VI Domingo de Páscoa (ano B)
João 15,9-17

- 1ª leitura: «O dom do Espírito Santo foi derramado também sobre os pagãos» (Atos 10,25-26.34-35.44-48).
- Salmo: Sl. 97(98) – R/ O Senhor fez conhecer a salvação e revelou sua justiça às nações.
- 2ª leitura: «Deus é amor» (1 João 4,7-10).
- Evangelho: «Ninguém tem amor maior do que aquele que dá sua vida pelos amigos» (João 15,9-17).
Naquele tempo, disse Jesus aos seus discípulos: «Assim como o Pai Me amou, também Eu vos amei. Permanecei no meu amor. Se guardardes os meus mandamentos, permanecereis no meu amor, assim como Eu tenho guardado os mandamentos de meu Pai e permaneço no seu amor. Disse-vos estas coisas, para que a minha alegria esteja em vós, e a vossa alegria seja completa. É este o meu mandamento: que vos ameis uns aos outros, como Eu vos amei. Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a vida pelos amigos. Vós sois meus amigos, se fizerdes o que Eu vos mando. Já não vos chamo servos, porque o servo não sabe o que faz o seu senhor; mas chamo-vos amigos, porque vos dei a conhecer tudo o que ouvi a meu Pai. Não fostes vós que Me escolhestes; fui Eu que vos escolhi e destinei, para que vades e deis fruto, e o vosso fruto permaneça. E assim, tudo quanto pedirdes ao Pai em meu nome, Ele vo-lo concederá. O que vos mando é que vos ameis uns aos outros».
O esforço e a alegria de se abrir ao amor e à Missão
Romeo Balan mccj
Duas questões de sempre: qual é o amor maior? onde encontrar a alegria plena? A resposta de Jesus é clara e definitiva (Evangelho): no ser fiel a Deus e no dar a vida pelos outros (v. 11.13). São palavras de Jesus na sua Páscoa grande, que, segundo o evangelho de João, se abre com o «lava-pés» (13,1ss), gesto que tem um significado sacramental e eucarístico. Estamos no início do “Livro de Despedida”, que compreende os capítulos 13-17 de João, nos quais o evangelista condensa temas muito caros à sua teologia: fala com insistência do serviço e do mandamento do amor, explica o significado pascal e escatológico do êxodo de Jesus, revela as relações de Jesus no seio da vida trinitária, mostra o rosto do Pai e do Espírito Consolador, reúne a intensa oração de Jesus ao Pai… Para Jesus são horas densas de confidências e de desabafo com os seus amigos (v. 15), aos quais se revela como «caminho-verdade-vida», oferece a sua paz, convida-os a ter confiança, porque «eu venci o mundo» (Jo 16,33).
Em tal contexto de despedida, rico de significado e de emoções, adquire um especial relevo o ensinamento de Jesus sobre o amor em todas as dimensões.
– Fala antes de mais da fonte primeira do amor, o amor do Pai, o amor fontal (como afirma o decreto conciliar Ad Gentes 2) no seio da Trindade: «como o Pai me amou…»;
– do Pai o amor derrama-se no Filho, com a abundância do Espírito Santo;
– dos discípulos o amor irradia em direcção a todos: «que vos ameis uns aos outros» (v. 12.17).
Jesus mesmo se oferece como medida, modelo, inspiração para o amor maior: lava os pés dos seus discípulos, dá «a sua vida pelos seus amigos» (v. 13).
O amor de que Jesus fala tem claras dimensões missionárias, como se vê em duas frases que é preciso ler em paralelo:
– «como o Pai me amou, também eu vos amei; permanecei no meu amor» (v. 9);
– «como o Pai me enviou, também eu vos envio a vós… recebei o Espírito Santo» (Jo 20,21-22).
Amor e missão estão estreitamente unidos: o amor leva à missão, a missão nasce do amor. Tudo isso no rasto e com a força do Espírito de amor. João (II leitura) reforça o mesmo ensinamento, apelando à origem divina do amor: «amemo-nos… porque o amor vem de Deus… porque Deus é amor… Foi Ele que nos amou» (v. 7.8.10).
Amar até dar a vida pelos outros! É o amor maior, é o amor dos mártires. E de muitos cristãos, missionários e não missionários. Um dos 7 monges trapistas, mortos em Tibhirine (Argélia, Maio de 1996) por alguns fundamentalistas islâmicos, deixou escrito este testemunho: «Se chegar o dia – e poderia ser hoje mesmo – em que cair vítima do terrorismo, que parece querer engolir todos os estrangeiros que vivem na Argélia, gostaria que a minha comunidade, a minha Igreja, a minha família, se recordassem que a minha vida é oferecida a Deus e a este País» (Christian de Chergé).
O amor de Deus é para todos; portanto a Missão dos cristãos deve ser aberta a todos os povos. Esta universalidade da acção missionária da Igreja surge em toda a história da conversão do centurião pagão Cornélio (I leitura), como explica muito bem Augusto Barbi, teólogo biblista. Com esforço a Igreja abriu-se para acolher os pagãos. No Livro dos Actos, o episódio de Cornélio constitui uma viragem decisiva em tal abertura. O espaço dedicado a este episódio (66 versículos!) e a repetição de algumas partes da narração mostram a sua importância, mas também o esforço com que se dá a progressiva integração dos pagãos na Igreja. Pedro desenvolve reflexões basilares próprias da teologia missionária sobre o tema da salvação para qualquer pessoa: «Deus não faz acepção de pessoas, mas acolhe aquele que o teme e pratica a justiça, qualquer que seja a nação a que pertença» (v. 34-35). Para lá das belas reflexões de Pedro e companheiros, quem resolve verdadeiramente o problema é o Espírito Santo, que desce sobre todos os presentes: fiéis e pagãos (v. 44-45), abrindo assim também a estes últimos a porta do baptismo (v. 47-48).
As resistências da primeira comunidade cristã – e as hesitações do próprio Pedro – são devidas à diversidade cultural-religiosa dos interlocutores e à cristalização de preconceitos ligados à estranheza e aos medos. Não é difícil ver nos personagens e nos acontecimentos da história de Cornélio um paradigma e uma orientação significativa para o hoje da Igreja, que se vê com frequência a ter de enfrentar os desafios da diversidade étnica-cultural-religiosa dos povos e a ter de se abrir continuamente à universalidade e à missão, com o empenho do acolhimento, integração e evangelização de novos grupos humanos. Migrantes e não. Aceites, ou recusados e afastados!
Um amor sem fronteiras
Marcel Domergue sj
Ser discípulo de Cristo é amar
No momento em que Jesus se separa dos discípulos, deixa-lhes de alguma forma o seu testamento, um resumo de tudo o que lhes havia transmitido em palavras e atos. E a última palavra de sua herança, de seu «testamento», o que pode nos surpreender, é uma recomendação, um «mandamento». Daí que o resultado de nossa adesão a Cristo, e a figura, portanto, que a fé cristã deve apresentar ao mundo, seja uma ética, isto é, um modo de nos comportarmos. O texto fala em «mandamento»: primeiro, no plural, e, em seguida, no singular. Este mandamento, que recapitula todas as recomendações feitas por Jesus, é que nos amemos uns aos outros. Mas uma questão se põe: amor é algo que se possa mandar? Então, por que Jesus usou esta palavra? Ora, sem dúvida, para fazer-nos compreender que, dali em diante, toda a Lei estava sendo superada pelo que secretamente já era o seu espírito. Daí os mandamentos negativos do Decálogo atravessarem esta espécie de muda, para virem a tomar a forma deste único mandamento positivo, de amar. Como diz Jesus em João 13,34, «Dou-vos um mandamento novo» e esta mesma palavra ganha então um novo sentido. De qualquer modo, o amor de que aqui se trata não é um sentimento qualquer que se experimenta ou não, mas é uma atitude que se escolhe, é um ato de liberdade. Só num segundo tempo é que o sentimento pode vir a se acrescentar. A conclusão é de que os cristãos se fazem reconhecer pelo amor que são capazes de manifestar. E como quase sempre estamos longe desta marca!
A fonte do nosso amor
Os modos de agir em conformidade ao amor são de qualquer forma um resultado, são a parte exterior e visível de uma realidade que nos habita. Refiro-me à Seiva de que falamos no domingo passado, ou seja, o Espírito. Espírito que, em nós, é a presença do Pai e do Filho, presença, portanto, da relação de dom e de acolhimento que funda tudo o que vive. Ora, se pelo amor Deus permanece em nós, nós permanecemos n’Ele na medida em que incorporamos este amor que nos habita. E nada disto acontece sem a nossa liberdade, pela qual somos imagens de Deus. O verbo «permanecer» aparece três vezes nesta passagem do evangelho: trata-se de fazer nossa morada neste mesmo Amor pelo qual somos amados. Trata-se de não sair deste Amor, porque fora dele só existe o nada. O que O faz nascer em nós e aí permanecer é a fé. Qual fé? A fé neste Amor que nos faz ser. O nosso amor é, com efeito, sempre segundo: é uma resposta, porque Deus é quem ama primeiro. Assim, os discípulos de Cristo se fazem reconhecer pelo amor que manifestam uns para com os outros. Não por seus “exercícios de piedade”, nem pela eventual delicadeza e exatidão da sua vida espiritual, nem mesmo pela prática de virtudes refinadas, se bem que tudo isso possa servir à manutenção de uma fé inicial no amor que se inicia. O intercâmbio de amor com os outros funde-se no intercâmbio com Deus, o que significa que temos de manter contato com Aquele que quer que existamos. Iremos ouvir sem cessar o «Quero que você exista e que seja você mesmo» que é uma expressão maior do Amor e que justifica a nossa existência e a nossa alegria de viver.
“Assim como eu vos amei”?
A palavra amor é mais do que ambígua. Por isso o Cristo pede que nos amemos, não de qualquer forma, não importando como, mas assim como ele mesmo nos amou. E para que não confundíssemos este amor com qualquer sentimento mais ardente, faz questão de precisar: este amor consiste em dar a própria vida por quem se ama. Obviamente não seremos todos crucificados, nem abatidos como Dom Romero ou como os monges de Tibhirine. Nem todos seremos chamados a dar nossa vida a Deus e aos outros, em alguma ordem religiosa. Mas há outras maneiras muito mais comuns de dar a nossa vida, renunciando por exemplo a algumas de nossas ideias, de nossos projetos, de nossas exigências. Exemplos? Tomemos um casal: é grande o perigo, para um ou para o outro, de querer a todo preço que seu cônjuge se conforme com a ideia que cada um se faz de sua maneira de viver, de pensar e de ocupar-se. Renunciar a esta imagem para que o outro permaneça ou se torne ele mesmo é aceitar «perder-se» a si mesmo. Com relação aos filhos, temos a mesma exigência. Não esqueçamos que o «Quero que você exista» se estende até ao «Quero que você seja você mesmo». Amar alguém assim como o Cristo nos ama consiste muitas vezes em ajudá-lo a libertar-se de nós mesmos. Morte a si mesmo e, às vezes, sofrimento que se tem de atravessar, mas na fé, na fé que faz nascer a alegria. Então, alguém, talvez, virá nos pedir a razão da nossa esperança. E nós, com «mansidão e respeito», iremos poder falar-lhe do Amor pelo qual somos amados (1 Pedro 3,15-16).
O mandamento novo
Enzo Bianchi
Nos “discursos de despedida” (cf. Jo 13, 31-16, 33), através dos quais João nos revela as palavras do Senhor ressuscitado à sua comunidade, por duas vezes é anunciado o “mandamento novo”, isto é, último e definitivo: “Eu vos dou um mandamento novo: amai-vos uns aos outros. Assim como eu vos amei, vós deveis vos amar uns aos outros” (Jo 13, 34); “Este é o meu mandamento: amai-vos uns aos outros, assim como eu vos amei” (Jo 15, 12, dentro do trecho deste domingo).
São palavras, certamente, entregues aos discípulos, aos discípulos de Jesus que, em todo o tempo, o seguem, mas esse mandamento não é limitante, não é redutivo das palavras sobre o amor mandado por Jesus até em relação aos inimigos e perseguidores (cf. Mt 5, 44; Lc 6, 27-28.35). O amor é sempre amor de quem dá a sua vida pelos seus amigos, é sempre amor que teve a sua epifania na cruz, portanto, amor de Deus pelo mundo, por toda a humanidade (cf. Jo 3, 16).
Esse amor é, acima de tudo, aquilo que Deus é, porque “Deus é amor” (1Jo 4, 8.16); é aquilo que é vida do Pai e do Filho na comunhão do Espírito Santo; é amor que Jesus de Nazaré viveu até o fim, até o extremo (eis télos: Jo 13, 1). O amor, portanto, tem origem em Deus e deriva de Deus, criando uma relação dinâmica na qual cada pessoa é chamada a acolher o dom do amor, a se deixar amar para poder se tornar sujeito de amor.
Para nós, o abismo de amor extático que é Deus mesmo é incomensurável, e só conseguimos lê-lo olhando para a vida e para a morte de Jesus, que, tendo explicado Deus (exeghésato: Jo 1, 18), narrou-nos o seu amor. Com toda a autoridade de quem viveu o amor até o extremo, Jesus pôde dizer: “Como meu Pai me amou, assim também eu vos amei”.
Mais uma vez, essas palavras de Jesus deveriam nos escandalizar, porque parecem ser uma pretensão: Jesus pretende ter amado seus discípulos como Deus sabe amar e ele diz ter conhecimento, ter feito experiência desse amor de Deus.
Como um homem pode dizer isso? Porém, o Kýrios ressuscitado afirma e diz isso a nós que o escutamos. Nesses nove versículos, nove vezes ressoa a palavra “amor/amar” e três vezes a palavra “amigos”: esse amor deriva de Deus Pai sobre o Filho, do Filho sobre os discípulos, seus amigos, e dos discípulos sobre os outros homens e mulheres. É um amor que se encarna e se dilata para poder alcançar a todos.
É quase impossível seguir adequadamente o discurso de Jesus; mas pelo menos podemos assinalar que nele o amor de Deus se tornou amor dos discípulos, que podem responder a esse amor descendente, dado a eles gratuitamente, habitando nesse amor, ou seja, permanecendo firmes na realização da vontade de Jesus, daquilo que ele mandou.
E essa vontade consiste, em síntese extrema, em amar o outro, cada outro. Conseguimos entender o que Jesus nos pede ao nos dar o seu amor? Ele não nos pede em primeiro lugar que amemos a ele, que retribuamos o seu amor, amando-o por nossa vez. Não, a resposta ao seu amor é amar os outros como ele nos amou e os amou. A restituição do amor, o contradom, que é a lei do amor humano, deve ser amor dirigido aos outros. Então, esse amor fraterno é fazer a vontade de Deus, portanto, amá-lo de modo verdadeiro, como Deus deseja ser amado.
Jesus respondeu ao amor do Pai amando a nós, e nós respondemos ao amor de Jesus amando o outro, os outros. Por isso, toda a Lei, todos os mandamentos são reduzidos a um apenas, o último e o definitivo, que relativiza todos os outros: o amor ao próximo. Jesus disse isso: “Dos mandamentos do amor a Deus e ao próximo”, isto é, do amor ao outro vivido como Deus quer e como Jesus testemunhou, “dependem toda a Lei e os Profetas” (cf. Mt 22, 40). E Paulo reiterou ainda mais: “Toda a Lei, na sua plenitude, é resumida na única palavra: ‘Amarás!’” (Gl 5, 14, cf. também Rm 13, 8-10).
Portanto, Jesus nos dá um critério objetivo para avaliar a nossa relação de discípulos com ele e com o Pai: o amor factivo, concreto pelos outros. Somente colocando-nos a serviço dos outros, somente fazendo o bem aos outros, somente gastando a vida pelos outros, nós podemos saber que habitamos, que permanecemos no amor de Jesus, como ele sabe que permanece no amor do Pai. Sem esse amor factivo, não há possibilidade de uma relação com Jesus e nem com o Pai, mas há apenas a ilusão religiosa de uma relação imaginária e falsa com um ídolo forjado por nós e, depois, amado e venerado.
Nessa página do quarto Evangelho, Jesus também tem a audácia de reinterpretar a relação entre Deus e o fiel traçado por todas as Escrituras anteriores a ele. O fiel certamente é um servo (termo que indica uma relação de submissão e obediência) do Senhor, mas Jesus diz aos seus que eles já não são mais servos, mas por ele foram tornados amigos: “Já não vos chamo servos (…) Eu vos chamo amigos (phíloi), porque vos dei a conhecer tudo o que ouvi de meu Pai”. Intimidade mais profunda do que aquela amizade de Abraão (cf. Tg 2, 23) ou de Moisés (cf. Ex 33, 11) com Deus; intimidade que é comunhão de vida, comunhão de amor.
O discípulo de Jesus, que acima de tudo faz a experiência de ser amado pelo Senhor, pode se tornar, por sua vez, um amante do Senhor: ele não é simplesmente alguém chamado a ser servo para desempenhar uma ação, mas é um amigo que entra em relação com o Senhor. Ele reconhece que não há amor maior do que dar a vida pelos amigos, e, nesse amor concreto, é tornado partícipe da palavra, da intimidade, da revelação do Senhor.
O discípulo de Jesus foi escolhido por ele, o amor de Cristo o precedeu, e o fruto que Cristo espera é o amor pelos outros. Esse também será o único sinal de reconhecimento do discípulo cristão no mundo (cf. Jo 13, 35): nada mais, ao contrário, o resto ofusca a identidade do cristão e não permite vê-la.
O que fazer, então, como discípulos de Jesus? Crer no amor (cf. 1Jo 4, 16), amar os outros porque Deus nos amou primeiro (cf. 1Jo 4, 19) e não ceder nunca à tentação de pensar que nos basta nutrir um amor de desejo ou de expectativa por Deus: não, nós o amamos se realizamos o mandamento novo do amor recíproco, à imagem daquilo que Jesus viveu.
O amor presente no desejo de Deus pode ser uma grande ilusão, e João reitera isso fortemente: “Se alguém diz: ‘Eu amo a Deus’, e no entanto odeia o seu irmão, esse tal é mentiroso; pois quem não ama o seu irmão, a quem vê, não poderá amar a Deus, a quem não vê” (1Jo 4, 20).
Nós, cristãos, comunidade do Senhor no mundo e entre os homens, devemos ter a consciência de ser originados pela caridade, pelo amor de Deus. Ecclesia ex caritate: a Igreja nasce da caridade de Deus e somente se habitar nessa caridade também pode ser Igreja que opera a caridade, sabendo que o amor nunca pode ser desvinculado da obediência ao Senhor.
De fato, é o “mandamento” que sabe dirigir, moldar o nosso amor em conformidade com o amor de Cristo, que nos leva até a amar o não amável, a operar a caridade para com o inimigo ou para quem cometeu o mal contra nós.
Nesse dom de Jesus do mandamento novo, do seu mandamento por excelência, há a constituição da sua comunidade, da Igreja. Esta deve ser uma casa da amizade, uma experiência de amizade; os cristãos certamente continuam sendo servos do Senhor, na obediência, mas são amigos do Senhor na partilha da sua vida mais íntima, no conhecimento daquilo que o Pai comunica ao Filho e daquilo que o Filho diz ao Pai naquela comunhão de vida e de amor que é o Espírito Santo.
