desviante. No Evangelho segundo Marcos, toda a viagem para a Cidade Santa será caracterizada por essa tensão entre Jesus e os seus, pela incompreensão por parte de todos, sem excluir ninguém.
E eis que, pontualmente, um novo episódio atesta tal estado das coisas: João, “o filho do trovão” (cf. Mc 3, 17), o irmão de Tiago, um dos primeiros quatro chamados (cf. Mc 1, 16-20), um dos discípulos mais íntimos de Jesus, testemunha privilegiada da sua transfiguração (cf. Mc 9, 2), vê um homem que expulsa demônios, realiza ações de libertação dos doentes em nome de Jesus, embora não fazendo parte da comunidade, portanto, não seguindo Jesus com os outros discípulos.
Então, ele se dirige ao encontro de Jesus e declara resolutamente: “Vimos um homem expulsar demônios em teu nome. Mas nós o proibimos, porque ele não nos segue”. O que há nessa reação de João? Certamente, um zelo mal orientado, mas um zelo que revela um amor por Jesus, um ciúme em relação a ele: se alguém usa o nome de Jesus, deveria segui-lo e, portanto, formar corpo com a sua comunidade…
Porém, misturado a esse sentimento, há também um espírito de pretensão, o pensamento de que só os Doze estão autorizados a realizar gestos de libertação em nome de Jesus; existe um senso de pertencimento que exclui a possibilidade do bem para aqueles que estão fora do grupo comunitário; existe a vontade de controlar o bem que é feito, para que seja imputado à instituição à qual se pertence.
Aqui, são retratadas as nossas patologias eclesiais, que às vezes vêm à tona até envenenar o clima na Igreja, até criar divisões e oposições no seu interior, até fazer da Igreja uma cidadela que se ergue contra o mundo, contra os outros homens e mulheres, todos considerados no espaço das trevas.
Devemos confessar isto com franqueza: nas últimas décadas, o clima da Igreja foi envenenado desse modo, e essa doença, apesar das contínuas advertências do Papa Francisco, ainda não foi vencida. Há porções eclesiais que se erguem a juízes dos outros, que se consideram uma Igreja melhor do que a dos outros. Há cristãos que, com certezas graníticas, julgam os outros que estão fora da tradição ou da Igreja Católica e esperam poder ouvir da autoridade eclesiástica condenações contra aqueles que não se assemelham a eles ou não fazem parte do seu grupo, sujeito a tentações sectárias.
Ai da comunidade cristã que acha que é uma Igreja perfeita, ai da autorreferencialidade e da autarquia espiritual, atitudes daqueles que pensam que não precisam dos outros membros, porque creem a si mesmos como membros do corpo de Cristo (cf. 1Cor 12,12-27).
Jesus nunca mostrou ser totalitário, excludente e nunca obrigou ninguém a segui-lo e a fazer parte da sua comunidade. Nenhum proselitismo! Ao mesmo tempo, como Cristo ressuscitado, Jesus é o Senhor de toda a Igreja e só ele conhece os seus (cf. 2Tm 2, 19): portanto, não cabe aos seus, ou aos seus pretensos seus, julgar os outros como ervas daninhas, até tentar extirpá-los (cf. Mt 13, 24-30). Cristo transcende as fronteiras de cada comunidade cristã e pode fazer o bem de muitas formas através do poder do seu Espírito Santo, que “sopra onde quer” (Jo 3, 8). Na Igreja, infelizmente, sofre-se dessa doença do “exclusivismo” e facilmente não se reconhece ao outro a capacidade de fazer o bem, de agir pela libertação da pessoa dos males que a oprimem.
O Papa Francisco, nesses poucos anos de pontificado, voltou várias vezes a denunciar esses males eclesiásticos, pedindo especialmente que os cristãos pertencentes aos movimentos evitem desvios sectários e aprendam a caminhar junto com os outros cristãos, não separados, não acima, não com itinerários em oposição.
A diversidade é riqueza, é multiforme graça do Espírito que torna a Igreja, a esposa do Senhor, policrômica (cf. Ef 3, 10), torna-a mais bela e pronta para as núpcias com o Messias (cf. Ap 19, 7; Ef 5, 27). Se alguém faz o bem em nome de Cristo, esse bem deve ser, acima de tudo, reconhecido, não negado, e depois é preciso ter confiança nele: se faz o bem em nome de Jesus, poderá talvez, logo depois, falar mal dele? “Quem não é contra nós é por nós”, afirma o mesmo Jesus.
Ou seja, ele nos exorta a aceitar que não somos os únicos que fazem o bem, a aceitar que outros, diferentes de nós, que sequer conhecemos, podem realizar ações marcadas pelo amor. Também é preciso ter em mente que há muitos que, aparentemente, seguem Jesus, profetizam, expulsam demônios e fazem milagres em seu nome (cf. Mt 7, 22), que talvez também tenham uma prática de escuta da sua palavra e uma prática sacramental eucarística (“Nós comíamos e bebíamos diante de ti, e tu ensinavas em nossas praças!”: cf. Lc 13, 26). Todos estes, porém, não são garantidos pelo seu pertencimento e poderão ser estranhos ao Senhor, que lhes dirá: “Nunca os conheci. Afastem-se de mim, todos vocês que praticaram o mal!” (Mt 7, 23; Lc 13, 27).
Portanto, a verdadeira pergunta que devemos nos fazer não é: “Quem é contra nós, contra mim?”, mas sim: “Sou eu, somos nós de Cristo?”. O apóstolo Paulo escreve: “Tudo é de vocês; mas vocês são de Cristo e Cristo é de Deus” (1Cor 3, 22-23). Ou seja: se não somos de Cristo, se não temos os seus “modos” (cf. Didaqué 11, 8), se não assumimos os seus comportamentos e o seu pensamento (cf. 1Cor 2, 16), não somos nada: não temos sal em nós mesmos, mas somos como o sal insípido (cf. Mc 9, 50), que “só serve para ser jogado fora e ser pisado” (Mt 5, 13).
A nossa responsabilidade é lutar todos os dias contra nós mesmos, não contra supostos inimigos externos, porque nada nem ninguém pode nos impedir de viver o Evangelho, senão nós!
Quanto às sentenças de Jesus referentes ao escândalo (vv. 42-50), hoje sentimos uma certa dificuldade para aceitar a sua radicalidade. Porém, devemos estar vigilantes para não as remover ou as diluir. É bem verdade que elas não podem ser cumpridas ao pé da letra por meio de atos de mutilação física, para impedir a ação má, mas devem ser acolhidas como severas advertências.
Escandalizar significa colocar obstáculos no caminho do “destes pequeninos que creem” (mikrôn toúton tôn pisteuónton) e fazer uma ação que, para eles, é mortífera. O melhor, nesse caso, é dar a morte a si mesmo!
O discípulo deve vigiar sobre o seu comportamento, sobre os órgãos da comunicação de que é dotado (mãos, pés, olhos, isto é, o fazer, o andar, o ver), que podem ser obstáculos no caminho do Reino, especialmente para os pequenos, os frágeis e os fracos, os pobres e os últimos.
Cortar um membro do corpo ou arrancar um olho são indicações de uma luta muito determinada na lógica do perder a própria vida (bíos) para ganhar a vida autêntica e eterna (zoé), isto é, aquela com Cristo no Reino. E não se deve fazer uma fácil atualização das palavras de Jesus, restringindo-as ao fato de escandalizar as crianças, mas é preciso levar em conta que os mikroí, os pequenos identificados por Jesus, são todos aqueles que, em relação ao discípulo, estão menos munidos, mais expostos e são mais frágeis…
Todos os discípulos, assim, são postos por Jesus diante de dois resultados opostos: a vida eterna com Cristo ressuscitado no reino de Deus, ou a Geena (literalmente um vale perto de Jerusalém, utilizado como depósito de lixo), isto é, a morte, as trevas, o caos: Geena ou inferno várias vezes evocados por Jesus como separação do amor, da vida.
