P. Manuel João, comboniano
Reflexão do Domingo
da boca da minha baleia, a ELA
A nossa cruz é o pulpito da Palavra

Ano B – Tempo Comum – 10º domingo
Marcos 3,20-35: “Quem blasfemar contra o Espírito Santo nunca terá perdão”

Após o período da Quaresma e da Páscoa e as festividades de Pentecostes, da Santíssima Trindade e do Corpus Christi, retomamos agora os domingos do Tempo Comum, que havíamos interrompido no início da Quaresma. Estamos no décimo domingo. Neste ano litúrgico do “ciclo B” nos acompanha o evangelho de São Marcos.

Estamos no terceiro capítulo de Marcos. Jesus, após a prisão de João Batista, havia iniciado o seu ministério, anunciando a boa nova do Reino e convidando à conversão. Percorre toda a região da Galileia, mas estabelece a sua morada em Cafarnaum, na casa de Pedro e Tiago. A sua pregação profética, acompanhada pelos sinais/milagres de libertação, suscita o entusiasmo das multidões, mas provoca também a suspeita e a oposição das autoridades religiosas e políticas. Jesus é um rabi muito livre, não respeita as “regras”, não observa o sábado, convive com publicanos e pecadores… Enfim, é uma ameaça para a elite religiosa e política, por isso se propõem a eliminá-lo (Marcos 3,6). Seus familiares se preocupam e de Nazaré descem a Cafarnaum “para O deter, pois se dizia: «Está fora de Si»”.

A intervenção dos familiares de Jesus serve de moldura para o tema central do evangelho de hoje, ou seja, a conclusão da investigação dos escribas enviados de Jerusalém: “«Está possesso de Belzebu», e ainda: «É pelo chefe dos demónios que Ele expulsa os demónios»”. Jesus os chama a si e, com parábolas, tenta abrir os olhos deles para a novidade do que estava acontecendo. Conclui dizendo: “Em verdade vos digo:Tudo será perdoado aos filhos dos homens: os pecados e blasfémias que tiverem proferido; mas quem blasfemar contra o Espírito Santo nunca terá perdão: será réu de pecado para sempre»”. O trecho se conclui com a chegada dos seus familiares que, “ficando fora, O mandaram chamar”. E então Jesus anuncia a sua pertença a uma nova família nascida da escuta da Palavra: “Eis minha Mãe e meus irmãos. Quem fizer a vontade de Deus esse é meu irmão, minha irmã e minha Mãe”.

Aproximemo-nos do trecho do evangelho partindo da primeira leitura e, concretamente, da primeira pergunta feita por Deus ao homem, após o pecado: “Onde estás?”. Essa pergunta, aparentemente inútil porque Deus sabe bem onde me encontro, é uma pergunta chave, fundamental para uma tomada de consciência da nossa realidade existencial. Trata-se de uma pergunta que Deus faz a todo homem e mulher de todos os tempos.

Em geral, evitamos fazer essa pergunta a nós mesmos, fugimos dela. Para não ouvi-la, enchemos a nossa vida de barulhos para abafá-la. Porque o silêncio nos assusta! Para não ouvi-la, enchemos a nossa agenda de coisas para fazer, até mesmo de boas obras. Porque não ter nada para fazer nos inquieta! Para não ouvi-la, vivemos nossa vida projetados para fora. Porque o encontro com o nosso interior nos assusta! Para não ouvi-la, nos adequamos ao pensamento comum. Porque assumir nossa responsabilidade nos parece muito arriscado! Para não ouvi-la, nos anestesiamos com diversão despreocupada, com os prazeres da vida e nossas pequenas “drogas”!

Onde estás? Esta pergunta, porém, persiste e não se rende, por mais fraca que possa parecer. Emerge, até de repente, e não nos deixa viver de forma medíocre! É uma interpelação que parece nos perseguir e não nos deixa em paz. Quando ignorada, se esconde atrás da nossa insatisfação, do sentir-se sempre fora de lugar, da inquietude sobre o sentido da vida e da amargura que critica tudo e todos!…

