Por que falar do Coração de Jesus? Que significado tem esse modo de falar? Na experiência espiritual cristã se dá uma relação entre o coração de Jesus e o coração de cada pessoa.

Pe. Alfredo Sampaio Costa SJ*
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Devemos ao menos dizer uma palavra sobre a devoção ao Sagrado Coração de Jesus e a sua importância para o nosso tema. Por que falar do Coração de Jesus? Que significado tem esse modo de falar? Que relação existe entre o coração de Jesus e o nosso coração? Isso é muito importante, porque na experiência espiritual se dá uma relação de coração a coração.
Jan Bovenmars, no seu estudo Il cuore di Gesù nel Nuovo Testamento1 (O Coração de Jesus no NT), descreve quais são as características desse coração de Jesus:
Antes de mais nada, trata-se de um coração de um Filho. De um Filho que amou o seu Pai como ninguém jamais tenha podido amar! Depois, é um Coração obediente: Cf. Sl 40, 7-9, que é citado em Hb 10, 5-7 e é aplicado a Jesus que entra no mundo. Obediência de servo, obediência de enviado, obediência sacerdotal, mas em primeiro lugar: obediência de um Filho. É sobretudo um Coração que ama: e ama com amor fiel, universal, que inclui até mesmo os inimigos2. Como bem descreveu o Padre Arrupe: “Cristo abate toda restrição da fraternidade e nisso consiste a grande revolução do amor: redenção universal, filiação universal, fraternidade universal e amor universal são realidades correlativas, logicamente conexas e irreversíveis”3. Finalmente, um Coração compassivo que será até mesmo transpassado por amor.
Muitos estudiosos detiveram-se a penetrar no mistério profundo que se esconde no lado aberto de Cristo. Por exemplo, o P. Charles-André Bernard no seu estudo Cuore di Cristo e costato trafitto4: A cena da lança que abre o lado de Jesus insiste na simultaneidade da morte de Jesus e do jorrar da vida. Sobre a cruz nós contemplamos “um coração morto e ferido na morte; mas é um coração que do mais profundo dessa morte, no instante mesmo em que é aniquilado, deixa prorromper a fonte da vida, a água e o sangue, sinais de ressurreição. Como diz Orígenes “não foi como os demais mortos; mas do mais profundo da morte, manifestou sinais de vida na água e no sangue e foi por assim dizer um morto novo”. É preciso recolher a radical novidade do evento que se cumpre em seio ao antigo sono; ele constitui um daqueles sinais gloriosos dos quais João tanto se compraz em constelar o seu relato da paixão. Esse cadáver suspenso no patíbulo maldito, é já o corpo do Ressuscitado”5.
Notemos que, no sinal do coração transpassado, a figura da tensão do mistério morte-vida alcança a intensidade máxima: “No mesmo instante saiu dele sangue e água” (Gv 19,34). Se nos atemos à tradução latina, continuo, vemos que o texto sublinha a continuidade. Na mais estreita unidade temporal, opera-se uma dupla ação histórica e simbólica: de um lado a lança que opera o último rito de imolação praticado sobre o verdadeiro Cordeiro pascal e era profetizado pela proibição de quebrar os ossos da vítima (Jo 19,36; Ex 12,46); do outro, a abertura da fonte da água viva que representa a primeira efusão do Espírito, profetizada por Jesus Cristo: “no último dia, o grande dia da festa, Jesus levantou-se e exclamou em alta voz: “Quem tem sede, venha a mim e beba: como diz a Escritura, rios de água viva brotarão do seu seio6. Isso ele disse referindo-se ao Espírito que teriam recebido os que creram nele; de fato, não existia ainda o Espírito, pois Jesus não tinha sido ainda glorificado” (Jo 7,37-39)7. Jesus, morrendo na fraqueza da carne, efunde o Espírito. A mesma tensão morte-vida que dá significado à cena, encontra-se no simbolismo particular do sangue e da água. A insistência de João sobre a sua efusão simultânea remete, por uma outra vertente, ao mistério pascal.
Que temos, portanto, quando contemplamos esse coração de Jesus aberto pela lança? Nada mais do que a afirmação do primado do amor como pura graça. Como afirma Enzo Franchini: “A espiritualidade que imita Cristo-coração encontra exatamente aqui o fulcro da sua atualização: o amor de Deus é não dependente de motivos, a palavra para dize-lo é gratuidade, Deus te ama de modo que tu possas merecer o seu amor. O primado da graça de Deus se afirma sobretudo quando a espiritualidade se torna abandono a Deus”8.
Karl Rahner foi um apaixonado teólogo do coração de Cristo. Recolheremos aqui algumas de suas afirmações muito belas e importantes para nós:
- A encarnação de Deus é o vértice único e ao mesmo tempo o motivo fundamental e singular da relação do Criador com a sua criação.
- A humanidade de Cristo é o centro indispensável e perene pelo qual toda criatura deve passar para encontrar a coroação da sua validez eterna diante de Deus.
- Deus se comunicou ao mundo no Verbo encarnado. Esse amor de Deus que nos desconcerta torna-se evidente para nós só quando se encarna no coração de Jesus, tomando a nossa carne na finitude da nossa existência.
- O coração de Jesus, mais do que centro originário da existência humana, é o único centro de mediação, sem o qual é impossível aceder a Deus9.
Este “amor encarnado” nos convida a querer viver também nós no ritmo das batidas do coração de Deus:
“Tudo o que Jesus diz do seu coração, aplica-se em toda a verdade ao coração do Pai, como modelo que o coração de Jesus reproduz. Talvez a imagem mais apropriada que podemos nos fazer do Pai seja aquela de um coração – a primeira emoção que se propaga por todas as partes, o primeiro Amor que move todas as coisas, dos astros às almas. Cada batida desse coração é uma efusão na qual o Pai se doa… o Pai é Coração: viver segundo a vontade do Pai é unir cada batida do nosso coração àquelas do coração divino. Jesus se fez homem, e eis que, pela primeira vez, um coração de homem bate em perfeito uníssono com o coração de Deus; pela primeira vez um amor perfeito para o Pai faz palpitar um coração humano; pela primeira vez, um coração humano bate de amor perfeito pelos homens”10
Notas
[1] Jan BOVENMARS, “Il cuore di Gesù nel Nuovo Testamento”, in AAVV. La spiritualità del Cuore di Cristo, EDB, Bologna 1990, 65-84.
[2] Cfr. Mt 5, 43-49.
[3] Pedro ARRUPE, “Il cuore di Cristo, centro del mistero cristiano e chiave dell’universo”, in E.J. CUSKELLY, With a Human Heart, 28.
[4] Charles-André BERNARD, “Cuore di Cristo e costato trafitto”, in AAVV. La spiritualità del Cuore di Cristo, EDB, Bologna 1990, 85-99.
[5] E. GLOTIN, Il m’a aimé, 18. A citação de Orígenes é tirada de Contra Celsum, II, 69; PG XI, 904.
[6] “Do seu seio” (Jo 7,38) : da sua intimidade. É Jesus mesmo a fonte de água viva.
[7] Charles-André BERNARD, “Cuore di Cristo e costato trafitto”, 91.
[8] Enzo FRANCHINI, “Rinnovare una Tradizione”, in AAVV, La spiritualità del Cuore di Cristo, EDB, Bologna 1990, 14.
[9] Karl RAHNER, Teologia del Cuore di Cristo, Edizioni ADP, Roma 2003, 51.54-55.
[10] Un monaco della Chiesa d’oriente, Jésus, simples regards sur le Sauveur, Chevetogne 1960, 144.
* Pe. Alfredo Sampaio Costa SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE