P. Manuel João, comboniano
Reflexão do Domingo
da boca da minha baleia, a ELA
A nossa cruz é o pulpito da Palavra

Ano B – Quaresma – 2º Domingo
Mateus 9,2-10: “Mestre, como é bom estarmos aqui!”

No domingo passado, o Espírito Santo conduziu-nos com Jesus ao deserto para enfrentarmos “os nossos demónios” e sairmos vitoriosos como Jesus, o novo Adão. A luta não acabou; os demónios voltarão “no tempo oportuno” (Lucas 4,13), mas não podemos ficar por lá. O nosso caminho quaresmal inclui várias etapas, seis para ser exato, tantas quantas os domingos da Santa Quaresma.

1. Do deserto para o monte

Do deserto seguimos para o monte. De facto, a primeira leitura fala do monte Mória, onde Abraão tinha ido oferecer o seu filho Isaac, um monte que a tradição hebraica identificou com o monte do Templo de Jerusalém. No evangelho, trata-se de “um monte alto”, o da Transfiguração, que a tradição considera ser o monte Tabor, na Galileia. No fundo destes dois, vislumbramos um terceiro monte: o Gólgota!

Hoje o Senhor leva-nos consigo e conduz-nos a esse “alto monte” do Tabor. Talvez alguns de nós já lá tenham estado, apreciadno a vista ampla e bela que oferece. Hoje, porém, não vamos lá como turistas ou excursionistas, nem sequer como peregrinos. Vamos lá como discípulos, personificados pelos três amigos íntimos de Jesus: Pedro, Tiago e João. Para o podermos fazer, temos de nos identificar com a sua situação. Eles estavam atravessando um mau momento de crise. Seis dias antes, tinham feito a sua profissão de fé. À pergunta de Jesus: “Quem dizeis que eu sou?”, Pedro tinha respondido em nome de todos: “Tu és o Cristo!”. Jesus, porém, tinha-os desconcertado com um anúncio inesperado, dizendo-lhes que ele não era o tipo de Messias que eles pensavam e que o aguardavam o sofrimento e a morte, antes de ressuscitar ao terceiro dia. Pedro sentiu-se obrigado a admoestá-lo, chamando-o à parte, mas Jesus repreendeu-o duramente diante de todos: “Para trás de mim, Satanás! Depois, com uma atitude de frieza e destaque que entristeceu profundamente o coração de todos, disse: “Se alguém quiser vir após mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me!” (Marcos 8,34). Como se dissesse: sois livres de seguir comigo ou de voltar atrás! O escândalo da cruz foi a primeira grande tentação do discípulo!

Podemos imaginar como foi difícil e penosa aquela ascensão ao monte. Não tanto pela subida de cerca de 500 metros – com Jesus tinham-se tornado grandes caminhantes! – mas por causa do pesado fardo que levavam no coração. É uma experiência que também nos é familiar, a não ser que não levemos a sério esta palavra de Jesus sobre a cruz!…

2. O mistério do Rosto e dos rostos!

Ouvimos do Evangelho a narração do que aconteceu na monte: uma experiência apaixonante de beleza e de luz; de encontro entre o humano e o divino; de diálogo entre a Palavra (Cristo), a Torah (Moisés) e os Profetas (Elias); de temor ao entrar na nuvem luminosa; de escuta da Voz que proclama: “Este é o meu Filho muito amado: escutai-o!”… É como uma antecipação da ressurreição de Jesus e da nossa bem-aventurança!

Esta experiência não está reservada a alguns escolhidos, mas é oferecida a cada um de nós. É certo que de uma forma mais humilde, mas nem por isso menos verdadeira. Sem ela, a fé ficaria privada da alegria do Evangelho e a vida cristã tornar-se-ia um fardo insuportável. A Quaresma é um tempo propício para fazer esta experiência. Mas sob certas condições! Antes de mais, é preciso ter a coragem de deixar a “planície” e enfrentar a subida do monte. Depois, parar com calma no cume, em oração de contemplação. Isto dá-nos uma perspetiva totalmente nova da existência. Por fim, descer ao vale para retomar a vida com novo vigor, guardando no coração a Luz e a Palavra desse encontro. A Transfiguração é um ícone da oração. Na iconografia oriental, o ícone da Transfiguração é o verdadeiro exame do iconógrafo, porque todos os outros ícones são iluminados pela luz do Tabor!

A fonte desta luz é o rosto de Cristo. “A sua face brilhou como o sol”, diz Mateus (17,2). Todos nós procuramos esse rosto, como diz o salmista: “O teu rosto, Senhor, eu procuro! (Salmo 27,8). Esse rosto revela-nos a nossa identidade mais profunda, o nosso verdadeiro rosto, por detrás das muitas máscaras e maquilhagens. Desse encontro, saímos transfigurados, com o rosto radiante, como Moisés ao sair da presença de Deus (Êxodo 34,35).

Só quem contemplou a beleza desse Rosto pode reconhecê-lo também no “Ecce Homo” e em todos os rostos marcados pelo sofrimento e pela injustiça e, por isso, trabalhará para secar as lágrimas e curar as feridas dos que sofrem!

3. De cruz em cruz ou de glória em glória?

A vida cristã é uma experiência de transfiguração contínua até à transfiguração final da ressurreição. Considero muito eloquente um texto de S. Paulo: “E nós todos que, com o rosto descoberto, reflectimos a glória do Senhor, somos transfigurados na sua própria imagem, de glória em glória, pelo Senhor que é Espírito.” (2 Coríntios 3,18).

Esta visão paulina da vida do cristão contrasta com o nosso entendimento da fé como um vaguear de cruz em cruz para chegar ao céu. Em vez disso, Paulo diz-nos que vamos de transfiguração em transfiguração, de glória em glória, até à Transfiguração final. Esta é uma visão muito mais bela e desafiante da vida cristã!

Para uma reflexão pessoal esta semana

1) Retoma com calma a segunda leitura: Romanos 8,31-34.
2) Compara a tua compreensão da vida cristã com a de São Paulo (2 Coríntios 3,18).
3) Sentes que cultivas momentos de exposição à luz do Rosto de Cristo?

P. Manuel João Pereira Correia, Comboniano
Verona, 21 de fevereiro de 2024