Mas há um momento em que, pela nossa obstinação em silenciar essa voz, ela cala para sempre. A pessoa se fecha em si mesma, não se deixa questionar e identifica sua partícula de verdade com a verdade absoluta. Poderia ser também esta uma modalidade daquela inquietante “blasfêmia contra o Espírito Santo” de que fala Jesus no evangelho de hoje? É uma situação dramática porque a Luz é chamada de trevas, a Verdade é chamada de mentira e Deus é chamado de Satanás. É um pecado imperdoável porque a pessoa se auto-blinda na sua pretensão de autossuficiência. Não pensemos que tal circunstância seja inverossímil ou excepcional. Na realidade, é uma situação muito atual. Suas manifestações são variadas: nas fake news, na inveja que denigre ou difama o próximo, na justificativa do ódio, na proclamação de “guerras santas”, na surdez ao clamor dos pobres, na justificativa da injustiça sob o pretexto do direito à propriedade privada ou da legalidade de um sistema econômico iníquo!…

Essa “blasfêmia contra o Espírito Santo” não é algo que acontece de um dia para o outro. Trata-se de um imperceptível deslizar na mentira existencial, de uma progressiva habituação ao mal ou da corrupção da própria consciência.

O evangelho de hoje nos sugere critérios para avaliar “onde estamos”. De fato, fala-se de três grupos de pessoas que se aproximam de Jesus: os escribas que já julgaram e condenaram Jesus no seu coração; os familiares de Jesus que “saíram para prendê-lo” e que, “estando fora, mandaram chamá-lo”; e, finalmente, aqueles “que estavam sentados ao redor dele” e que Jesus define como sua verdadeira família, “pois quem faz a vontade de Deus, esse é meu irmão, minha irmã e minha mãe”.

Os três grupos nos sugerem três séries de questões para nossa reflexão:

1) Quais poderiam ser os meus deslizes na falsidade? Quais são meus hábitos em certos defeitos ou fraquezas que tento minimizar ou justificar? Responder à pergunta “Onde estás?” significa reconhecer e confessar nossa situação real.

2) Onde estou? Estou “fora”, na soleira da porta, talvez avançando pretensões diante do Senhor porque “nos pertence”? Ou estou “dentro” no círculo de sua nova família que ouve e faz a vontade do Pai? Não demos a resposta por descontada, porque há aqueles que se creem dentro e estão fora e aqueles que parecem fora e estão dentro, como é o caso da mãe de Jesus no grupo dos familiares. O caso dos dois filhos da parábola do filho pródigo pode ser um exemplo eloquente.

3) Poderíamos considerar outra situação em que todos, de certo modo, nos encontramos em alguns momentos do caminho da vida. Há quem esteja “fora” e quem esteja “dentro”, mas há também quem esteja ausente, distante, que se perdeu nos muitos meandros da vida. Todos somos ou perdidos ou encontrados. Não é fácil, no entanto, reconhecer diante de nós mesmos e dos outros que nos perdemos. Falta-nos a coragem de nos reconhecermos uma “ovelha perdida”. Então nos escondemos atrás de uma bela fachada, atrás de um papel ou de uma máscara. Talvez tentemos encontrar o caminho por conta própria, sem pedir ajuda, e nos encontramos cada vez mais enrolados. A única verdadeira saída é clamar ao Senhor como o salmista: “Eu me perdi como ovelha perdida; busca o teu servo.” (Salmo 119,176).

Gostaria de citar uma reflexão de Martin Buber (filósofo e teólogo de origem judaica) sobre a pergunta de Deus “Onde estás?”.

“Adão se esconde para não ter que prestar contas, para fugir da responsabilidade de sua própria vida. Assim se esconde todo homem, porque todo homem é Adão e está na situação de Adão. Para fugir da responsabilidade da vida que se viveu, a existência é transformada em um mecanismo de ocultação. Justamente escondendo-se assim e persistindo sempre nesse ocultamento “diante do rosto de Deus”, o homem desliza sempre, e cada vez mais profundamente, na falsidade. Cria-se assim uma nova situação que, dia após dia e de ocultamento em ocultamento, se torna cada vez mais problemática. E uma situação caracterizável com extrema precisão: o homem não pode escapar ao olhar de Deus mas, tentando se esconder d’Ele, se esconde de si mesmo. Mesmo dentro de si conserva algo que o busca, mas a esse algo torna sempre mais difícil encontrá-lo. E é justamente nessa situação que o alcança a pergunta de Deus: quer perturbar o homem, destruir seu mecanismo de ocultação, mostrar-lhe onde o levou um caminho errado, fazer nascer nele um ardente desejo de sair dela.” (O caminho do homem).

P. Manuel João Pereira Correia mccj
Verona, 6 de junho de 2024