Como os profetas, como Isaías (cf. 66, 24, fim do livro), Jesus recorre à imagem da Geena não para condenar, mas para advertir e admoestar aqueles que creem.
CADA COPO DE ÁGUA CONTA
Antonio Couto
1. A lição do Livro dos Números deste Domingo XXVI (Números 11,25-29) mostra-nos um Moisés, não dono de nada nem de ninguém, nada ciumento ou invejoso, mas livre, cheio de bem e de bondade, completamente a céu aberto, desejoso de ver, com olhos puros, o Espírito de Deus a operar maravilhas em todas as pessoas e através de todas as pessoas. Josué representa, neste texto, a figura sombria do ciumento.
2. O Evangelho deste mesmo Domingo XXVI (Marcos 9,38-48) segue o mesmo rumo, e mostra-nos um Jesus feliz por ver que o bem saltou as fronteiras do pequeno grupo que o seguia, sendo praticado também por pessoas de fora. João encarna aqui a figura do Josué do texto supracitado do Livro dos Números, e quer o bem todo para Jesus e o seu grupo, vendo com maus olhos que também outros o possam realizar, talvez sobretudo porque os próprios discípulos tinham pouco antes fracassado (Marcos 9,18.28-29) onde agora veem alguém de fora ter sucesso.
3. Nas palavras de João, o facto é o seguinte: os discípulos de Jesus viram alguém a expulsar demónios no nome de Jesus, e trataram logo de o impedir. A razão apresentada para fundamentar este impedimento, tem, porém, o seu quê de estranho e surpreendente. Na verdade, João refere, com todas as letras, que o grupo dos discípulos impediu o homem anónimo de continuar a sua atividade «em nome de Jesus», «porque não nos seguia» (ouk êkoloúthei hêmîn) (Marcos 9,38). O problema reside todo neste «porque não nos seguia». Trata-se, de facto, de uma fórmula estranha e surpreendente, porque, no Evangelho, fala-se sempre de «seguir Jesus», e não «a nós», inclusive no único paralelo desta passagem, apresentado em Lucas 9,49, em que se lê: «porque não segue connosco» (ouk akoloutheî meth’ hêmôn). Vê-se bem que estes discípulos de Jesus ainda não perceberam a lição da humildade e do serviço do Domingo passado, querendo eles próprios estar indevidamente «no meio», ocupando ou usurpando o primeiro lugar. Sempre este nosso doentio gosto de querermos estar sempre no centro das atenções! Salta à vista que este texto notável funciona como um espelho: mostra-nos menos a figura do exorcista anónimo e mais a figura patronal assumida pelos discípulos de Jesus, que se julgam donos exclusivos de algumas funções e defendem ciosamente esse status.
4. Vê-se, no fundo da tela, que não basta querer o bem. Querer o bem nem sempre é bom. Por paradoxal que pareça, querer o bem pode ser mau. É de facto mau, quando queremos o bem só para nós, ciumenta e invejosamente. Às vezes, os nossos maus olhos levam-nos a retirar o bem do alcance dos outros, e até a destruí-lo, para que os outros não possam usufruir dele, e não possam nem sequer realizá-lo, beneficiando outros! Ora, o bem que divide e exclui nunca é bem. O bem mostra-se tal apenas quando faz comunhão, fraternidade, mesa, pão, água, pura alegria entre irmãos.
5. Um simples copo de água, dado com amor, pode trazer pela mão a eternidade. Aí está outra soberana lição de Jesus. Toda a atenção, portanto, às nossas mãos, pés, olhos, entranhas, coração. A mão, que indica a nossa ação, pode fazer o bem ou o mal. Se faz o mal, é melhor cortá-la, como faz o lavrador cuidadoso aos ramos secos das videiras e das árvores de fruto. O pé, que indica o nosso caminhar, pode levar-nos por e para maus caminhos. Se nos conduz para o abismo, é melhor cortá-lo. O olho, que indica os nossos desejos de bem e de amor ou de cobiça, ódio, raivas e ciúmes, pode levar-nos à mesa da alegria fraterna ou ao ciúme e à inveja. Estas últimas maneiras de ver levam-nos ao mal, e, portanto, ao sentimento venenoso de queremos o bem só para nós. Aí está como querer o bem nem sempre é bom; pode ser mau. E é melhor arrancar pela raiz este veneno mortal.
6. A lição de Tiago (5,1-6), que lemos e abandonamos este Domingo (no próximo Domingo começa a ler-se a Carta aos Hebreus) mostra bem, numa linguagem duríssima, que o rico é o que quer o bem só para si, retirando-o (roubando-o!) aos outros. Autoexclui-se da comunhão, da bondade e da alegria da mesa fraterna. O resultado é a traça, o mofo, a ferrugem, a podridão, recuperando assim, em termos proféticos e sapienciais, muitos motivos patentes no Antigo Testamento. O pequeno texto da Carta de Tiago usa 119 imperativos, dos quais se ouvem três no texto de hoje. Permanentes chamadas de atenção para este mundo em que poucos têm quase tudo, e a maioria não tem quase nada. O texto da Carta de Tiago é claramente tardio, de finais do século I ou princípios do século II, mas vale para todos os tempos.
7. Esta linguagem duríssima aproxima-se de quanto, no texto do Evangelho de hoje aparece retratado na «geena» (Marcos 9,43.45.47), do aramaico gêhinnam, hebraico gê-hinnom, que é o nome de um vale situado a sul de Jerusalém, lugar pagão onde se realizava o culto a Moloch, onde os ímpios Acaz e Manassés tinham sacrificado os seus próprios filhos (2 Crónicas 28,3; 33,6). O piedoso rei Josias, no decurso da sua reforma religiosa, acabou com estes cultos pagãos, e destinou este lugar para queimar as entranhas dos animais. É daqui que vem o espetáculo tétrico da putrefação, vermes, fumo, fogo, (Jeremias 7,31-34; 19,1-13; 32,35), «vermes que não morrem, fogo que não se apaga» (Marcos 9,44.46.48), que fornecerão a linguagem adequada para dizer o inferno. A chapa original encontra-se em Isaías 66,24, último versículo do profeta.
8. Aí está, no ponto e em contraponto, a lição soberana do Evangelho de Jesus: um simples copo de água, dado com amor, pode trazer pela mão a eternidade.
9. O Salmo 19 é, no seu todo, uma estupenda «música teológica», como dizia Hermann Gunkel. Apresenta-se em dois quadros, que formam um belo díptico que canaliza o louvor do orante. O primeiro quadro, composto pelos v. 2-7, é um hino ao Deus Criador. O segundo, que reúne os v. 8-15, é um hino à Lei de Deus. Na verdade, Deus ilumina e aquece o universo com o fulgor do sol, e ilumina e acalenta o homem com o fulgor da sua Palavra contida na sua Lei revelada. Hoje contemplamos e cantamos o segundo quadro. Quem tem ouvidos, oiça então, e cante.
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O Espírito Santo não é monopólio de ninguém
José Tolentino Mendonça
Nós começamos a Palavra de Deus pela leitura do Livro dos Números, num texto muito curioso que tem a ver com uma teologia nem sempre dominante nas nossas perspetivas. Muitas vezes olhamos para a história como se o Espírito Santo fosse um monopólio de alguns, um dom especial que alguns têm. Muitas vezes, na forma de encararmos a história do mundo, a história da Igreja, o próprio presente, nós achamos: Ah, fulano é que tem o Espírito, aquele é que tem o Espírito, aquele outro é que tem o Espírito.
É interessante que esta teologia exodal dos Números faz eco. Diz-nos que o Espírito Santo é um dom muito democrático. Isto é, é repartido pelos setenta e dois anciãos de Israel. Isto é, o dom do Espírito Santo não é o dom apenas do sacerdote, ou não é apenas o dom do profeta, não é apenas Araão e Moisés que recebem o Espírito Santo. O Espírito é distribuído a todos os anciãos de Israel. E mais, aqueles que não estavam no momento da oferta, da grande oblação quando os setenta receberam ao mesmo tempo o Espírito e ficaram por alguma razão no acampamento, o Espírito Santo também desceu sobre eles para lá das fronteiras do Sagrado.
Isto dá-nos uma visão muito mais rica do que é a vida, do que é a história. Porque, de facto, o Espírito Santo está derramado em todos nós, sem exclusão. E, cada um de nós é chamado a viver a sua vida exercendo esse dom do Espírito Santo que está em nós.
A própria espiritualidade cristã fala continuamente, por exemplo, da paternidade espiritual, da maternidade espiritual. Não é apenas a figura do padre que tem o monopólio da paternidade espiritual. A paternidade espiritual é a forma como somos amigos uns dos outros, como estamos próximos, como somos capazes de dar um bom conselho, como somos capazes de escutar, de acolher, de abraçar, de corrigir, de avançar, de alertar. Tudo isso é a paternidade espiritual. É uma missão que todos nós somos chamados a ter na vida uns dos outros. Maternidade espiritual o que é? É a capacidade de acolher, a capacidade de ouvir, mas também é a capacidade de por a caminho, a capacidade de fazer ver as coisas de outra forma, de nascer, de perceber aquilo que é importante e aquilo que é acessório.
Esta tarefa, que é a tarefa de trazer o Espírito ao mundo, gerar no mundo o Espírito, é uma missão que nos é confiada a todos, sem exceção. E não é sequer apenas aqueles que estão aqui no momento em que o Espírito desce. Há pessoas que estão nos acampamentos dispersos que são o mundo e neste momento estão a receber o Espírito Santo como nós estamos a receber. E têm de fazer alguma coisa com Ele. (…)
No fundo, é este apelo muito grande a cada um de nós ser profeta. E ser profeta não é apenas: Ah, mas eu não sei nada de exegese bíblica, como é que eu vou ser profeta? A profecia desenvolve-se nos campos mais diversos, e em todos eles é preciso profetas.
Por exemplo, S. Tiago: quando nós comparamos Tiago com Paulo parece que se está a comparar uma águia a uma galinha. Porque Paulo voa, Paulo sabe de teologia, Paulo vai para trás e para a frente no Antigo Testamento, Paulo inventa palavras. Paulo é um génio! Paulo é uma águia! S. Tiago parece que só anda ao rés da terra, parece que não consegue levantar voo. Lutero dizia que aquilo é a carta da palha, porque aquilo de teologia, quando nós vamos ali à procura de um grande pensamento, não encontramos. Mas a carta de Tiago é uma carta fortíssima do ponto de vista profético e é um grande manifesto de um cristianismo social. Na vida social o que é que nós podemos fazer?
Por exemplo, na forma como lidamos com o dinheiro. Como é preciso profetas na forma como se lida com o dinheiro! Porque nós sabemos como o dinheiro é por um lado importante, como ele é um instrumento necessário. Mas sabemos como o dinheiro se torna um deus, como o dinheiro ocupa o lugar do fundamental no coração. E sabemos como o dinheiro corrompe. Porque nós pensamos: aqueles que têm muito dinheiro chegam a um ponto e tornam-se generosos. Não, não se tornam. Porque o dinheiro dá vontade de ter mais dinheiro e depois é uma lógica infernal. É uma lógica infernal. E é preciso saber parar. É preciso saber sempre perceber como o dinheiro é um instrumento para uma vida protegida, para uma vida assegurada – “assegurada” entre aspas, “protegida” entre aspas, porque vivemos todos no desabrigo da vida, mas pronto, dá possibilidades de desenvolvermos tantas coisas importantes. Mas não é só aquilo, aquilo não basta. E, sobretudo, se for apenas para viver em função de nós próprios, para reforçar o nosso egoísmo, o nosso narcisismo, a nossa incapacidade de ir ao encontro dos outros, o dinheiro foi uma oportunidade perdida, foi uma oportunidade perdida.
E por isso, as palavras de Tiago são palavras muito fortes. Nós vemos na nossa sociedade, neste crash a tantos títulos que é vivido, nós descobrimos que o dinheiro serviu para quê, àquela pessoa? Não a tornou melhor pessoa, tornou-a um joguete nas mãos de paixões tão mesquinhas, tão vulgares. Para que é que lhe serviu aquilo? No fundo, essa pergunta, é uma pergunta para nós. Para que é que nos serve aquilo que temos? Para que é que nos serve? Que destino nós estamos a dar? Que finalidade?
Porque é preciso dar uma finalidade, e é preciso perceber aquilo que o Papa João Paulo II dizia muitas vezes: “Sobre os nossos bens recai uma hipoteca social.” Isto é, o que eu possuo não é só para mim. Eu tenho de perceber que uma parte é legítima, temos direito a isso, é bom, é um dom que Deus nos deu, que a vida nos deu. Mas não é para nos trancarmos nele, é para fazermos dele um caminho que tem de ser um caminho evangélico, tem de ser um caminho de amor. E tu, o que é que vais fazer? Nós precisamos de profetas neste campo. No campo da economia, no campo da vida social, no campo dos bens, no campo da gestão. Precisamos aí de profetas, de gente que seja capaz – precisamos de profetas na vida.
Hoje Jesus fala numa linguagem muito clara de como nós somos a nossa própria obra e como temos de ter uma transparência na nossa vida. Jesus quando diz: “Se a mão é para ti ocasião de pecado corta-a, se o olho é para ti ocasião de pecado arranca-o.” Não é para tomar do ponto de vista literal, não é para cortarmos a mão, cortarmos o pé e nos cegarmos. Mas é: corta aquilo que parece que é a tua mão, que tu consideras a tua mão, e no fundo te está a levar por um caminho de perda, de queda, de dispersão. Ser capaz de tomar decisões, é no fundo isso que Jesus está a dizer. Decisões humanas, decisões morais, decisões éticas que tornem a nossa vida alguma coisa onde nos reconhecemos, onde olhamos e percebemos que há uma coerência, que há um sentido.
É claro que isso é muitas vezes como cortar um pé. Por exemplo, em relação aos nossos vícios, apegamo-nos tanto a eles, seja um vício idiota qualquer que nós tenhamos, mas habituamo-nos tanto a ele como se fosse o nosso olho. É um terceiro olho, é um terceiro pé. E cortar aquele vício muitas vezes dói como se cortássemos a própria mão, mas é uma libertação. Podemos dar a volta ao mundo e voltar mas só há uma maneira de nos libertarmos: é aceitarmos morrer para nós próprios. Só há uma forma de liberdade, é alguma coisa política, mas antes de tudo é alguma coisa pessoal. Como é que eu vivo com liberdade a vida?
Não tenhamos dúvidas, não há liberdade sem desapego, não há liberdade sem morte para o próprio eu, não há liberdade sem relativização de si, não há liberdade sem deixar coisas para trás. Não há, não há. Se eu quero carregar tudo, eu fico amarrado àquilo.
No fundo isso que Jesus nos diz: “Sê profeta na tua própria vida, sacode a poeira, não fiques preso a coisas idiotas, coisas que não ajudam ninguém a crescer. Se calhar tu já percebeste isso mas é uma bengala que te dá jeito, mas se calhar a vida começa quando tu deixares isso.” É profetas assim, no concreto da vida, no concreto da história, que nós somos chamados a ser.
“Quem me dera que todos no meu povo fossem profetas.” Esse grito de Moisés é um grito para nós, para cada um de nós. Porque o Espírito é-nos dado abundantemente, abundantemente: e nós, o que vamos fazer?