Sim, o mandamento novo não nos é dado como uma lei, mas como um dom que nos faz participar da vida do próprio Deus. Aqui está o grande mistério cristão da graça, do amor gratuito e preveniente, do amor que nunca se deve merecer, mas que deve apenas ser acolhido com estupor e reconhecimento.
Lê-se em um dito apócrifo atribuído a Jesus: “Viste o teu irmão? Viste a Deus!”. Palavras que também podem ser compreendidas da seguinte maneira: “Amaste o teu irmão? Amaste a Deus!”.
Leia mais
- Amor vivido na alegria: quinta-essência da vida cristã
- Um amor sem fronteiras
- O amor verdadeiro
- Uma alegria diferente
TRANSBORDAR
José Tolentino Mendonça
O Cristianismo parece uma proposta fácil e parece uma proposta impossível. A acusação que desde a Antiguidade pesa sobre os cristãos, uma suspeita permanente que sempre tem acompanhado a História ao longo destes dois mil anos, é perguntar se os cristãos são verdadeiramente pessoas religiosas, se o Cristianismo é uma religião e não é uma forma de ateísmo – que é uma acusação que muitas vezes se fez aos cristãos, dizendo: vocês são ateus, não são religiosos, porque o ethos cristão, aquilo que vos distingue, a diferença cristã o que é?
Se dizemos “Deus é amor. E quem ama é que conhece a Deus, quem não ama não conhece a Deus”, de certa forma estamos a deslocar a questão central da religião que é o conhecimento de Deus. Estamos a deslocar de um campo tipicamente religioso para coloca-lo num campo antropológico. Por isso aquela história do militar romano, do centurião romano que Pedro conhece, que é um homem bom, um homem que pratica a justiça, um homem que ama os seus semelhantes e que recebe o Espírito Santo. Não há nenhum impedimento para que o Espírito Santo não desça sobre os pagãos, sobre os gentios, sobre aqueles que desconhecem Deus. Eles desconhecem Deus, mas Deus não deixa de estar neles, não deixa de os conhecer. Isso faz do Cristianismo, e é essa a acusação, uma religião fácil. Porque não é uma religião de uma iniciação rebuscada no conhecimento de Deus, não pede de nós uma ascética em direção ao divino muito peculiar, mas é o amor que nos dá o conhecimento de Deus, que é o grande laboratório do conhecimento de Deus.
E, ao mesmo tempo, o Cristianismo parece uma proposta impossível porque esta passagem do Evangelho de S. João é eloquente. Porque Jesus diz: “O meu mandamento é este: amai, amai-vos uns aos outros como Eu vos amei.” E nós sabemos que podem-nos pedir muitas coisas, mas ninguém nos pode pedir para amar. Amar não depende de uma lei. Não há nenhuma lei que mande amar. As leis mandam respeitar, mandam reconhecer a dignidade, reconhecer os direitos dos outros, mandam ser tolerante, mandam dar lugar, dar um espaço de vida ao outro. Mas amar o outro? Que lei é esta? E como é que nós podemos compreender esta palavra de Jesus que faz do amor uma ordem, um imperativo, um mandato, um mandamento? “O Meu mandamento é este: amai, que vos ameis uns aos outros como Eu vos amei.”
E nós pensamos: será possível? O Cristianismo será uma proposta razoável para a nossa vida? Não me está a ser pedida uma coisa que eu não consigo realizar? O amor está no centro da experiência cristã e no centro do grande anúncio que Jesus faz de Deus. Deus é dito como o Amor. Que é uma coisa que muitas vezes nós não chegamos a compreender porque vivemos o amor de uma forma transitiva, vivemos o amor como ação. Nós amamos ou não amamos. E, em relação a Deus, o amor não é uma forma de ação, é uma forma de ser. Deus é Amor, Deus é Amor. Deus identifica-se com o próprio Amor. Não há nenhuma separação entre o que Ele guarda em si, guarda no mistério da Sua pessoa, da Sua essência e aquilo que é o Amor. Há uma coincidência total. Que é uma coisa que em nós não existe, não é natural. Mas é um chamamento, é uma construção sobrenatural que tem de acontecer em nós. Nós só poderemos viver o mandamento do Amor se permanecermos no amor. E permanecer no amor não é apenas amar pontualmente este ou aquela, mas permanecer no amor é fazer do amor a sua identidade, é fazer do amor a sua vocação, é fazer do amor aquilo que se é de uma forma estável, de uma forma contínua. É treinar tantas vezes o amor, é buscar tanto o amor, é praticar tanto o amor que o amor se torna a nossa vida e deixa de haver uma distinção, uma diferença. Porque o amor contamina, contagia, infiltra-se em tudo aquilo que somos e isso é permanecer no amor.
A proposta cristã só é possível porque nós somos amados por Deus, porque Deus nos dá esse amor assim. Porque Ele ama-nos primeiro. O amor que nos é pedido, antes de tudo, é um amor passivo, não é um amor ativo. Muitas vezes nós pensamos no amor como uma capacidade de fazer, o amor é antes de tudo uma capacidade de aceitar, uma capacidade de receber, uma capacidade de acolher o dom, aquilo que nos é dado, aquilo que nos visita em cada dia, em cada instante. Poder receber. E talvez o amor mais difícil para nós não seja o amor que nós damos mas seja a nossa incapacidade, os obstáculos que colocamos a ser amados, a receber este amor pleno, este amor total, este amor de que temos medo, este amor de que fechamos as portas, este amor que não interpretamos. Porque, se nós nos situamos dentro do amor, nós percebemos que o amor nos visita continuamente, percebemos que tudo à nossa volta é uma corrente de amor e percebemos muito mais presente na nossa vida do que nós estamos dispostos a reconhecer.
Por isso, aceitar ser amado, aceitar esta passividade do amor, aceitar que o amor nos encha, aceitar que o amor é desde sempre. Porque, quando pensamos no amor, pensamos claramente na nossa história psicológica, no nosso itinerário biográfico. E pensamos: tenho 50 anos, o amor em mim tem 50 anos. Não, o amor em mim é desde sempre, é desde a eternidade, é desde a origem de Deus, é desde o coração de Deus e é com esse amor eterno que eu me tenho de confrontar. Não é apenas com o amor hesitante, relutante, presente ou não presente da minha história com o qual eu tenho de fazer contas, mas eu tenho de ligar-me, de conectar-me interiormente com esse amor eterno, com essa torrente de amor, com esse oceano de amor que vem desde sempre. E é essa eternidade do amor em mim que é capaz de reparar todas as feridas, todas as lacunas, todo o espaço por resolver, toda a pergunta sem resposta. É esse amor eterno capaz de me consolar, capaz de dizer a minha verdadeira identidade, aquilo que eu sou.
Por isso, a experiência fundamental, a experiência fundante é esta experiência de se ser amado. E aqui nós precisamos, na nossa relação com Deus, de fazer uma viragem, de fazer uma mudança de olhar. Porque ainda ficamos dependentes de um Deus que nos julga, de um Deus que só dá o amor se merecemos – aquele ditado português: “Deus castiga mas não é com pau nem com pedra, mas Ele castiga.” Estamos sempre à espera do Deus que nos castiga, do Deus que nos policía, do Deus que é o deus da moral, o Deus que nos impõe um caminho ético, uma decisão ética e que depois nos vai pedir contas – não mergulhamos na intensidade deste mistério deste Amor de Deus que é aquilo que nos pode transformar e nos pode ensinar quem é Deus. Nós precisamos aprender quem é Deus e só o aprendemos, diz S. João, se soubermos a desmesura, a excedência, o exagero, o infinito desse amor, a experiência de um amor assim que nos toca para lá de todo o mérito, para lá de toda a qualidade, para lá de toda a coisa boa que podemos querer ou sonhar. Quando somos maus também Deus nos ama, quando somos miseráveis também Deus nos dá tudo do Seu amor. Quando somos infiéis, Ele continua a ser fiel, porque só a fidelidade a esse amor nos pode salvar, só porque Deus permanece fiel à mulher ao homem que somos é que nós podemos ser salvos.
E por isso, o que é a fé cristã? É a contemplação, é o espanto por um amor assim. Vivermos o espanto, vivermos a contemplação permanente, vivermos a oração de um amor assim. Um amor que está para lá de tudo, é superior a tudo, é que é de facto a medida do amor.
Há um filósofo contemporâneo, Jean- Luc Nancy, que escreveu uma série de textos que intitulou a A Declusão (Desconstrução do Cristianismo) e ele centra-se muito na questão do amor. E diz: “O Deus que os cristãos anunciam é um Deus que vive fora de Si, é um Deus que vive alheio a Si mesmo, que vive completamente em saída.” E o amor é isso, o amor não é eu basear-me naquilo que eu sou, não é eu fazer da minha vida uma trincheira, um repositório de amor. O amor não é uma coisa que eu tenho em mim, o amor precisa dessa saída. O amor é isso. Nós não podemos dizer: o amor é fazer isto ou fazer aquilo. É fazer tudo, é “Ama e faz o que quiseres” como dizia Sto. Agostinho. Mas, o amor é essa saída permanente, esse êxodo permanente, essa capacidade de se colocar no lugar do outro, essa excedência em relação a nós próprios, esse alheamento, esse esquecimento de si, esse tornar a vida dom, dádiva nas minúsculas realidades e nas grandes, é viver esse transbordar. Deus é presença transbordante de amor. É o ato de transbordar, é o ser transbordante.
E é isso que nós precisamos. Vivemos demasiado à defesa, vivemos demasiado a fazer contas do que tu me deste e do que eu dou, vivemos demasiado limitados à ética da retribuição: eu amo aqueles que me amam. Vivemos demasiado nos nossos cálculos, nas nossas contas e perdemos a vida. Porque, se a vida não é o transbordar, nós perdemos a vida, perdemos essa água, deixamos de ser aquilo. Pensamos que aquilo que nos é pedido é manter a água intacta no cântaro, quando o que nos é pedido é este derramar-se. O amor é isso, o amor é um derramar-se, é alagar tudo desse amor. E não pode ser só amar aqueles que me amam, mas tem de ser um alagar todas as coisas, um chegar a todas as coisas. Porque aquilo que é próprio do amor é precisamente essa expansividade, esse alargamento permanente.
E depois, isso é vivido sob a forma da compaixão. Nós precisamos aprender verdadeiramente de Deus este Amor como compaixão. Compaixão uns pelos outros, compaixão pelas criaturas, compaixão pelo mundo, compaixão connosco mesmos (que às vezes é tão difícil), compaixão com o próprio Deus. É interessante como os Pastorinhos de Fátima, naquela simplicidade um bocado rudimentar, primária das crianças, tinham a sensibilidade de dizer que tinham de consolar Deus, que tinham de consolar Nosso Senhor, que Nosso Senhor precisa de ser consolado. E esta consolação é um ato de compaixão. Nós precisamos de colocar no centro como expressão orante da nossa vida a compaixão. O que nos distingue não são as orações que podemos ou não saber, o que nos distingue verdadeiramente é uma prática permanente de compaixão e atenção amorosa aos outros, e atenção comprometida no afeto de uma afetuosa presença ao lado uns dos outros e no meio do mundo.
Hoje nós celebramos o Dia da Mãe. E na figura da mãe nós percebemos muito daquilo que Deus é. A mãe é uma página do Evangelho, porque nos diz sem palavras com a forma de ser aquilo que nós contemplamos em Deus e temos de contemplar em nós. Porque, nós somos mães e pais uns para os outros, nós somos parteiros de vida uns para os outros, nós ajudamos os outros a ser, os outros a viver. E isso é amar a Deus, isso é perceber o Deus que é Amor.